O bilionário Warren Buffet divulgou nova carta aos acionistas da Berkshire Hathaway, apontando elementos importantes para a sua sucessão e condução pós-morte do seu patrimônio.
Como elemento central, consta a continuidade das doações já iniciadas em vida, de modo que, ao concluir-se o processo após o seu falecimento, 99% do seu patrimônio será disponibilizado através de doações - atendendo ao máximo com o compromisso firmado no Giving Pledge (também subscrito, no Brasil, por Elie Horn e David Vélez).
Note-se que as doações seguirão através das fundações filantrópicas ligadas à sua família e, especialmente, geridas por seus filhos. Contudo, o compromisso de utilização dos valores para atividades filantrópicas permanece, condicionando, ao que tudo indica, a atuação das fundações.
Não cabe neste texto a análise completa da interessante carta, mas apenas destacar alguns pontos relevantes quanto ao planejamento patrimonial e sucessório.
i) O primeiro ponto a frisar é a necessidade de superação da ideia de que tal planejamento somente é aplicável aos bilionários ou multimilionários. Este mito está incutido no imaginário brasileiro, dificultando a prática de atos simples, porém bastante úteis para o bom encaminhamento sucessório.
Testar, doar, declarar vontades diversas, organizar cláusulas de sucessão em empresas das quais é sócio, etc., ainda são atos que não fazem parte da cultura sucessória brasileira, pelo menos não do modo como podem ser.
Como resultado, é via muito comum encontrar conflitos relacionados ao tema, afetando gravemente as famílias, terceiros e o próprio legado da pessoa falecida. Veja-se: com o mínimo de patrimônio que seja, é possível planejar e otimizar a sucessão por via formais (exigidas pelo direito) e informais (de praxe na cultura).
ii) Por outro giro, a carta demonstra como a filantropia pode assumir o papel central na construção do planejamento patrimonial e sucessório. Não apenas como mais um ato em meio a uma série de proteções cabíveis, mas sim como o link essencial entre todas as vontades e valores da pessoa e a conexão com os direitos de seus herdeiros.
Note-se que a carta, como tipicamente ocorre no caso de Warren Buffet, é repleta de apontamentos sobre valores – inclusive acerca daqueles que buscou transmitir na relação com os seus filhos. Em ponto particularmente relevante, ele assim destaca:
“Com essa filosofia, eu tenho vivido da forma que eu queria desde os meus vinte anos de idade, e assisti meus filhos crescerem e se tornarem cidadãos bons e produtivos.
Eles têm visões diferentes em muitos casos de mim e de seus irmãos, mas têm valores comuns que são inabaláveis. Susie Jr., Howie e Peter gastaram mais tempo cada ajudando os outros do que eu passei. Eles gostam de estar confortáveis financeiramente, mas não estão preocupados com a riqueza.
A mãe deles, de quem eles aprenderam esses valores, estaria muito orgulhosa. Assim como eu.”
A declaração não surge por acaso e isoladamente. Ela é coerente com o que o declarante buscou construir ao longo de sua vida. Entendendo este link, torna-se mais fácil destrinchar o “como”, o “quando”, o “quem” e “em qual proporção”.
Este fio nos leva a compreender que, de acordo com a dinâmica valorativa de Warren, não há intenção de criar dinastias (ele, aliás, declara expressamente isso). Assim, a sociedade é retribuída pela riqueza que lhe foi proporcionada, arrastando-se um legado que se amplia para além de uma única família. Difícil para alguns digerir isso, mas este é um modo de pensar o futuro em um mundo com crescente concentração de renda e oportunidades.
iii) Neste sentido, outro aspecto merece destaque: as decisões foram previamente tratadas com os herdeiros, que, segundo Warren, tiveram clareza acerca de suas reais intenções e demonstraram boa-fé e atitude cooperativa. Algo que nem sempre é simples, mas que pode mudar tudo no processo sucessório.
As leituras prévias dos documentos pelos herdeiros, periodicamente atualizados, além de encontros destinados a tratar diretamente sobre as questões e contribuições de cada um podem funcionar como grandes facilitadores, prevenindo uma série de conflitos após o falecimento e a sobreposição das emoções de luto e outras associadas.
A carta traz o lembrete:
“Eu tenho mais uma sugestão para todos os pais, sejam eles pobres ou ricos. Quando seus filhos estiverem maduros, peça para eles lerem seu testamento antes de você assiná-lo. (...)
Se algum deles tiver dúvidas ou sugestões, escute com cuidado e adote as que você considerar sensatas.
(...)
Charlie e eu também testemunhamos alguns casos onde um testamento de pais ricos que foi completamente discutido antes da morte ajudou a tornar a família mais próxima.
O que pode ser mais satisfatório?”
iv) Por fim, as questões valorativas declaradas não devem ocultar as vantagens financeiras e tributárias obtidas neste encaminhamento. Elas existem e as vias escolhidas (como as fundações) não são aleatórias. Aliás, os caminhos selecionados devem ter coerência com os valores e vontades declaradas, pois, em regra, devem facilitar o redirecionamento patrimonial e protegê-lo de ataques comuns.
Por isso, ao revés do que indica o senso comum, não há qualquer contradição no fato de a doação ser realizada para as fundações geridas pela própria família, desde que evidentes os objetivos públicos/sociais das mesmas e a utilização para os fins filantrópicos indicados.
Concluindo, dentre outras possibilidades, a carta serve para ilustrar a dinâmica essencial entre os valores da família, os direitos envolvidos e as vias legais disponíveis para consecução dos objetivos relacionados ao patrimônio e sucessão.
Observe o leitor (e tire suas próprias conclusões), enfim, que estes pontos podem gerar valiosas inspirações para o planejamento em cada caso, de modo que a filantropia evidencia um interessante exemplo, assim como o alinhamento prévio com os herdeiros (algo realizado muito parcamente no Brasil).
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1 https://braziljournal.com/a-carta-emocionante-de-buffett-sobre-heranca-e-oportunidades/