Desde do dia 8 de janeiro de 2023 quando milhares de pessoas invadiram, atacaram e depredaram, na Praça dos Três Poderes em Brasília, o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o STF e que culminou com a prisão de cerca de 1500 pessoas entre os dias 8 e 9 e, posteriormente, até o momento, na condenação, em julgamento pelo STF, de mais de 250 pessoas por diversos crimes, entre os quais os de associação criminosa, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado etc., que juristas, advogados e políticos discutem sobre a ocorrência ou não dos referidos crimes.
O tema voltou à tona na última semana com a descoberta por parte da Polícia Federal (PF) de um plano – Operação Punhal Verde Amarelo – para matar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o vice-presidente Geraldo Alckimin e o ministro do STF Alexandre de Moraes.
No último dia 21 (quinta-feira) a Polícia Federal concluiu inquérito indiciando 37 pessoas – pelos crimes de Abolição violenta do Estado Democrático de Direito, Golpe de Estado e organização criminosa – entre as quais, o ex-presidente Jair Bolsonaro; o general da reserva do Exército Braga Netto, ex-ministro da Casa Civil e da Defesa e candidato a vice-presidente na chapa que perdeu a eleição de 2022; o general da reserva Augusto Heleno, ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI); o policial federal Alexandre Ramagem, ex-diretor da Agencia Brasileira de Informações (Abin); Valdemar Costa Neto, presidente do Partido Liberal e outros ex-integrantes do governo de Bolsonaro.
Sem qualquer pretensão de adentrar no mérito do processo daqueles que já foram condenados pelo STF, bem como do recente inquérito concluído pela PF, faz-se necessário algumas breves considerações, especialmente, sobre os crimes da Abolição Violenta do Estado Democrático de Direito e de Golpe de Estado.
A Lei nº 14.197/21, revogando expressamente a Lei nº 7.710/83 – que definia os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social - introduziu um novo título na Parte Especial do Código Penal, denominado “Dos Crimes Contra o Estado Democrático de Direito”, superando quaisquer referências à “segurança nacional”, expressão no dizer de CARLOS CANEDO, que possui carga extremamente negativa, “intimamente ligada a motivos que determinaram procedimentos ilegais e abusivos de repressão política ao longo da história”.1
Entre os crimes agora previstos no Código Penal (CP), além dos crimes da Abolição Violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L) e de Golpe de Estado (art. 359M), objeto de análise neste pequeno opúsculo, estão: “Atentado à soberania” (art. 359-I); “Atentado à integridade nacional (art. 359-J); “Espionagem (art. 359-K); “Impedimento ou perturbação do processo eleitoral” (art. 359-N), “Violência política” (art. 359-P) e “sabotagem” (art. 359-R).
Passemos então a brevíssima, mas necessária análise dos seguintes tipos penais:
Abolição violenta do Estado Democrático de Direito
Art. 359-L do CP – Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais:
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência.
Golpe de Estado
Art. 359-M do CP – Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído:
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência.
Ambos os crimes objeto de apreciação possuem características complexas, não podendo, portanto, serem analisados no mesmo contexto de tipos penais com estruturas mais simples, como por ex. o tipo penal de homicídio (“matar alguém”).
Tanto o tipo penal de “Abolição violenta do Estado Democrático de Direito” quanto o de “Golpe de Estado” – chamados de “tipos penais de insurreição”2 – são crimes, via de regra, plurissubjetivos3, embora nada impeça, excepcionalmente, que seja praticado por uma única pessoa.
São, também, crimes de perigo concreto4 que se consuma independente da ocorrência de um resultado naturalístico. Há uma espécie de antecipação do legislador em relação a realização do tipo penal, já que o mesmo estará consumado no momento em que o bem jurídico é colocado em situação ou condição objetiva de provável lesão, não sendo, portanto, necessário a ocorrência efetiva de um dano. Evidente que nos crimes analisados, caso o resultado do dano ocorresse, ou seja, a com a efetiva abolição do Estado Democrático de Direito ou a concretização do Golpe de Estado com a deposição do governo legitimamente constituído, “a norma tornar-se-ia inaplicável necessariamente, porque as novas instituições não se iriam investir contra a vontade de quem criou e de quem as regeria”.5
Os crimes em questão, são chamados, também, de crimes de empreendimentos em que havendo o início da execução e, portanto, configuração da tentativa completou-se o iter criminis (caminho do crime). O crime está consumado. Assim, de acordo com NILO BATISTA e RAFAEL BORGES, “essa sobreposição de momentos, presente no crime de atentado, inviabiliza a caracterização da desistência, dependente de que o início da execução, interrompida por ato voluntário do agente, não seja bastante à consumação delitiva”.6
A depredação de prédios públicos (Palácio do Planalto, Congresso Nacional e STF) na Praça dos Três Poderes, em 8 de janeiro de 2023, que, como já dito, ensejou a prisão de cerca de 1500 pessoas (nos dias 8 e 9), inclusive do Secretário de segurança pública do Distrito Federal e do Comandante da Polícia Militar, vem, de acordo com NILO BATISTA e RAFAEL BORGES, “atraindo a incidência dos artigos 359-L e 359-M do Código Penal”.7
Ainda, segundo o professor NILO BATISTA e RAFAEL BORGES,8
a partir de evidências recolhidas em diligências investigatórias, que o ato criminoso constitui desdobramento das manifestações golpistas organizadas após o segundo turno das eleições de 2022. Tornara-se comum manter acampamentos com pleitos de golpe e intervenção militar próximos a quartéis e outras unidades das Forças Armadas, que tampouco se manifestaram com clareza acerca de tais eventos. Aliás, a depender das atividades que foram efetivamente desenvolvidas pelo golpistas acampados, não seria exagero enquadrá-los, mesmo os que não tiveram lugar no cenário da depredação, nos limites do novo artigo 296, par. único do Código Penal”.9
É preciso esclarecer que, em relação a Operação Punhal Verde Amarelo para matar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o vice-presidente Geraldo Alckimin e o ministro do STF Alexandre de Moraes, que poderia, caso seja comprovado que se deu o início da execução dos crimes de homicídio, responderam os agentes por homicídio tentado. Contudo, ainda que não se caracterize a tentativa de homicídio em relação as autoridades citadas, como defendem e, propositalmente, confundem alguns, não há como negar que o referido plano está dentro de um contexto mais amplo das tentativas de Abolição Violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L) e de Golpe de Estado (art. 359M), que se consumam, como já firmado, com a simples execução dos crimes.
Por fim, espera-se que aos futuros denunciados pelos referidos crimes sejam processados e julgados com respeito ao devido processo legal, ao contraditório e a ampla defesa, princípios próprios do Estado Democrático de Direito que tentaram abolir.
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1 SILVA, Carlos Augusto Canedo Gonçalves da. Crimes políticos. Belo Horizonte: Del Rey, 1993.
2 BATISTA, Nilo e BORGES, Rafael. Crime contra o estado democrático de direito. Rio de Janeiro: Revan, 2023.
3 Crimes plurissubjetivos ou de concurso necessário são aqueles que exigem a participação de dois ou mais agentes, nas impedindo que haja divisão de tarefas.
4 “o perigo integra o tipo como elemento normativo, de modo que o delito se consuma com sua real ocorrência para o bem jurídico, isto é, o perigo deve ser efetivamente comprovado”. (PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, volume 1: parte geral. 12ª ed. ver. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013).
5 BATISTA, Nilo e BORGES, Rafael, op. cit.
6 BATISTA, Nilo e BORGES, Rafael, op. cit.
7 Idem.
8 BATISTA, Nilo e BORGES, Rafael. Crimes contra o Estado democrático de direito... op. cit.
9 Art. 286 – Incitar, publicamente, a prática de crime: Pena – detenção, de três a seis meses, ou multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem incita, publicamente, animosidade entre as Forças Armadas, ou delas contra os poderes constitucionais, as instituições civis ou a sociedade.