O futebol é “a paixão nacional que pulveriza diferenças sociais, econômicas e ideológicas, ao tempo em que une torcidas em torno de um só propósito: reverenciar o espetáculo da bola.” Trata-se de um patrimônio público cultural brasileiro, de reconhecida relevância e manifesto interesse social. 1
No Brasil, o futebol é uma modalidade desportiva regulamentada por uma série de leis, a exemplo das assim chamadas lei Pelé e lei geral do esporte, respectivamente as leis Federais 9.615/98 e 14.597/23. Ambas as leis se posicionam expressamente contra manifestações antiesportivas, dentre elas o racismo, a xenofobia, a homofobia, o sexismo e qualquer outra forma de discriminação2. A mesma lógica é reproduzida no regulamento geral das competições da CBF - Confederação Brasileira de Futebol3. Isso não poderia ser diferente, sobretudo porque um dos objetivos fundamentais do nosso país é, na forma do art. 3º, IV, da CF/88, “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”
Eventuais manifestações antiesportivas que possam configurar racismo, homofobia, entre outros, conquanto evidentemente inadmissíveis e intoleráveis por natureza, podem ser punidas na forma do CBJD - Código Brasileiro de Justiça Desportiva, criado pela resolução 01/03 do Conselho Nacional do Esporte, com alterações já implementadas desde então.
Nesse contexto, o art. 243-G do CBJD prevê, como infração disciplinar desportiva, “[p]raticar ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante, relacionado a preconceito em razão de origem étnica, raça, sexo, cor, idade, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência”. A pena para tal infração não é trivial: (i) suspensão (de 5 a 10 partidas, se praticada por atleta, treinador, médico ou membro da comissão técnica, ou de 120 a 360 dias, se praticada por qualquer outra pessoa natural submetida ao CBJD); e (ii) multa de R$ 100,00 a R$ 100.000,00.
A gravidade da pena por infração ao referido art. 243-G pode ser ainda pior. Muito pior, na verdade.
De acordo com o seu § 1º, se a infração prevista no dito artigo for “praticada simultaneamente por considerável número de pessoas vinculadas a uma mesma entidade de prática desportiva, esta [e.g., o clube de futebol] também será punida com a perda do número de pontos atribuídos a uma vitória no regulamento da competição, independentemente do resultado da partida, prova ou equivalente, e, na reincidência, com a perda do dobro do número de pontos atribuídos a uma vitória no regulamento da competição, independentemente do resultado da partida, prova ou equivalente; caso não haja atribuição de pontos pelo regulamento da competição, a entidade de prática desportiva será excluída da competição, torneio ou equivalente.” Aqui, portanto, a pena mais grave poderia ser a exclusão de um clube de futebol de determinada competição.
Já o § 2º do art. 243-G estabelece que o clube de futebol poderá ter contra si aplicada também a pena de multa, caso a sua torcida pratique “os atos discriminatórios nele tipificados,” sendo certo que “os torcedores identificados ficarão proibidos de ingressar na respectiva praça esportiva pelo prazo mínimo de setecentos e vinte dias.” Isso aconteceu, por exemplo, em um recente episódio levado a julgamento perante o STJD - Superior Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol, no qual determinado clube brasileiro da Série A do campeonato masculino foi condenado ao pagamento de multa de R$ 50.000,00 e dois de seus torcedores, que praticaram atos discriminatórios, foram afastados da respectiva praça esportiva por 900 dias. 4
Por fim, o § 3º do art. 243-G do CBJD é o mais perigoso, no sentido de que, se a infração for considerada de “extrema gravidade,” o STJD “poderá aplicar as penas dos incisos V, VII e XI do art. 170” que são, respectivamente, perda de pontos, perda de mando de campo e, nos casos mais sensíveis, eliminação. Com efeito, a depender da gravidade do ato discriminatório praticado no âmbito do futebol, um clube pode ser até eliminado de uma competição.
Os cânticos homofóbicos entoados por uma torcida com a finalidade de, sabe-se lá por qual motivo, atacar a outra torcida, provocando-a, infelizmente são um tanto quanto frequentes no futebol. Eles encaixam-se, em regra, no tipo infracional descrito no art. 243-G do CBJD, sendo um inequívoco ato discriminatório (desdenhoso ou ultrajante) relacionado a preconceito em razão de sexo, por exemplo.
Uma questão interessante que decorre desse debate é a seguinte: será que as infrações antiesportivas consubstanciadas em atos homofóbicos são alcançadas pelo fenômeno da prescrição, que, também no direito desportivo, é um meio de extinção da punibilidade (CBJD, art. 164, IV)? Parece-nos que não.
A resposta negativa à indagação acima tem amparo na técnica da interpretação conforme à CF5, “utilizável quando a norma impugnada admite, dentre as várias interpretações possíveis, uma que a compatibilize com a Carta Magna6” e plenamente aplicável nos julgamentos do STJD7. Valendo-se de tal técnica para compreender o real alcance do art. 165-A do CBJD, que cuida da prescrição, é lícito concluir que a única interpretação desse dispositivo normativo que se mostra compatível com o texto constitucional é aquela que estabelece ser imprescritível, no âmbito da Justiça Desportiva, as infrações disciplinares previstas no indigitado art. 243-G que se revestem de teor racista, a exemplo dos atos homofóbicos, que não se limitam no futebol, por óbvio, a certos cânticos entoados por torcidas.
De fato, essa é a única interpretação possível do instituto da prescrição em relação aos repudiantes atos discriminatórios listados, de modo exemplificativo, no art. 243-G do CBJD. O STF já deixou muito claro, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26, de relatoria do ministro Celso de Mello, que “as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na lei 7.716, de 08/01/89.” 8
Ficou consignado, naquela ocasião, que ainda que “a homofobia e a transfobia possam não se enquadrar no sentido usualmente atribuído ao termo racismo na linguagem popular, é certo que esta Corte, encarregada de interpretar o sentido e o alcance do texto constitucional, manifestou-se de forma inequívoca a respeito do alcance a ser dado a esse conceito, adotando definição abrangente.”
Citando o paradigmático Caso Ellwanger, o STF registrou também que foi fixado “o entendimento de que ‘o racismo é antes de tudo uma realidade social e política, sem nenhuma referência à raça enquanto caracterização física ou biológica, refletindo, na verdade, reprovável comportamento que decorre da convicção de que há hierarquia entre os grupos humanos, suficiente para justificar atos de segregação, inferiorização e até de eliminação de pessoas’” e, diante desse conceito, “encampado por esta Corte, a vedação constitucional ao racismo é abrangente o suficiente para abarcar a proibição de toda e qualquer forma de ideologia que pregue a inferiorização e a estigmatização de grupos, a exemplo do que acontece com a comunidade LGBTI+.”
Na medida em que o Supremo enquadrou a homofobia – hipótese do caso concreto de que falamos acima – como crime de racismo, é evidente que a mesma regra do art. 5º, XLII, da CF/88, segundo o qual “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei,” se estende aos atos homofóbicos. Quer-se com isso dizer que a prática de atos homofóbicos – e de todos aqueles atos que podem ser classificados como racistas, na linha do que já decidiu o STF – é imprescritível 9 e essa lógica aplica-se com tranquilidade à Justiça Desportiva, tornando impositiva a rejeição de alegações de denunciados que buscam se valer da prescrição como meio de driblar a sua responsabilidade pela prática de infração disciplinar desportiva tão grave quanto a prática de conduta discriminatória – em razão do sexo, da raça, entre outras.
A imprescritibilidade que aqui se defende é uma inequívoca forma de combater a discriminação no esporte à luz do que dispõe a CF/88, lei maior do ordenamento jurídico brasileiro. Atos discriminatórios não são compatíveis com o desporto e não podem, em hipótese nenhuma, passarem ilesos. É certo que cada caso é um caso, afinal “cada processo hospeda uma vida,”10 mas não se pode deixar de examinar denúncias por atos homofóbicos, por exemplo, com base em prescrição, quando a ordem constitucional brasileira evidencia que tais atos são imprescritíveis e, portanto, devem ser analisados no mérito, para verificar se houve, de fato, a infração disciplinar desportiva que se reputa ter havido.
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Paulo Dantas e Gustavo Lisboa, Erro de direito da arbitragem de futebol, Consultor Jurídico, 2/11/2024, disponível em https://www.conjur.com.br/2024-nov-02/erro-de-direito-da-arbitragem/.
Assim já decidiu o STF, aplicando o art. 216 da CF (cf. ADI 5450, rel. Min. Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, julgado em 18/12/2019).
Art. 11, XVII, da Lei Geral do Esporte. Por sua vez, o art. 2º, III, da Lei Pelé prevê o princípio da democratização como base do desporto, “garantido em condições de acesso às atividades desportivas sem quaisquer distinções ou formas de discriminação.”
Art. 1º, § 1º, do Regulamento Geral das Competições CBF de 2021.
Cf. https://www.stjd.org.br/noticias/corinthians-e-multado-em-r-50-mil-por-acoes-de-torcedores.
“A interpretação conforme a Constituição é uma técnica interpretativa que ajusta, harmoniza e corrige a lei com a Constituição, elegendo diante de uma multiplicidade de modalidades interpretativas, aquela que deveria ser considerada constitucional.” (Georges Abboud, Processo constitucional brasileiro, 5ª ed., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 745).
STF, ADI 6096 ED, rel. Min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 14/06/2021.
Sobre o tema, ver Gustavo Favero Vaughn, O controle difuso de constitucionalidade no âmbito do STJD do futebol: “pode isso, Arnaldo”? Coluna Jus Desportiva, disponível em https://ibdd.com.br/o-controle-difuso-de-constitucionalidade-no-ambito-do-stjd-do-futebol-pode-isso-arnaldo/?v=19d3326f3137.
STF, ADO 26, rel. Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, julgado em 13/06/2019.
O STF já reconheceu também que a homotransfobia pode configurar crime de injúria racial e, tendo em vista que a injúria racial “constitui uma espécie do crime de racismo”, tal crime é imprescritível (cf. MI 4733 ED, rel. Min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 22/08/2023).
Cesar Asfor Rocha, Cartas a um jovem juiz: cada processo hospeda uma vida, Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.