Operações entre sociedades do mesmo grupo
Maior rigor regulatório
Antônio Velloso Carneiro
I. - Imposição de Lealdade nas Operações
Comutativos e aleatórios são espécies de contratos onerosos, que se opõem aos gratuitos, onde somente uma parte aufere proveito. Para o contrato ser comutativo, os ônus e bônus advindos para cada parte devem ser equivalentes, e as prestações devidas de parte a parte devem ser certas. Exemplo de contrato gratuito é a doação. A compra e venda com preço certo, o mútuo e a locação são contratos comutativos.
Já no contrato aleatório, as prestações, ou parte delas, são incertas. As opções de compra ou venda de ações são contratos aleatórios, pois a definição sobre montante e ganhador do lucro, se houver, dependerá das oscilações futuras do preço da ação. Por razões análogas, o contrato de swap também é aleatório.
Com essa vedação de gratuidade e imposição de bases “estritamente” comutativas e de pagamento “adequado”, a Lei 6404/76 estabelece padrão de lealdade nos contratos entre sociedades ligadas. Não há definição legal para “estritamente” ou “adequado”. No campo da interpretação, os doutrinadores ensinam que a Lei 6404/76 impõe aos administradores das sociedades ligadas celebrar contratos: (i) em condições objetivamente equivalentes àquelas em que os contratos seriam celebrados com terceiros; e (ii) oportunos para ambas as sociedades, e não para uma só, menos ainda se for a controladora.
De fato, a celebração em condições de mercado é bom começo, mas não serve de atestado de comutatividade do negócio. Em se tratando de conceito aberto, como ocorre com “lealdade”, o exame da oportunidade do negócio entre sociedades ligadas só pode ser feito caso a caso, e não sem alguma dose de subjetivismo.
Administradores e acionista controlador podem ser responsabilizados por perdas e danos sofridos pela sociedade, se os requisitos do artigo 245 da Lei 6404/76 não forem atendidos. No âmbito das companhias abertas, a CVM qualifica tal infração como grave1, para fins de aplicação das sanções administrativas previstas na Lei 6385/76, que dispõe sobre a organização e os poderes da CVM.
De certa forma, a Lei 6404/76 antecedeu em 25 anos o Código Civil2, que agora prevê, como regra geral, a anulabilidade do contrato por lesão e estado de perigo, bem como a alteração ou até resolução do contrato por onerosidade excessiva ou violação do princípio da boa-fé. Tais institutos do Código Civil reforçam o artigo 245 da Lei 6404/76, pois a violação pode resultar não apenas em responsabilização pessoal dos administradores e do controlador, senão também no próprio desfazimento da operação. Tudo conforme as peculiaridades do caso concreto.
II. - O Tratamento Contábil das Operações – Aspectos Jurídicos
As operações entre sociedades ligadas incluem-se no conceito contábil, muito mais amplo, de “transações entre partes relacionadas”. O artigo 247 da Lei 6404/76 prevê que as notas explicativas das demonstrações financeiras devem divulgar “o montante das receitas e despesas entre a companhia e as sociedades coligadas e controladas”. O Pronunciamento XXIII do Ibracon3, aprovado pela Deliberação CVM 26/86 e aplicável às companhias abertas, contém diretrizes sobre identificação e divulgação das transações entre partes relacionadas. Esse pronunciamento, todavia, nunca teve grande repercussão prática.
O Conselho Federal de Contabilidade (“CFC”), principal fonte de normas contábeis no Brasil, até pouco tempo atrás não disciplinava a divulgação das transações entre partes relacionadas. Dentro da tendência cada vez mais acentuada de os órgãos regulatórios criarem mecanismos de fortalecimento da chamada “governança corporativa”, em junho de 2003 o CFC aprovou, com a Resolução 973/03, a “NBC T 17 - Partes Relacionadas”4, da qual se destacam os seguintes pontos:
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As demonstrações financeiras devem “fornecer ao usuário e, principalmente, aos acionistas ou sócios minoritários elementos informativos suficientes para compreender a magnitude, as características e os efeitos” das transações entre partes relacionadas;
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Em sentido sempre amplo, “partes são consideradas relacionadas se uma delas puder controlar a outra ou se exercer influência significativa sobre as decisões financeiras e operacionais tomadas por essa outra”;
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A divulgação das transações entre partes relacionadas deve considerar “se a transação foi efetuada em condições semelhantes às que seriam aplicadas entre partes não-relacionadas (quanto a preços, prazos, encargos, qualidade, etc.) que contratassem com base em sua livre vontade e em seu melhor interesse”.
A bem da verdade, a NBC T 17, que deve ser observada a partir de 31.12.2003, não representa reviravolta em relação àquelas diretrizes que a CVM já mandava observar desde 1986. O mecanismo adotado pelo CFC para dar eficácia à NBC T 17 foi a edição, no mesmo dia, da Resolução 974/03, que trata da auditoria independente das transações entre partes relacionadas. A emissão de parecer de auditoria sem ressalvas ou parágrafos de ênfase é fundamental para que a administração da companhia transmita imagem de lisura e transparência aos acionistas, à CVM e ao mercado em geral. Atentos a isso, os administradores devem proceder com maior zelo e minúcia na divulgação das transações entre partes relacionadas.
Destacamos os seguintes pontos da Resolução 974/03:
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“O auditor deve revisar as informações fornecidas pela administração da entidade, relativas a partes relacionadas, aplicando os procedimentos necessários à finalidade, natureza e extensão dessas transações, com especial atenção àquelas que pareçam anormais ou envolvam partes relacionadas não-identificadas”;
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“No curso da auditoria, o auditor precisa ficar alerta para transações que pareçam inusitadas (...)”, do que são exemplos: transações com condições negociais anormais, transações que aparentemente careçam de “motivo negocial lógico” ou transações processadas de “maneira inusitada”;
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O auditor independente deve acrescentar parágrafo de ênfase no parecer de auditoria, se for o caso, “indicando que a entidade realiza volume significativo de operações com partes relacionadas em condições diferentes às de mercado; os resultados dessas operações poderiam ser diferentes se realizadas em condições de mercado.”
Certas disposições da Resolução 974/03, se interpretadas literalmente, podem levar ao excesso de impor ao auditor independente a formação de juízo acerca dos assuntos gerenciais e até jurídicos da atividade da companhia, o que a lei não permite. Assim como o contador que subscreve as demonstrações financeiras, o auditor independente é contabilista e só tem qualificação para tratar de assuntos contábeis.
Expressões como “transações com condições negociais anormais” são empirismos da Resolução 974/03. A expressão “anormais” deve ser interpretada à luz das práticas contábeis, pois não cabe ao auditor independente – e nem mesmo ao contador que subscreve as demonstrações financeiras – investir-se na condição de empresário e decidir o que é bom ou ruim, normal ou anormal, para a entidade auditada. O auditor independente também não poderá prestar consultoria sobre a legalidade de atos, pois essa atividade é privativa de advogados.
Examinar cada um dos pontos sensíveis da Resolução 974/03 extrapolaria o escopo deste artigo. A mensagem geral é de que a Lei 6404/76 sempre atribuiu ao Conselho de Administração e ao Conselho Fiscal competência para fiscalizar os atos da diretoria, e que os acionistas minoritários também já dispõem de poderoso arsenal, administrativo e judicial, para impugnar atos abusivos da administração. Seria simplista, comodista e sobretudo ilegal exigir que o auditor independente se transforme em “xerife da governança corporativa”, imiscuindo-se indevidamente em juízos de conveniência ou em matéria jurídica.
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1Instrução CVM nº 131, de 17.8.1990.
2Lei 10.406/02.
3Instituto dos Auditores Independentes do Brasil, atual denominação do Instituto Brasileiro de Contadores.
4Na terminologia do CFC, “NBC” significa “norma brasileira de contabilidade”, e “T” significa norma técnica. As normas do CFC sobre comportamento profissional são designadas pela sigla “NBC P”.
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* Advogado do escritório Pinheiro Neto Advogados
* Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.
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