1. A vida real é no município.
Expressões muito comuns, que convivem inclusive em harmonia, são estas duas: a primeira, “a família é a célula mãe da sociedade”; e a segunda, “a vida real ocorre no Município, sendo os Estados e a União ficções jurídicas”. Os autoproclamados conservadores à brasileira não se deram conta da relação extrema destes dois axiomas que, ao final e ao cabo, são próprios do conservadorismo, particularmente, vetores de preservação da família e dos valores de cada sociedade local, sem a invasão das subversões “progressistas” ou “revolucionárias”.
Por isso, apropriando o título de Zolá, “eu acuso” os ditos políticos “conservadores” ou “de direita”, de terem sido extremamente inocentes quando pouco fizeram para a preservação ou até mesmo o engrandecimento do municipalismo previsto na CF/88.
2. Constituição de 1988, poder local e seu enfraquecimento.
A CF/88 trouxe de forma inequívoca o Princípio do Interesse Local. Tanto que, não bastando um capítulo específico sobre os Municípios, traz no artigo 30 a competência de legislação própria sobre temas de “interesse local”.1
O artigo 30 talvez seja mais relevante que o próprio art. 1º2 que trata a República Federativa do Brasil como sendo “formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal”. Por isso, a aplicação do art. 34, VII, alínea “c”,3 que versa a respeito da intervenção federal nos estados por violação da autonomia municipal, só poderá ser realizada não se for simplesmente conhecido o art. 1º, mas, isto sim, se conhecido com propriedade o conteúdo do art. 30 da Carta Magna.
Ocorre que expressões “município” e “municipalismo” sub-repticiamente passaram a ter um ar cafona, antiquado como se ultrapassadas estivessem. Foram lenta e propositalmente sendo substituídas por outras novidadeiras, como “cidade” e o “urbano”. A “direita” não viu a razão. E já paga caro por isso. A substituição não foi uma coincidência. Foi pensada estrategicamente. Explico adiante.
3. O charme e o perigo da substituição do “município” por “cidade”
A expressão “cidade”, devo afirmar, não me agrada porque esquece que mesmo o planejamento “urbano” não se destina exclusivamente à noção de “cidade”. A cidade é um elemento do “município”. E não pode ser dissociada das “áreas rurais” ou “áreas menos urbanizadas” ao seu redor. Por esse motivo — não vou me estender aqui — discordo veementemente do discurso de Ran Hirschl em seu livro City, State: Constitutionalism and the Megacity.
Toda a produção a respeito da realidade local não resvala mais em “direito municipal”, mas, em “direito da cidade” ou “direito urbano” ou “direito do urbanismo / urbanístico”.
Qual a razão pela qual a obra de Rirschl importa tanto? Pois ele, em alguns trechos deixa clara uma visão. Visão que sempre foi um objetivo por debaixo do enfraquecimento municipal. Transcrevo apenas um trecho, suficiente para compreensão do objetivo dessa substituição do conceito de “município” pelo de “cidade”:
Somando-se à animosidade constitucional entre estados e cidades estão as diferenças ideológicas que frequentemente separam as cidades geralmente mais cosmopolitas e profundamente diversas das áreas rurais vizinhas mais conservadoras e frequentemente menos diversas. A divisão urbana/rural na América contemporânea é bem documentada. Considere os resultados das eleições presidenciais de 2016: Hillary Clinton obteve 48,2% do total de votos (quase 66 milhões); enquanto Donald Trump, o eventual vencedor, recebeu 46,1% (quase 63 milhões) dos votos. No entanto, como os eleitores de Hillary Clinton estavam geralmente concentrados em áreas urbanas densas, a área terrestre combinada de todos os distritos eleitorais conquistados por Clinton era de 530.000 milhas quadradas ou 15% de todo o território dos EUA, enquanto a área terrestre combinada do "país Trump" era de cerca de 3 milhões de milhas quadradas, ou impressionantes 85% de todo o território dos EUA.4
4. Matar o “município”: um projeto ao longo de 35 anos. E seguindo.
Nos últimos 35 anos, desde a promulgação da Constituição de 1988, nunca deixaram sequer escondido no Brasil que iriam tentar matar os Municípios. E até contou com apoio da “direita nacional” que, sejamos francos, tecnocrata e “elitista” acreditava que a centralização em Brasília daria coisa boa. Não deu.
Vamos pegar apenas três exemplos. A permissão parlamentar para a centralização de receitas federais não partilháveis, na era Fernando Henrique Cardoso quando, ao invés de aumento de impostos federais — nos quais estados e municípios têm participação — foram agigantadas as “contribuições”. Ou, podemos pegar dois temas mais recentes, quando das emendas constitucionais que reduziram o número de vereadores, e também tentaram reduzir a remuneração de vereadores. Concorde-se ou não com uma vereança forte e bem remunerada, mas, sem ela o municipalismo brasileiro deixará de ter os contornos únicos que a CF/88 nos legou. Por fim, agora sobrevém a “reforma tributária” milagreira. Viram que o setor de serviços é agora o concentrador de riquezas e não poderiam deixar tamanha riqueza nas mãos dos Municípios. O subterfúgio de simplificar o sistema tributário não passa disso: um engodo.
Falei de três simples exemplos acima. Trarei agora uma consequência aterrorizante: nas Diretrizes Curriculares para o Curso de Direito no Brasil não existe como disciplina obrigatória o Direito Municipal. Inacreditável como há um silêncio sepulcral da representação política conservadora quanto a essa aberração: no maior país municipalista do mundo, o Direito Municipal não é disciplina autônoma obrigatória nos cursos de direito. Se formos em países nos quais o Poder Local não é sequer dotado de autonomia constitucional, como é o caso dos Estados Unidos, disciplinas como “Local Government” ou “Municipal Law” constam fartamente na grade curricular disponível aos alunos.
Tudo isso ocorreu sob o beneplácito de inúmeros membros da proclamada direita nacional, agora intitulados conservadores. Num silêncio de estarrecer. Ou, pior, com uma cumplicidade de doer.
5. É preciso ressuscitar o município e o municipalismo.
E preciso ressuscitar a ideia do MUNICÍPIO, com os contornos brasileiros. A “sede”, os “distritos”, as “zonas rurais”, enfim, toda a sua complexidade cujas noções novidadeiras foram enfraquecendo. De modo ainda mais urgente, que os representantes conservadores lutem para a inclusão do Direito Municipal nas faculdades de Direito brasileiras. Além de, doravante, terem maior atenção em votações de propostas de emendas constitucionais com alguma tendência de afetar a autonomia local.
O progressismo se interessa juridicamente no “citadino”, aquele que se arvora a morar na cidade ou, mesmo lá não morando, incorpora valores que não são de sua localidade. Não se ocupa mais do “cidadão”. Citadino e Cidadão, não são sinônimos. O progressista trata como algo a ser combatido os valores locais, majoritariamente conservadores. A finalidade do esquecimento municipal é implantar “cidades” com um status diferenciado, talvez até mesmo com participação congressual, num arremedo de cidade-estado. Tudo deixando ao relento as áreas “periurbanas”, tidas como habitadas por reacionários cujos valores não merecem mais acolhida no “novo mundo”.
Se 2026 passa por 2024, uma frase que está sendo muito usada, então, que efetivamente 2026 traga ações concretas em prol dos valores locais. E não apenas os eleitores em 2026 se apropriem de votos, e, em mero artifício semântico, grite histrionicamente bordões vazios de sentidos objetivos.
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1 Art. 30. Compete aos Municípios: […] I - legislar sobre assuntos de interesse local;
2 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
3 Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: [...] VII - assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais: […] c) autonomia municipal;
4 Hirschl, Ran. City, State: Constitutionalism and the Megacity. Oxford University Press. 2020. Kindle. Texto no original: “Adding to the constitutional animosity between states and cities are the ideological differences that often separate the generally more cosmopolitan and deeply diverse cities from the more conservative and often less-diverse surrounding rural areas. The urban/rural divide in contemporary America is well-documented. Consider the results of the 2016 presidential elections: Hillary Clinton garnered 48.2% of the total vote (nearly 66 million); while Donald Trump, the eventual winner, received 46.1% (nearly 63 million) of votes. However, because Hilary Clinton voters were generally concentrated in dense urban areas, the combined land area of all electoral districts won by Clinton was 530,000 square miles or 15% of the entire US territory, whereas the combined land area of “Trump country” was about 3 million square miles, or a whopping 85% of the entire US territory.”