O constitucionalismo feminista emerge como uma abordagem teórica e prática que busca redesenhar o direito constitucional a partir de uma perspectiva de gênero, questionando as estruturas tradicionais que reproduzem desigualdades. Essa visão propõe uma leitura inclusiva da constituição, visando garantir a igualdade material entre homens e mulheres e promover mudanças estruturais que contemplem as diversidades. No Brasil, esse movimento dialoga diretamente com decisões históricas do STF, que vêm incorporando reflexões de gênero em suas interpretações constitucionais.
O STF, como guardião da Constituição, tem um papel fundamental na concretização de direitos fundamentais e na promoção da igualdade de gênero. Decisões emblemáticas mostram como o constitucionalismo feminista influenciou a jurisprudência brasileira. Um exemplo significativo é a decisão no julgamento da ADI 4424, que reconheceu a inconstitucionalidade da criminalização do aborto em casos de anencefalia. Nesse caso, o STF considerou o impacto desproporcional da proibição sobre as mulheres, especialmente em termos de dignidade e autonomia, conceitos centrais para o feminismo jurídico.
Outra decisão de destaque é a que tratou da inconstitucionalidade do afastamento automático de candidatas grávidas de concursos públicos (RE 1058333). O tribunal reconheceu que tal prática violava o princípio da igualdade, reforçando estereótipos de gênero e punindo a maternidade. Essa decisão não apenas protege direitos fundamentais, mas também representa um avanço no reconhecimento da necessidade de políticas públicas que promovam a equidade no mercado de trabalho e no acesso a oportunidades.
Além disso, a decisão no RE 898.060, que assegurou o direito ao uso do nome social por pessoas trans, reflete o constitucionalismo feminista ao considerar as especificidades de grupos historicamente marginalizados. Embora a questão da identidade de gênero não esteja exclusivamente vinculada ao feminismo, a decisão dialoga com a busca pela desconstrução de normas sociais rígidas que limitam as possibilidades de existência e autonomia, especialmente para mulheres trans.
Apesar desses avanços, a realidade demonstra que a igualdade formal garantida pela CF/88 ainda não foi plenamente efetivada. A interseção entre gênero, raça e classe social impõe barreiras adicionais para mulheres negras, indígenas, pobres e LGBTQIA+. O STF, ao adotar um enfoque sensível às questões de gênero, tem a oportunidade de transformar o constitucionalismo brasileiro em um instrumento de emancipação social, contribuindo para uma sociedade mais igualitária.
No entanto, é preciso reconhecer os limites de uma abordagem exclusivamente judicial para a concretização dos direitos das mulheres. A transformação estrutural exige a articulação entre o STF, o Legislativo, o Executivo e a sociedade civil, garantindo que políticas públicas e programas sociais sejam implementados para enfrentar desigualdades sistêmicas. Além disso, o constitucionalismo feminista deve avançar para incluir as vozes das mulheres mais vulneráveis, que muitas vezes permanecem à margem do debate jurídico e político.
O constitucionalismo feminista, ao questionar as estruturas de poder e propor novas formas de organização social e jurídica, é uma ferramenta essencial para a construção de uma democracia substancial. Decisões do STF que incorporam essa perspectiva demonstram o potencial transformador de um direito constitucional comprometido com a igualdade de gênero. Entretanto, a verdadeira mudança depende de um esforço coletivo e contínuo para enfrentar os desafios históricos e culturais que ainda sustentam a desigualdade no Brasil.
_____
ALVES, Branca Moreira; PITANGUY, Jacqueline. O que é feminismo. São Paulo: Ed. Abril Cultural: Brasiliense, 1985.
AMÂNCIO, Kerley Cristina Braz. Lobby do batom: uma mobilização por direitos das mulheres. Revista Trilhas da História, Três Lagoas, 2013. Disponível em: http://seer.ufms.br/index.php/RevTH/article/viewFile/444/244. Acesso em: 01 out. 2024.
BASTERD, Leila Linhares. O movimento feminista no Brasil: dinâmicas de uma intervenção política. Coleção Bahianas, n. 5, Salvador: UFBA, 2000. Disponível em: http://www.revistagenero.uff.br/index.php/revistagenero/article/viewFile/380/285. Acesso em: 01 out. 2024.
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
BENEVIDES, Marinina Gruska. Os direitos humanos das mulheres: transformações institucionais, jurídicas e normativas no Brasil. Fortaleza: EdUECE, 2016.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br. Acesso em: 18 nov. 2024.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). ADI 4424 - Criminalização do aborto em casos de anencefalia. Disponível em: http://www.stf.jus.br. Acesso em: 18 nov. 2024.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). RE 1058333 - Afastamento automático de candidatas grávidas em concursos públicos. Disponível em: http://www.stf.jus.br. Acesso em: 18 nov. 2024.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). RE 898060 - Direito ao uso do nome social. Disponível em: http://www.stf.jus.br. Acesso em: 18 nov. 2024.
HUNT, Ruth; YOUNG, Iris Marion. Constitutional Feminism: Transforming Legal Perspectives on Gender Equality. London: Routledge, 2015.
FRASER, Nancy. Fortunas do Feminismo: Do capitalismo gerencial à crise neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2019.