A litigância abusiva é um fenômeno que desafia a eficiência e a credibilidade do sistema de justiça brasileiro, caracterizando-se pelo uso inadequado do aparato judicial para finalidades que desviam do legítimo interesse de resolução de conflitos. Definida pela recomendação 159 do CNJ - Conselho Nacional de Justiça, em vigor desde 23 de outubro de 2024, a prática envolve condutas processuais que comprometem a boa-fé e a cooperação no processo, como a apresentação de ações repetitivas e infundadas, o fatiamento de litígios em múltiplas demandas e o uso do sistema judicial como instrumento de pressão ou intimidação.
No Brasil, os impactos da litigância abusiva são amplamente evidenciados pelos dados apresentados no relatório Justiça em números 2024, que aponta a existência de 83,8 milhões de processos em tramitação no país em 2023, um aumento de 1,1% em relação ao ano anterior. Esse volume resulta, em grande parte, da entrada de 35,3 milhões de novos casos no mesmo período, o maior patamar da série histórica, com crescimento de 9,4% em comparação a 2022. A judicialização excessiva e fragmentada, características da litigância abusiva, contribuem diretamente para o congestionamento processual, que se manteve em 70,5%, ou seja, a cada 100 processos tramitados, apenas 30 foram efetivamente resolvidos no mesmo ano.
A fragmentação de demandas, conhecida como fatiamento de ações – quando há divisão, de forma temerária, de uma única causa em várias ações - é um exemplo emblemático do impacto da litigância abusiva. Essa prática exige que magistrados e servidores dediquem tempo e recursos a demandas similares ou idênticas, gerando desperdício e inflacionando artificialmente o número de processos. O tempo médio de tramitação dos processos pendentes no Brasil foi de 4 anos e 3 meses, sendo ainda mais elevado em casos de execução fiscal, que podem durar 6 anos e 9 meses.
Além dos efeitos sobre o funcionamento da Justiça, a litigância abusiva também gera impactos econômicos significativos. As despesas totais do Judiciário em 2023 alcançaram R$ 132,8 bilhões, o equivalente a 1,2% do PIB brasileiro, refletindo os altos custos operacionais para lidar com o volume crescente de processos. Essas despesas são agravadas pelo uso estratégico de litígios por escritórios especializados, muitas vezes movidos por interesses econômicos que comprometem a eficiência do sistema judicial e aumentam os custos para empresas e cidadãos.
Setores como o bancário, a saúde suplementar e o transporte aéreo são particularmente vulneráveis a práticas de litigância predatória. No setor bancário, por exemplo, escritórios ingressam com milhares de ações idênticas contra instituições financeiras, alegando abusividade de cláusulas contratuais padrão. Já na saúde suplementar, consumidores acionam judicialmente operadoras de planos de saúde para obter coberturas de tratamentos estéticos não previstos em contrato, sobrecarregando o sistema judicial e gerando custos adicionais que são repassados aos beneficiários. No setor aéreo, a litigância abusiva, marcada por ações repetitivas e consumidores serializados, aumenta custos operacionais e sobrecarrega o Judiciário. Já houve cancelamento de rotas e o setor alerta para os riscos econômicos que podem comprometer operações em regiões menos rentáveis.
Apesar dos desafios, o Relatório Justiça em Números 2024 aponta avanços significativos, como o aumento da digitalização dos processos, que já representam 90,6% dos casos em tramitação, e a adoção do modelo "Juízo 100% Digital", que visa acelerar procedimentos e reduzir custos. Essas iniciativas reforçam o papel do Judiciário em adotar soluções inovadoras para enfrentar a litigância abusiva.
O combate a essa prática exige esforços coordenados e assertivos, como os previstos na recomendação 159 do CNJ. A implementação de ferramentas tecnológicas, a promoção de métodos alternativos de resolução de conflitos e a aplicação de sanções por má-fé processual são medidas essenciais para mitigar os danos ao sistema de justiça e à economia. A litigância abusiva é, sem dúvida, um dos maiores desafios para a eficiência e a credibilidade do Judiciário brasileiro, mas também uma oportunidade para fortalecer sua capacidade de servir à sociedade de maneira justa e eficaz.