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Fim do regime jurídico único: O que já podemos afirmar?

Em que pese ser possível, o Estado não está preparado para ser empregador pela CLT.

26/11/2024

Em 1988, a redação original do art. 39 da CF/88 estabeleceu que a União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios instituiriam, no âmbito de sua competência, um regime jurídico único para os servidores da Administração Pública direta, das autarquias e das fundações públicas.

Assim, os servidores públicos dos órgãos, autarquias e fundações da Administração Pública Federal, Distrital, Estadual e municipal ficaram jungidos ao regime do cargo público disciplinado em estatutos próprios ao passo que aos empregados públicos das empresas públicas e sociedades de economia mista foi reservado o regime do emprego público disciplinado na CLT.

Em 1998, a EC - Emenda Constitucional 19 extinguiu a imposição do regime jurídico para os agentes públicos, alterando o art. 39 do texto constitucional para estabelecer que a União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios instituiriam um conselho de política de administração e remuneração de pessoal, integrado por servidores designados pelos respectivos poderes.

A partir daí, para poder fazer uso o regime de emprego público para o pessoal da Administração direta, autárquica e fundacional, os entes políticos precisariam editar leis para regulamentar o novo art. 39 da CF/88, sendo um exemplo de tais normas a lei Federal 9.962/00.

Entretanto, no início do ano 2000 o Partido dos Trabalhadores, o Partido Democrático Trabalhista, o Partido Comunista do Brasil e o Partido Socialista do Brasil ingressaram com a ADIn 2.135/DF alegando uma inconstitucionalidade formal, a saber, a violação ao processo legislativo (pois não teria sido obedecido o rito de aprovação dos 3/5 dos votos em ambas as casas legislativas) e uma inconstitucionalidade material, qual seja, a infringência ao princípio da isonomia (vez que a EC permitiria uma diferenciação de regimes jurídicos na contratação de servidores).

Bom, esse fim do regime jurídico único ficou em compasso de espera a partir de 2007, quando, no bojo da acima mencionada ADIn, foi concedida em 02/08 daquele ano uma medida cautelar pelo STF que restaurou o texto original do art. 39 da CF/88 em detrimento da redação conferida pela EC/19.

Mais de 17 anos depois da concessão da medida cautelar, o STF, por maioria, em 06/11/24, julgou improcedente o pedido formulado na ADIn 2.135/DF e, tendo em vista o largo lapso temporal desde o deferimento da mencionada medida cautelar, atribuiu eficácia ex nunc àquela decisão de improcedência da ADI, esclarecendo, ainda, “ser vedada a transmudação de regime dos atuais servidores, como medida de evitar tumultos administrativos e previdenciários”.

Ou seja, pela decisão publicada no Diário da Justiça Eletrônico de 11/11/24, restou restaurada a redação do art. 39 da CF/88 conferida pela EC 19/98 e, mais uma vez, foi afastada a exigência de um regime jurídico único para a contratação de agentes públicos, passando a ser possível termos servidores públicos estatutários e empregados públicos celetistas na Administração direta, autárquica e fundacional.

Em que pesem os votos da ministra Carmen Lúcia (relatora) e do ministro Gilmar Mendes (que instaurou a divergência que redundou sendo a tese vendedora) já estarem disponíveis para consulta e análise, certamente é necessário aguardar a publicação do acórdão do julgamento da ADIn 2.135/DF para um melhor entendimento e aprofundamento da questão, de modo a estabelecer todas as possíveis consequências do julgamento.

Mas, com os elementos já disponíveis, é sim possível fazer algumas afirmações preliminares acerca do fim do regime jurídico único.

A segunda é a de que nem todas as funções dos agentes públicos da Administração direta, autárquica e fundacional podem ser exercidas sob o regime do emprego público.

As denominadas carreiras típicas de Estado, de que trata o art. 247 do ato das disposições constitucionais transitórias, como por exemplo as do serviço diplomático, das forças policiais, do Ministério Público, da Magistratura, de controle da administração e de fiscalização pública, detêm atribuições, natureza, garantias especiais e status constitucional que não se coadunam com o regime menos rígido da CLT.

É muito interessante avaliar esse tema a partir das manifestações do STF acerca do art. 1º da lei Federal 9.986/00, que estabelecia que a as agências reguladoras teriam suas relações de trabalho regidas pela CLT e legislação trabalhista correlata e teve sua eficácia suspensa em 19/12/00 por decisão do STF na ADIn 2.310/DF. A partir de referida decisão cautelar do STF, a doutrina predominante assentou que atividades exclusivas de Estado não podem ser atribuídas a prestadores de serviços submetidos à CLT.

Assim, além de lei específica, a adoção do regime celetista em detrimento do regime estatutário dependerá de uma não incidência sobre as chamadas carreiras típicas de Estado.

A terceira afirmação preliminar que podemos fazer é a de que esses futuros empregados públicos celetistas da Administração direta, autárquica e fundacional só poderão ser demitidos, à falta ainda de um posicionamento específico do STF, pelo menos nos mesmos moldes que restaram fixados no Tema 1022, onde, tendo o RE 688267 como leading case, restou decidido que “as empresas públicas e as sociedades de economia mista, sejam elas prestadoras de serviço público ou exploradoras de atividade econômica, ainda que em regime concorrencial, têm o dever jurídico de motivar, em ato formal, a demissão de seus empregados concursados, não se exigindo processo administrativo. Tal motivação deve consistir em fundamento razoável, não se exigindo, porém, que se enquadre nas hipóteses de justa causa da legislação trabalhista”.

E aqui, quanto a terceira afirmação, lembramos que no art. 3º da lei Federal 9.962/00 é estabelecido que o contrato de trabalho por prazo indeterminado somente será rescindido por ato unilateral da Administração Pública nas seguintes hipóteses: I – prática de falta grave, dentre as enumeradas no art. 482 da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT; II – acumulação ilegal de cargos, empregos ou funções públicas; III – necessidade de redução de quadro de pessoal, por excesso de despesa, nos termos da lei complementar a que se refere o art. 169 da CF e IV – insuficiência de desempenho, apurada em procedimento no qual se assegurem pelo menos um recurso hierárquico dotado de efeito suspensivo, que será apreciado em trinta dias, e o prévio conhecimento dos padrões mínimos exigidos para continuidade da relação de emprego, obrigatoriamente estabelecidos de acordo com as peculiaridades das atividades exercidas.

Uma quarta nota importante é considerar que, ao impedir expressamente a "transmudação de regime dos atuais servidores, como medida de evitar tumultos administrativos e previdenciários", a decisão do STF retira a eficácia da parte final do parágrafo primeiro do artigo primeiro da lei Federal 9.962/00, a qual estabelecia que "Leis específicas disporão (...) sobre a transformação dos atuais cargos em empregos".

Por fim, é mais do que relevante questionar em que medida a Administração Pública está preparada para a gestão de vínculos regidos pela CLT ou em que terá efetiva vantagem operacional e jurídica com a adoção de tal estrutura de relação de trabalho, ainda mais quando se considera a flexibilização havida no campo da terceirização dos serviços no âmbito do STF. A pergunta se faz tendo em mente, de logo, o fato concreto de que a utilização de contratos trabalhistas típicos por parte da Administração Pública não a desonera da observância dos princípios constitucionais, mormente daqueles estabelecidos pelo art. 37 da Carta de 1988, a exigir, a impessoalidade de sua conduta, a motivação de seus atos, a adoção do concurso público como forma obrigatória de ingresso, a submissão das remunerações aos tetos constitucionais, tudo a fazer com que os contratos de trabalho que vier a ajustar impliquem bem menos flexibilidade do que a detida pelo empregador comum. De outra parte, uma série de dificuldades adviriam das diferenças práticas na gestão dos diferentes regimes jurídicos, havendo, por exemplo, a necessidade, para evitar prejuízos relevantes, de uma série de controles que atualmente a gestão pública não considera, tais como a gestão cuidadosa da fruição efetiva das férias dos supostos servidores celetistas no espaço temporal denominado período concessivo, sob pena de configuração do direito à chamada dobra de férias, e a atenção a numerosas normas regulamentares da prestação de serviços sob contrato de trabalho. E, finalmente, cabe relembrar que, apesar de a adoção de um contrato celetista por parte de um ente público qualquer não afastar a possibilidade de edição de normas legais específicas pelo mesmo ente acerca de seus servidores, essas mesmas normas não poderão implicar derrogação de direitos previstos na CLT, o que resultaria em uma significativa perda de poderes por parte dos entes subnacionais no que toca à gestão de seu pessoal.

Aldem Johnston Barbosa Araújo
Advogado em Mello Pimentel Advocacia. Membro da Comissão de Direito Administrativo da OAB/PE. Especialista em Direito Público.

César Caúla
Procurador do Estado e sócio de Mello Pimentel Advocacia.

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