O comércio eletrônico, nestes últimos cinco anos, apresentou crescimento exponencial e, como se verifica, bancos e financeiras, não ficaram de fora dessa transformação digital. O surgimento e incremento de lojas online no âmbito de atuação dessas instituições representa resposta às ‘irritações’ derivadas das demandas do mercado, bem como às novas tecnologias. De outro lado, porém, traz à tona a real necessidade de proteção do consumidor, especialmente frente a potenciais riscos e fornecedores maliciosos.
Inicialmente, calha relembrar que a pandemia acelerou fortemente a adoção de hábitos digitais. Consumidores, outrora apegados às relações contratuais e obrigacionais analógicas, em busca de prevenção a eventuais contágios, modificaram o comportamento de negociação, optando por serviços ‘online’ e, via de consequência, arrastando bancos e financeiras a integrar ‘lojas virtuais’ no âmbito de suas plataformas.
Atente-se que as instituições já mantinham serviços clássicos (pagamentos, transferências, investimentos etc.) até então nos chamados ‘homebanking’,1 contudo o comércio eletrônico propiciou nova guinada tecnológica exigindo novos investimentos nas plataformas para facilitar a negociação eletrônica e a aquisição de produtos diretamente através de suas interfaces online.
Também de registro que o cenário competitivo entre instituições financeiras impulsionou a criação de canais de venda digitais num mercado já saturado. A ideia central é a realização integrada (e impulsionada)2 dessas relações digitais, de forma que nas plataformas dos bancos o consumidor seja completamente atendido em todas as carências diárias, não apenas para serviços bancários, mas para aquisição de infinidade de produtos variados (roupas, alimentos, eletrodomésticos, eletrônicos, perfumaria, utensílios etc.), o que vai bem além dos clássicas negociações de consórcios, crédito imobiliário e financiamento para a compra de veículos.
Daí algumas estratégias utilizadas por esse mercado, agora redefinido: i – ‘facilidade de acesso’, já que o ambiente online permite que consumidores realizem transações a qualquer hora e em qualquer lugar, eliminando a necessidade de visitas físicas às agências e às lojas; ii – ‘diversificação de ofertas’, porquanto a digitalização possibilita a ampliação do ‘portfólio’ dos bancos em rede com outros fornecedores, incluindo produtos e serviços, bastante diferentes dos clássicos serviços de ‘contas, cartões, seguros e investimentos’; iii – fidelização dos consumidores, pois torna as compras mais atrativas, já que atende várias necessidades do consumidor num único lugar.
No que respeita à ‘fidelização dos consumidores’, passou a fazer parte cada vez mais do ‘dia a dia’ do consumidor – muito embora a grande maioria não tenha exato conhecimento do conteúdo (direitos, efeitos, informações) – certo ‘arranjo negocial unilateral’ designado como ‘cashback’ – expressão já introduzida à língua portuguesa através do ‘estrangeirismo digital’ – como forma de estímulo ao consumo.
O ‘cashback’ configura ‘modelo de marketing’ com padrões de incentivo através do qual os consumidores recebem parte do valor gasto para as futuras compras na mesma plataforma bancária. O modelo ganha popularidade, não apenas pelo alegado retorno financeiro, mas também pela facilitação das compras, estimulando os consumidores a utilizarem serviços financeiros do próprio banco (pix, cartão de crédito etc.) para compra de produtos que fazem parte desta rede (geralmente outros reconhecidos e grandes fornecedores do comércio eletrônico).
Portanto, benefício financeiro que recompensa o consumidor por suas compras. Se o consumidor adquire determinado produto que oferece 10% de ‘cashback’, receberá 10% do valor da compra futura, geralmente em forma de crédito e raras vezes em dinheiro. E, na base, diferencia-se dos programas de fidelidade, pois estes oferecem pontos a serem acumulados e trocados por recompensas, produtos ou serviços, muitas vezes exigindo que o consumidor atinja certo número de pontos para obter recompensas significativas. Ou seja, enquanto o retorno do ‘cashback’ se anuncia imediato, nos programas de fidelidade os efeitos geralmente são diferidos.
Não há dúvidas de que o ‘cashback’ pode influenciar significativamente as limitações de compra do consumidor. A devolução de parte do valor gasto proporciona sensação de ‘alívio financeiro’, permitindo que o consumidor compre mais ou escolha produtos de maior valor. Claro fator decisivo na hora de escolher onde realizar a compra, influenciando não apenas a percepção de valor, mas também o comportamento de consumo.
Claro que é possível não abandonar campos críticos: isso equivale dizer que ‘a retenção mental do consumidor’ é elemento crucial no contexto do ‘cashback’. Observe que as ‘ofertas’ de retorno financeiro não se limitam apenas ao valor; definitivamente influenciam o comportamento e a percepção do consumidor em relação ao dinheiro. A psicologia por trás do ‘cashback’ sugere que a sensação de “ganho”, ao receber de volta uma porcentagem do valor gasto, pode motivar a aquisição de hábitos de consumo mais engajantes e frequentes, até porque frequentemente surgirão novas mensagens indicando outros produtos semelhantes ao adquirido.
Além disso, o uso de ‘cashback’ pode criar ilusão de economia que, quando combinada com a conveniência das plataformas digitais, aumenta a ‘lealdade’ do cliente. Usuários tendem a utilizar seus cartões de crédito ou aplicativos preferidos para maximizar os benefícios, mesmo quando suas compras não são necessariamente planejadas.3
Na seara jurídica, legislativa ou regulatória, o ‘cashback’ não se encontra suficientemente pormenorizado, o que abre a percepção que se trata de nítido arranjo contratual, unilateral, de adesão, pelo qual o consumidor se subordina às predisposições do contratante que detém o poder econômico.4 E nesse episódio, ‘fidelizado’ é somente o consumidor, porque a fidelização que se espera do “companheiro” (que come do mesmo pão) que deveria ser inerente aos contratos ditos relacionais5 ou cativos, não aparece, substituindo-se o ‘constitucionalismo das necessidades’ pela ‘ditadura dos desejos’.6
Pontos importantes podem ser observados na Lei 12.865/13 que ao dispor sobre as novas modalidades de pagamentos traçou os seguintes princípios: i – interoperabilidade entre arranjos de pagamentos distintos; ii - solidez e eficiência dos arranjos de pagamento e das instituições de pagamento, promoção da competição; iii – acesso não discriminatório aos serviços e às infraestruturas necessários ao funcionamento dos arranjos de pagamento; iv – atendimento às necessidades dos usuários finais, em especial liberdade de escolha, segurança, proteção de seus interesses econômicos, tratamento não discriminatório, privacidade e proteção de dados pessoais, transparência e acesso a informações claras e completas sobre as condições de prestação de serviços; v – confiabilidade, qualidade e segurança dos serviços de pagamento; e vi – inclusão financeira, observados os padrões de qualidade, segurança.
Por exemplo, à instituição financeira que utiliza o ‘cashback’ deve priorizar concorrência entre fornecedores de produtos equivalentes dentro se sua rede, sendo vedado tratar de forma desigual os consumidores, sob pena de ato discriminatório e responsabilidade civil. O banco, nesta última hipótese, tem argumentos razoáveis para oferecer ‘cashback’ para determinado consumidor e negar idêntico tratamento para outro?
Pela metodologia do diálogo das fontes, portanto, é possível avaliar e adjudicar aos eventuais casos concretos à Lei 12.865/13 em coordenação com o Código de Defesa do Consumidor, porquanto também se trata de típica relação de consumo, para dar efetividade ao princípio da boa-fé objetiva qualificada7 especialmente, considerando os deveres prévios de transparência; clareza nas ofertas; e proteção contra práticas abusivas, sem prejuízo do dever de oportunização quanto às taxas e limites, valores restituíveis, bem como a forma de utilização do montante devolvido. É essencial extrato claro, objetivo e inequívoco.8
Não seria demais registrar, por oportuno, que para o ‘cashback’ caberia também às instituições financeiras, mediante dever de advertência e cuidado, evitar que o consumidor adira às contratações inúteis e fraudulentas, comportando medidas de autenticação em duas etapas e educação financeira. Relembramos aqui o fato de a instituição financeira não tutelar suficientemente nestas operações o consumidor, com destaque ao hipervulnerável, a possibilidade de “dano por exposição indevida no mercado de crédito”, nos termos do art. 30, 39, inciso IV ambos do CDC e art. 187 do CC.
Enquanto o ‘cashback’ representa um marketing através do qual o correntista pode ter atendido seus interesses ou ser prejudicado, nas compras a crédito socorre ao consumidor um direito: o chargeback.
Pode-se dizê-lo como ‘direito fundamental’ de proteção ao consumidor que permite determinada transação realizada, com cartão de crédito ou débito, ser revertida. Isso acontece quando o consumidor contesta ou desaprova certa cobrança. O chargeback está assegurado no Código de Defesa do Consumidor e regulamentos financeiros e é modelo de garantia para que os consumidores não sejam prejudicados por fraudes ou erros nas transações.
As principais hipóteses, sem exaustão para efetividade desse direito podem ser assim exemplificadas: contestação de autorização; contestação por fraude; conflitos de informação verificados pelo consumidor; contestação de documentação apresentada ou sonegada; contestação por processamento equivocado; ruptura de modelos de compliance; e contestação à transação, especialmente no consentimento ou anuência.
A Lei 14.181/21 que introduziu no mundo jurídico e atualizou o Código Defesa do Consumidor quanto ao tratamento ao superendividamento, fixou textualmente o conceito de crédito responsável como aquele fornecido: a) com as informações específicas e necessárias (art. 54-B); b) sem assédio, publicidades hiperbólicas e impulsionamentos (art. 54-C); c) sem repasse de riscos e sem abuso contra hipervulneráveis (art. 54-D). Por isso, crédito responsável na medida em que protege o mínimo existencial e evita a exclusão social.
Contudo, não ficou apenas nestas fortes diretrizes. Ao contrário, trouxe pioneiramente a possibilidade de o fornecedor de crédito ser ‘responsabilizado’ pela prática abusiva em continuar a cobrança diante do crédito contestado. Nesse caso, o texto de lei (que é norma de ordem pública) veda que o fornecedor realize ou proceda “à cobrança ou ao débito em conta de qualquer quantia que houver sido contestada pelo consumidor em compra realizada com cartão de crédito ou similar, enquanto não for adequadamente solucionada a controvérsia, desde que o consumidor haja notificado a administradora do cartão com antecedência de pelo menos 10 (dez) dias contados da data de vencimento da fatura”.
Eis um passo importante na tutela do consumidor. Entretanto, anote-se não ser fácil porque se trata de ‘relação jurídica obrigacional complexa’ onde é verificável verdadeira cadeia de fornecimento, com múltiplos fornecedores implícitos presentes sem que o consumidor tenha ciência, a saber: o emissor do cartão de crédito (banco) ; a bandeira do cartão (administradora); a credenciadora do cartão (a empresa que recebe o pagamento através do dispositivo eletrônico (maquininha); e, por fim, o estabelecimento comercial que vende o produto ou presta o serviço contratado.
Nesta situação, os órgãos de proteção ao consumidor devem estar atentos para responsabilidade solidária da cadeia de fornecimento, a fim de garantir o direito estabelecido na Lei 14.181/21. Assim, enquanto o ‘cashback’ revela-se um risco, o chargeback um direito: a medida entre um e outro significa transformar pessoas em ‘consumidores passivos ou seres consumidos pelo mercado financeiro’.9
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1 Claudia Lima Marques. Confiança no comércio eletrônico e a proteção do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
2 Ver o nosso Fernando Rodrigues Martins. Neurolaw”, neurodireitos e comércio eletrônico como lacunas éticas no sistema jurídico. Por uma metodologia do direito digital: nove diretrizes para sobrepor a autorregulação algorítmica pela regulação humana. RDC. v. 154. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2024.
3 Fernando Rodrigues Martins; Keila Pacheco Ferreira. Verticalidade digital e direitos transversais: positivismo inclusivo na promoção dos vulneráveis. RDC. v. 147. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023. Escrevemos na oportunidade: “Com a Internet e propriamente pelas plataformas digitais, por meio de seus algoritmos, outras modalidades de induzimento ganham mais “eficiência”, atendendo às exigências de resultados positivos para o mercado com maiores chances de êxito aos fornecedores. Vale dizer: as máquinas desempenham nítido “controle tecnológico digital”, impondo a verticalização da “irresistibilidade” dos meios utilizados pelos fornecedores sobre a “vontade” dos consumidores”.
4 Orlando Gomes. O poder legislativo da empresa. In Novos temas de direito civil, Rio de Janeiro: Forense, 1983.
5 Ronaldo Porto Macedo Júnior. Contratos relacionais e defesa do consumidor. 2. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 153.
6 Stefano Rodotà. El derecho a tener derechos. Madrid: Editorial Trotta, 2014.
7 Claudia Lima Marques; Fernando Rodrigues Martins. Sociedade de crédito digital e responsabilidade civil: novos direitos.
8 Claudia Lima Marques. Boa-fé nos serviços bancários, financeiros, de crédito e securitários e o Código de Defesa do Consumidor: informação, cooperação e renegociação? RDC. v. 43. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 215 - 257. Esclarece: “Note-se a unilateralidade da lei tutelar, que impõe deveres ao fornecedor e assegura direitos aos consumidores, uma vez que ao consumidor é assegurado um direito de "liberdade de escolha" (art. 6.º, II, in fine), de informação (art. 6.º, III) e de proteção contra abusos informativos (art. 6.º, IV). Em matéria de serviços bancários, de crédito e financeiros, o Código de Defesa do Consumidor impõe ao fornecedor um dever de informar qualificado, que aqui será denominado de "dever de transparência", inspirado no Transparenzgebot do direito alemão”.
9 Stefano Rodotà. El derecho a tener derechos. Madrid: Editorial Trotta, 2014, p. 124.