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12 anos do julgamento da ADPF 54: Relembrando a decisão do STF que descriminalizou a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos

Há 12 anos, o STF descriminalizou a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos.

19/11/2024

Doze anos atrás, no já longínquo ano de 2012, foi finalizado o julgamento da ADPF 54 - Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, pelo STF. Julgamento polêmico e exaltado, mas que contou com coerentes argumentos tanto do lado da posição vencedora, quanto da vencida. 

Ajuizada em 2004 pela CNTS - Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde, o pedido de admissão da ADPF 54 se fundou nos preceitos da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso IV, CF/88), da legalidade, liberdade e autonomia de vontade (art. 5º, inciso II, CF/88) e direito à saúde (art. 6º e 196, CF/88). Já como ato do Poder Público causador da lesão, a autora indicou o conjunto normativo ensejado pelos arts. 124, 126, caput, e 128, incisos I e II, do CP. 

Em sua argumentação, a CNTS afirmou que a antecipação terapêutica do parto em gravidezes de fetos anencéfalos não configura aborto, na medida em que tal patologia torna a vida extrauterina inviável em 100% dos casos. 

O julgamento do processo foi precedido de muita discussão dentro e fora da Corte Suprema. A audiência pública realizada pela Corte em 2008 contou com a participação de vinte e cinco expositores, dentre os quais representantes de entidades religiosas, científicas, médicas e da sociedade civil. O debate foi amplo e rico, mas também muito acalorado. 

O julgamento de mérito da ADPF foi realizado em 2012, sob a relatoria do ministro Marco Aurélio (aposentado). À época, foi amplamente divulgado por alguns veículos de notícias que o Supremo decidiria sobre a descriminalização do aborto. 

Já no início do voto, no entanto, o relator registrou que “mostra-se inteiramente despropositado veicular que o Supremo examinará, neste caso, a descriminalização do aborto, especialmente porque, consoante se observará, existe distinção entre aborto e antecipação terapêutica do parto.” Ainda na seara, arrematou “No debate sobre a antecipação terapêutica do parto de feto anencéfalo, o enfoque mostra-se diverso. Cabe perquirir se há justificativa para a lei compelir a mulher a manter a gestação, quando ausente expectativa de vida para o feto.”

A partir de tais esclarecimentos, o ministro iniciou o voto, mas, não sem antes fixar o que estava efetivamente sob julgamento e, sem qualquer rodeio, adiantar o encaminhamento que daria a demanda:

“Senhor Presidente, na verdade, a questão posta sob julgamento é única: saber se a tipificação penal da interrupção da gravidez de feto anencéfalo coaduna-se com a Constituição, notadamente com os preceitos que garantem o Estado laico, a dignidade da pessoa humana, o direito à vida e a proteção da autonomia, da liberdade, da privacidade e da saúde. Para mim, Senhor Presidente, a resposta é desenganadamente negativa.”

Começando pela análise do que deve ser entendido como Estado laico e afirmando que “O Estado não é religioso, tampouco é ateu. O Estado é simplesmente neutro.”, o ministro passou de forma aprofundada pelo exame do conceito médico de anencefalia e rechaçou veementemente “a assertiva de que a interrupção da gestação do feto anencéfalo consubstancia aborto eugênico, aqui entendido no sentido negativo em referência a práticas nazistas”, em resposta ao que alguns seguimentos da sociedade civil sustentavam à época.  

Utilizando sempre como pilar a laicidade do Estado e conceito médico de anencefalia, o ministro apresentou consistentes fundamentos para afastar a argumentação de que a possibilidade de doação de órgãos do feto anencefálico seria um dos sustentáculos para a manutenção da gravidez. Nesse ponto, o relator concluiu: 

”Ao contrário do que sustentado por alguns, não é dado invocar, em prol da proteção dos fetos anencéfalos, a possibilidade de doação de seus órgãos. E não se pode fazê-lo por duas razões. A primeira por ser vedado obrigar a manutenção de uma gravidez tão somente para viabilizar a doação de órgãos, sob pena de coisificar a mulher e ferir, a mais não poder, a sua dignidade. A segunda por revelar-se praticamente impossível o aproveitamento dos órgãos de um feto anencéfalo. Essa última razão reforça a anterior, porquanto, se é inumano e impensável tratar a mulher como mero instrumento para atender a certa finalidade, avulta-se ainda mais grave se a chance de êxito for praticamente nula.”

Como não poderia ser diferente, o voto também abordou o direito à vida dos anencéfalos. Quanto a essa perspectiva, o ministro se serviu de contribuições apresentadas em audiência pública para concluir que “Anencefalia e vida são termos antitéticos”, por ser absolutamente inviável a vida extrauterina do feto anencefálico. Dessa forma, considerando que o aborto tem como pressuposto o extermínio de uma vida em potencial, não pode a interrupção da gestação de um anencéfalo ser capitulada como crime.

Mas foi ao analisar o direito à saúde, à dignidade, à liberdade, à autonomia e à privacidade da gestante que o relator imprimiu mais esforço a sua argumentação. Trazendo à baila muitas das contribuições de agentes e entidades médicas proferidas na audiência pública, o ministro discorreu sobre os riscos da interrupção terapêutica desse tipo de gestação em contraponto com os perigos da sua manutenção. 

Quanto a este último, foram veementemente destacados os males psíquicos causados pela imposição da manutenção da gravidez, destacando-se depoimentos de mulheres que vivenciaram o drama da situação. Destacando que “Não se trata de impor a antecipação do parto do feto anencéfalo. De modo algum. O que a arguente pretende é que “se assegure a cada mulher o direito de viver as suas escolhas, os seus valores, as suas crenças”’, o relator concluiu no ponto que:

“Não se coaduna com o princípio da proporcionalidade proteger apenas um dos seres da relação, privilegiar aquele que, no caso da anencefalia, não tem sequer expectativa de vida extrauterina, aniquilando, em contrapartida, os direitos da mulher, impingindo-lhe sacrifício desarrazoado. A imposição estatal da manutenção de gravidez cujo resultado final será irremediavelmente a morte do feto vai de encontro aos princípios basilares do sistema constitucional, mais precisamente à dignidade da pessoa humana, à liberdade, à autodeterminação, à saúde, ao direito de privacidade, ao reconhecimento pleno dos direitos sexuais e reprodutivos de milhares de mulheres. O ato de obrigar a mulher a manter a gestação, colocando-a em uma espécie de cárcere privado em seu próprio corpo, desprovida do mínimo essencial de autodeterminação e liberdade, assemelha-se à tortura ou a um sacrifício que não pode ser pedido a qualquer pessoa ou dela exigido.”

Ao declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção deste tipo de gravidez configura conduta típica à luz dos artigos que criminalizam o aborto, o STF terminou por acrescentar ao ordenamento jurídico brasileiro uma hipótese até então não contemplada pela legislação. Sob essa perspectiva, afirmaram alguns que o Tribunal adotou postura ativista. 

Atualmente há bem pouca contestação quanto a esse julgamento, até porque, se adotados os consistentes pilares que sustentaram o voto do relator (laicidade do Estado e conceito médico de anencefalia) não sobram mesmo muitos argumentos válidos – não os que se enquadrem no conceito jurídico. 

Dessa forma, é necessário olhar para um julgamento como o da ADPF 54 como um grande marco da história constitucional brasileira, conferindo destaque ao mecanismo utilizado para corrigir uma distorção que era rotineiramente realizada ao se interpretar a legislação penal. 

Nesse contexto, não fosse a prerrogativa conferida a ADPF de “ir além da mera eficácia declaratória típica do controle abstrato de constitucionalidade das leis, concedendo permissão para que se fixem, desde já, as condições e o modo de interpretação e aplicação do preceito fundamental que restou violado”, não seria possível fazer história por meio de julgamentos da Suprema Corte.

Danúbia Souto de Faria Costa
Atuação em contencioso cível, tributário e empresarial. Ampla experiência na atuação junto a tribunais superiores, além de atuar perante a primeira e segunda instâncias do Tribunal de Justiça Estadual e Justiça Federal localizados em Brasília. Na esfera administrativa, atua perante as agências reguladoras, tribunais administrativos e demais órgãos da Administração Pública.

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