O laudo ou parecer antropológico se tornou prova técnica muito importante no Direito brasileiro. A introdução do conceito jurídico de território para fins de reconhecimento de terras tradicionalmente ocupadas por indígenas ou comunidades tradicionais, o que inclui quilombolas, assegurou ao laudo antropológico eficácia suficiente para relativizar títulos registrados de propriedade ou posse regulamente constituídas. A questão relevante e que merece atenção é que muitas dessas peças não são técnicas ou científicas.
Essa declaração parece estranha, agressiva ou radical. Não é! Trata-se de consequência natural do curso histórico que a antropologia cultural tomou no Brasil, se manifesta em concreto em vários processos administrativos e judiciais e precisa ser percebida pelo Judiciário e advogados.
O Direito tem como matéria-prima a verdade, os fatos e as provas. O laudo antropológico e assemelhados precisa caber nessa moldura. Não pode negar, omitir e deixar de ponderar sobre isso. Não pode construir narrativas para legitimar pretensões. O que se pede é certeza sobre os fatos e é deste ponto que os laudos e pareceres devem partir.
Essa ponderação merece contexto que começa no documentário brasileiro de 2010, dirigido por José Padilha intitulado: "Segredos da Tribo: Guerra tribal na Selva Acadêmica".1 A obra reconstitui sem muitas interferências e através de depoimentos os conflitos entre as correntes internas da antropologia, tendo como pano de fundo pesquisas realizadas por antropólogos na década de sessenta, século XX, no ambiente territorial dos índios Ianomamis, situado na Venezuela, próximo da fronteira com o Brasil. O documentário é uma excelente indicação!
Duas correntes antropológicas são antagônicas: A antropologia cultural mais próxima da sociobiologia e a antropologia cultural mais próxima da filosofia.
A distinção é relevante para o Direito, ao menos no plano da clara compreensão sobre a sua existência. O Judiciário precisa estar atento para não tomar como técnico ou científico trabalho que tem por finalidade construção de narrativa para defesa de interesse de grupo social. Nesse ponto, a prova tradicional do processo civil que comporta múltiplos meios é muito mais eficaz enquanto instrumento e expressão da verdade. Não basta parecer técnico; precisa efetivamente ter conteúdo baseado em hipóteses, fatos e provas.
O documentário de Padilha apresenta com certo protagonismo Napoleon A. Chagnon, antropólogo americano que se notabilizou no meio acadêmico como autor do livro intitulado “Nobres Selvagens”. O livro tem o seguinte subtítulo sugestivo: "Minha Vida entre Duas Tribos Perigosas: Os Ianomâmis e os Antropólogos".
O livro2 de Napoleon Chagnon é muito interessante na abordagem sobre a origem das sociedades; questiona o mito do bom selvagem; destaca a onipresença do terror primitivo, aproximando-se das ideias de Thomas Hobbes; chama a atenção para a luta masculina em torno do rapto de mulheres de outras aldeias, associando esse fato às altas taxas de homicídios masculinos entre tribos; e analisa o papel da liderança tirânica como imposição da ordem. As considerações que interessam ao artigo estão no final do livro. Relatam os conflitos internos da antropologia, alcançando as dificuldades que vivenciou na relação que teve com o Brasil.
Ao descrever o conflito que interessa ao tema, Napoleon Chagnon situa a questão da dificuldade da antropologia cultural em produzir ciência e o faz nos seguintes termos:
“Os arqueólogos, antropólogos físicos e linguistas antropológicos conseguem aderir de forma mais rigorosa à proposição de que a antropologia é uma ciência porque o material com que trabalham - osso, cerâmicas, tipos de casas, gramática, etc – são mais factuais, ontologicamente, do que, por exemplo, o tabu de comer o animal que é totem da tribo. Eles em geral julgam que a maioria dos desentendimentos podem ser resolvido por observadores independentes coletando novos dados, pela repetição das observações questionadas ou pela verificação de que as diferenças nos resultados não se devem, por exemplo a diferenças possivelmente reais nos objetos, itens, comunidades, tribos, etc, que causam divergências.
No entanto, a antropologia cultural, distinta desses outros sub-ramos do campo da antropologia, contém duas facções mutuamente incompatíveis e muitas vezes em conflito. Muitos antropólogos culturais concordam com os métodos e procedimentos associados à ciência e historicamente os antropólogos culturais sempre aceitaram a palavra ciência como uma descrição geral do tipo de atividade exercida por eles. Porém, muitos outros – possivelmente a maioria dos antropólogos culturais de hoje – preferem se considerar não cientistas e em muitos casos insistem abertamente que a antropologia cultural não é um ramo das ciências, mas sim das humanidades.”
Essa declaração oriunda de antropólogo renomado merece atenção. Essa atenção fica mais destacada quando da leitura de outro trecho sobre o cisma, citando em especial o Brasil:
“O cisma ocorre entre os antropólogos culturais (como eu) que consideram a antropologia cultural uma ciência e aqueles que acreditam, como a antropóloga brasileira Alcida Ramos colocou recentemente que “fazer antropologia” é fazer algo inerentemente político; ou como disse Nancy Scheper-Hughes, que a antropologia é uma “atividade de investigação criminalística”, na qual hoje se se espera dos praticantes que procure e denuncie as injustiças cometidas contra povos nativos por outros antropólogos que os estudaram. Em suma, o cisma na antropologia cultural é entre aqueles que fazem ciência e aqueles cujo objetivo exclusivo é falar em nome dos povos indígenas - uma atividade que eles definem como sendo incompatível com a ciência. Esse último ponto de vista não é apenas errado, mas chega às raias da irresponsabilidade.”
O teor da conclusão é intenso! Ele escreveu que “aqueles que dão definição estreita da antropologia cultural como sendo principalmente uma atividade de “defesa”, ou seja, uma atividade política, como a maioria dos antropólogos brasileiros vê o campo, estão enfraquecendo toda a profissão antropológica”.
O desencanto com a antropologia precisa ser manifestado. Trata-se de algo que contaminou a maneira de produzir o exame do fato, tornando-o apenas a narrativa antropológica de defesa de grupo social, de natureza política e ideológica.
A noção científica de estudo antropológico exige informações e provas sobre grupos sociais com efetivo compromisso com os fatos, certo tratamento estatístico de dados, a busca da verdade e compreensão mais isenta possível dos contextos.
Muitos pareceres técnicos elaborados no âmbito ou não dos órgãos administrativos produzem apenas a narrativa interessada, consciente e dirigida de determinados grupos sociais escolhidos para relatarem na linguagem simples, popular e coloquial a vida que dizem que viveu, mas que não se pode tomar como verdadeira por uma simples razão: A técnica do relato não está interessada em obter verdade, mas em relatar o discurso que interessa a construção de outra narrativa completamente desconectada de qualquer compromisso com os fatos.
Um exemplo simples dos fatos não verdadeiros acolhidos!
Pessoas relatam que nasceram em certo lugar, o que fortalece a narrativa. Esse fato não é verificado e toma-se como verdade a partir do relato.
Se o fato não é verdadeiro consagra-se apenas a narrativa! Em tais situações, o laudo antropológico não trata da verdade e não se preocupa com isso. Interessa apenas a declaração! Essa forma de antropologia é muito ingênua para servir ao Direito.
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1 O trailer e o documentário estão disponíveis na Internet, na Globo News e outras.
2 CHAGNON, Napoleon A. Nobres Selvagens. Minha Vida Entre Duas Tribos Perigosas: os Ianomamis e os Antropólogos. Editora Três Estrelas. São Paulo. 2014