A jornada 6x1 não é apenas uma escala de trabalho; é o retrato de um sistema que perpetua desigualdades, aprofunda injustiças e compromete a saúde física, mental e social de milhões de brasileiros. Trabalhar seis dias consecutivos para descansar apenas um não é somente uma afronta ao trabalhador; é uma agressão silenciosa às famílias que perdem o convívio, às crianças que crescem sem a presença dos pais e à própria sociedade, que se torna vítima de um modelo que normaliza o adoecimento e a exaustão.
A Constituição Federal, em seu artigo 196, preconiza a saúde como um direito que deve ser garantido mediante políticas públicas, sociais e econômicas, que atuem especialmente sobre as causas que possam gerar risco de adoecimento e promovam um ambiente saudável. Para além da assistência médico-hospitalar, a atuação sobre os agentes que produzem o adoecimento, entre os quais está o trabalho, é essencial para assegurar o direito humano fundamental à saúde, conforme preconizado pela Constituição.
Além dos impactos na saúde individual, as consequências da escala 6x1 reverberam na sociedade, tornando-se um problema de saúde pública.
É impossível desconsiderar a estreita correlação entre a jornada 6x1 e os resquícios de uma sociedade escravocrata. A exploração dos corpos negros foi a base da economia brasileira, calcada em um padrão de subjugação e submissão a um sistema laboral desigual, perverso e adoecedor. Diversos estudos[1] evidenciam que a população negra é a mais afetada pela escala 6x1, predominantemente ocupando postos de trabalho de baixa remuneração e alta exaustão física e mental. Esse padrão perpetua uma herança racista que trata o corpo negro como força de trabalho descartável, negando-lhe o direito ao descanso, ao lazer e ao cuidado pessoal. Combater a escala 6x1 é também combater o racismo estrutural e reafirmar o compromisso com a dignidade humana.
Estudos mostram que jornadas prolongadas têm impactos negativos na saúde física e mental dos trabalhadores, incluindo estresse, fadiga, transtornos mentais e aumento do risco de doenças cardiovasculares. Segundo dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS)[2], problemas relacionados ao trabalho, como depressão e transtornos osteomusculares, atingem uma parcela significativa dos trabalhadores brasileiros.
Comparar a carga horária no Brasil com outros países é revelador. Enquanto o Brasil ainda adota uma jornada máxima de 44 horas semanais, outros países têm avançado na redução desse tempo. Na Europa, por exemplo, a França implementou uma jornada de 35 horas semanais, refletindo um compromisso com a qualidade de vida e a saúde dos trabalhadores. Já na América do Sul, a Argentina possui uma jornada média semanal inferior à brasileira, de 37 horas.
Pesquisas europeias, como a European Working Conditions Survey (EWCS)[3], indicam que jornadas mais curtas estão associadas a uma melhor adaptação da vida laboral aos compromissos familiares e sociais, além de menos impactos negativos na saúde dos trabalhadores. Essa evidência sustenta a necessidade de revisar os modelos brasileiros de jornada de trabalho para promover condições que valorizem tanto a produtividade quanto a qualidade de vida.
Reduzir a jornada de trabalho é mais do que um ato de justiça social; é uma medida de saúde pública. Ao limitar jornadas extenuantes, podemos prevenir o adoecimento, reduzir gastos com saúde e melhorar a qualidade de vida da população. Assim como Ivan Ilitch, personagem de Tolstói que, ao enfrentar a doença, percebeu a inutilidade de sua dedicação a um modelo de vida vazio, o Brasil precisa encarar a escala 6x1 como um sintoma de sua própria contradição. A redução da jornada de trabalho não é um luxo, mas uma necessidade constitucional, social e humana.
Nesse sentido, o fim da jornada 6x1 deve ser visto como parte de um esforço maior para reequilibrar as relações de trabalho, garantir dignidade ao trabalhador e construir uma sociedade que priorize o bem-estar coletivo. Trabalhar é necessário, mas viver plenamente é um direito inalienável. Essa é a vitória que o Brasil precisa conquistar agora.
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1 DIEESE. As dificuldades da população negra no mercado de trabalho. São Paulo: DIEESE, 2023. Disponível em: https://www.dieese.org.br/boletimespecial/2023/conscienciaNegra2023.pdf. Acesso em: 20 nov. 2024.
SANTOS, Rony; CAMPOS, Gisele. Os impactos dos racismos nas ocupações da população negra. Saúde e Sociedade, v. 32, n. 1, e220754pt, 2023. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/8hQbLKzCx54dBDbcWDx5T3F/. Acesso em: 20 nov. 2024.
2 IBGE. Pesquisa Nacional de Saúde 2019: percepção do estado de saúde, estilos de vida, doenças crônicas e saúde bucal: Brasil e grandes regiões. Rio de Janeiro: IBGE, 2020.
3 EUROFOUND. European Working Conditions Survey 2024. Dublin: European Foundation for the Improvement of Living and Working Conditions, 2024. Disponível em: https://www.eurofound.europa.eu/en/surveys/european-working-conditions-surveys/european-working-conditions-survey-2024. Acesso em: 20 nov. 2024.