Nos últimos dias, a pauta política do Congresso Nacional foi sacudida pelo bem-vindo debate sobre o fim da escala de trabalho 6 X 1. O assunto ganhou corpo nas redes sociais, furou as bolhas consolidadas da esquerda e da direita, se impôs nos veículos da grande mídia e pressionou de tal forma os congressistas, que já conseguiu as assinaturas necessárias para tramitar na Câmara.
Primeiramente, é de se comemorar que o tema tenha conseguido aglutinar e trazer ao debate público uma agenda de ampliação de direitos trabalhistas e de melhoria da qualidade de vida. Afinal, há tempos que as discussões políticas no Brasil foram engolfadas por questões regressivas, diante do predomínio de setores conservadores e até obscurantistas no parlamento.
A rigor, apesar de ter inovado nos métodos e na forma de comunicar, o assunto não é novo. A luta pela redução da jornada de trabalho no Brasil remete ao primeiro período Vargas, quando foi regulamentada a carga semanal máxima de 48 horas. Nos anos 70, a demanda passa a ser por 44 horas semanais, o que foi alcançado na Constituição de 1988.
Desde o início dos anos 2000, o movimento sindical passou a se unificar na defesa da redução da jornada sem redução de salários para 40 horas e, mais recentemente, em consonância com o que já ocorre em outros países, debate-se limitá-la a 36 horas. Mas é fato que, com as dificuldades enfrentadas pelas entidades de classe, foi necessário que novos agentes empunhassem a bandeira para que voltasse à ribalta com mais força.
Há um grande espaço para se debater o fim da Escala 6 X 1 sob a ótica dos direitos humanos, até porque a Constituição Federal busca equilibrar princípios como a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa, sendo estes compreendidos como dois elementos inseparáveis e indispensáveis à concretização de outros princípios, inclusive à realização de direitos fundamentais.
Esse balanço pode ser verificado em diversas passagens do texto constitucional, sendo emblemáticos: o Art. 1º, IV, que assenta a República Federativa do Brasil como Estado Democrático de Direito que tem como um de seus fundamentos “(IV) a valorização social do trabalho e a livre iniciativa”; e o Art. 170, que traz os princípios gerais da ordem econômica, sendo esta “fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios (...) VIII – busca do pleno emprego”.
A busca desse equilíbrio guarda relação com a persecução de certos objetivos trazidos pelo constituinte, como o combate às desigualdades sociais e regionais, a efetivação de garantias fundamentais e direitos sociais, em decorrência da dignidade da pessoa humana, bem jurídico maior, elevado a fundamento constitutivo da República Federativa do Brasil (Art. 1º, III, CF).
O ministro Gilmar Mendes, em seu importante artigo “A dignidade da pessoa humana na Constituição Federal de 1988 e sua aplicação pelo Supremo Tribunal Federal”, destacou as origens históricas desse princípio e sua importância transcendente no ordenamento jurídico nacional e internacional. Apresentou também como o STF, sem banalizá-lo, já o reivindicou para decisões paradigmáticas, diante de casos variados, tais como liberdade de expressão, garantias no processo penal, união civil homoafetiva, trabalho degradante, dentre outros.
Apesar de já mencionada a “existência humana digna” na Constituição de Weimar, quando esta disciplina a atividade econômica, a dignidade humana passa a ser norma jurídica vinculante a partir da Lei Geral alemã, de 1949, sobretudo como uma resposta aos horrores do nazismo, entendida como bem jurídico mais elevado, comum a todos e inatacável, inviolável. A partir de então e sob inspiração da Carta das Nações Unidas (1946), diversos Estados nacionais passaram a ter a dignidade humana como princípio irradiador de duas constituições, movimento que alcançou o Brasil na Carta de 1988.
Sabe-se que a dignidade humana ou da pessoa humana é um valor filosófico de difícil definição estanque, porque abarca contextos culturais, tradições, estágio de desenvolvimento econômico e social de determinada comunidade, dentre outros fatores, para sua determinação concreta, no tempo e no espaço.
No contexto brasileiro, deve-se lembrar que a Constituição não se limita a mencionar a dignidade humana de maneira vaga, mas daí emanam outros comandos que asseguram a todos os direitos sociais – ou direitos fundamentais de segunda geração -, tais como acesso à Educação, Saúde, e Lazer, dentre outros.
Agora, em sua concretude, é quase impossível fazer valer tais comandos quando a pessoa cumpre uma jornada de trabalho de 44 horas, estendida durante 6 dias da semana, com um de folga apenas. Some-se ainda a esse esforço laboral, as longas horas diárias gastas no deslocamento, realidade enfrentada pela ampla maioria dos trabalhadores, obrigados a percorrer grandes distâncias das periferias, onde estão as moradias, para os centros das cidades, que costumam concentrar os empregos. Na maior metrópole do país, esse tempo médio chega a 2h47min quando todo o percurso diário é feito em transporte público. Os dados são da pesquisa Viver em SP 2024: Mobilidade Urbana, da Rede Nossa São Paulo, realizada pelo Ipec.
Com os avanços tecnológicos e da produtividade do trabalho, torna-se cada vez mais injustificável a imposição desse tipo de escala, que priva parcelas da população do tempo livre para a fruição de direitos essenciais, vários deles estabelecidos na Constituição e na Declaração Universal dos Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, como o estudo, a capacitação técnico-profissional, a saúde, a cultura, o esporte, o lazer e, principalmente, ao convívio familiar e comunitário.
O Brasil de hoje é a 9ª maior economia do mundo, está entre os principais do grupo de países em desenvolvimento, é interligado ao mundo e às novas tecnologias, embora como nação ainda dependente, possui parque industrial e tecnológico bem estabelecido e relativamente complexo.
O país possui condições efetivas para proporcionar vida digna a seu povo trabalhador, construtor maior das riquezas e do futuro da Nação, adequando seu arcabouço normativo e caminhando no sentido do que a compreensão sistêmica dos dispositivos constitucionais preceitua. Afinal, a vida e os direitos humanos vão além do trabalho.