A cada dois anos é realizado o encontro das partes da biodiversidade e a sua décima sexta edição acaba de acontecer em Cali, na Colômbia (COP16).
Já são 16 edições desde o início da contagem que foi inaugurada com a assinatura da Convenção sobre Diversidade Biológica em 1992 no Rio de Janeiro.
A COP16 era um encontro tomado por muita expectativa, dado o sucesso retumbante que foi a COP15, iniciando em Kunming na China e finalizando em Montreal (Canadá) em 2022, em que os países firmaram um acordo global (Global Biodiversity Framework) com 23 metas mais objetivas e 4 mais estratégicas, visando uma grande virada na conservação da biodiversidade global, mirando os anos de 2030 e 2050.
Foram dados dois passos muito estratégicos e relevantes, que serão abordados, com detalhes, a frente (envolvendo o fortalecimento dos direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais e a repartição de benefícios para exploração comercial de informações de sequências genéticas digitais – DSI). Além disso, alguns avanços mais tímidos sobre temas de importância (espécies invasoras, OGMs e biologia sintética) e, finalmente uma decisão literalmente inconclusiva sobre financiamento (aqui reside a maior decepção do encontro, visto que a presidência da COP16 suspendeu a reunião, por falta de quórum, para a continuidade da discussão).
a) Do novo órgão subsidiário permanente para povos indígenas e comunidades tradicionais.
Além da conferência das partes (COPs) que ocorrem de forma bienal, a CDB funciona também através do trabalho do SBSTTA1, sigla em inglês que significa Órgão Subsidiário de Aconselhamento Científico, Técnico e Tecnológico.
O art. 25 da CDB estabelece que o SBSTTA é competente para fornecer à COP e seus outros órgãos subsidiários, aconselhamento oportuno relacionado à implementação da Convenção, como avaliações do status da diversidade biológica, por exemplo.
O SBSTTA é multidisciplinar, aberto e compreende representantes governamentais competentes no campo de especialização, tendo se reunido 25 vezes até o momento e produzido mais de 240 recomendações para a conferência das partes.
Após longos anos de luta, foi aprovada pela COP16 a criação de um órgão subsidiário permanente sobre o art. 8(j) da CDB, com seu “modus operandi” a ser desenvolvido nos próximos dois anos.
O art. 8(j) da CDB estabelece que os governos locais devem adotar medidas para respeitar, preservar e manter os conhecimentos tradicionais, promovendo o uso dos conhecimentos tradicionais com a aprovação e participação das comunidades indígenas e locais, além de encorajar a repartição justa e equitativa dos benefícios que resultam do uso dos conhecimentos, inovações e práticas de titularidade dos povos indígenas e comunidades tradicionais.2
Os saberes tradicionais podem e devem contribuir, cada dia mais, em pé de igualdade com os saberes científicos – a ciência é ampla e precisa ser inclusiva. A integração destes saberes é essencial para desenvolver soluções que respeitem a diversidade cultural e biodiversa, além de trazer no seu contexto a pretendida justiça social.
Totalmente neste sentido, escrevi, em coautoria com André Baniwa, Floriana Breyer, Luciana Villa Nova e Simone Athayde o artigo denominado “Saberes Confluentes em nova visão de mundo”, publicado pela Revista Stanford Social Innovation Review3.
Espera-se que o novo órgão subsidiário eleve questões relacionadas à implementação do art. 8(j) e aprimore o engajamento e a participação dos povos indígenas e comunidades locais em todos os processos da convenção.
Além deste avanço significativo, por meio da COP16, vale lembrar que em maio do presente ano, foi assinado o Tratado da OMPI de Propriedade Intelectual, Recursos Genéticos e Conhecimentos Tradicionais associados4, o que significa dizer que foi um ano emblemático e bastante significativo não apenas para os povos originários, mas também para a preservação dos biomas e da justiça social.
Uma sociedade que avança no respeito aos direitos dos povos originários é uma sociedade mais inteligente e inclusiva.
b) Do avanço na repartição de benefícios pela exploração de DSI.
Um dos objetivos da Convenção sobre Diversidade Biológica é a repartição de benefícios (justa e equitativa) que os países usuários devem realizar junto aos países provedores dos recursos genéticos, além dos conhecimentos tradicionais associados.
O Protocolo de Nagoia, por sua vez, enfatizou a obrigação dos países signatários em cumprir as regras locais de repartição de benefícios, aumentando a justiça e transparência desta relação bilateral entre países provedores e usuários.
Como resultado da COP15 da Biodiversidade, realizada em Kunming/Montreal, os países ali presentes estabeleceram um mecanismo multilateral, incluindo um fundo global, para repartir os benefícios dos usos de informações de sequência digital sobre recursos genéticos (DSI).
Assim, além do mecanismo bilateral, já em andamento através das diversas relações sob o guarda-chuva Protocolo de Nagoia, os países entenderam que um mecanismo multilateral de repartição de benefícios, para os efeitos de DSI, seria mais apropriado, uma vez que o referido fundo ficaria com a obrigação de gerir os recursos recebidos e reparti-los aos países/provedores.
Nota-se que, apesar de não haver um conceito claro sobre DSI em qualquer tratado internacional, a comunidade global parte do princípio de que este conceito representa dados obtidos da análise de sequências biológicas, como DNA, RNA e proteínas, porém em formato digital.
Em continuidade ao que foi definido pela COP15, os representantes dos países presentes em Cali/Colômbia tiveram longas e desgastantes discussões, para se chegar a algum caminho no que diz respeito a este novo cenário de repartição de benefícios5. Com efeito, ainda que deixando expresso que discutiriam com maior profundidade outras opções, definiram que empresas em setores que, direta ou indiretamente se beneficiam de seu uso em suas atividades comerciais e que atendem a dois dos três critérios – vendas de maiores que US$ 50 milhões, lucros maiores que US$ 5 milhões e US$ 20 milhões em ativos totais – deverão contribuir com 1% dos lucros ou 0,1% de sua receita para o fundo global (batizado como “Fundo Cali”).
Além disso, os usuários de informações de sequência digital sobre recursos genéticos deverão repartir benefícios não monetários de forma complementar (via ABS Clearing-House).
Foi definida também a lista indicativa de setores aos quais as empresas podem pertencer: produtos farmacêuticos; nutracêuticos (suplementos alimentares e de saúde), cosméticos, melhoramento animal e vegetal, biotecnologia, equipamentos de laboratório associados ao sequenciamento e uso de informações de sequência digital em recursos genéticos (incluindo reagentes e suprimentos), serviços de informação, científicos e técnicos relacionados a informações de sequência digital em recursos genéticos, incluindo inteligência artificial.
Existem diversos pontos ainda que continuarão a ser debatidos, como por exemplo: nível de disponibilidade das informações de sequência digital; estudo de padrões internacionais para a identificação de pequenas, médias e grandes entidades; implicações sobre taxas de contribuição, incluindo implicações para geração de receita e competitividade econômica; modalidades adicionais para repartição de benefícios envolvendo uso de informações de sequência digital sobre recursos genéticos; obrigações sobre as entidades que operam bancos de dados, dentre outras.
As decisões já adotadas não são autoaplicáveis nos países membros, inclusive o art. 13 deixa expresso que “Partes e não Partes são convidadas a tomar medidas administrativas, políticas ou legislativas, em compasso com a legislação nacional, para incentivar contribuições de usuários em sua jurisdição para o fundo global em linha com as modalidades do mecanismo multilateral.”
Para o Brasil, que é uma país mega diverso e detentor de aproximadamente 20% de toda a diversidade global, é fundamental que haja uma rápida adesão de países ao sistema de repartição de benefícios, por uso de DSI - Informações de Sequências Digitais, mesmo porque o anexo B das decisões adotadas aponta uma lista de critérios indicativos, que podem beneficiar o país, locação de recursos do fundo.6
Além disso, cabe também ao Brasil avaliar, com extremo cuidado, o momento mais apropriado para aderir as regras relacionadas ao Fundo Cali, pois seria catastrófico adotar medidas abruptas, sem que haja expectativa de recebimento de recursos e acabar gerando ônus para a já surrada indústria nacional, que não possui ainda a utilização de DSI como praxe em sua atividade.
Conclusão
O encontro das partes foi insuficiente em relação a definição de recursos financeiros, que dão estofo ao cumprimento das metas do GBF - Global Biodiversity Framework, o que eleva a preocupação sobre o futuro da preservação do planeta.
No entanto, a COP16 deu passos relevantes no que diz respeito, principalmente, a aprovação do novo órgão subsidiário para povos indígenas e comunidades tradicionais, bem como pela criação do Fundo Cali e as primeiras definições da repartição de benefícios pelo uso de informações de sequências genéticas digitais (DSI).
Sempre importante lembrar que a repartição de benefícios, seja via Protocolo de Nagoia ou através do novo sistema multilateral da CDB propicia o fortalecimento dos povos originários, o que, por consequência aumentam as chances dos biomas permanecerem vivos – o que é sempre uma boa notícia para as presentes e futuras gerações.
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1 Subsidiary Body on Scientific, Technical and Technological Advice.
2 A legislação Brasileira (Lei 13.123/15 e Decreto 8.772/16) já prevê em diversos dispositivos a obrigação do usuário de Conhecimentos Tradicionais Associados, obter o consentimento prévio informado, além de repartir benefícios, negociando o montante diretamente com os seus titulares.
3 Edição Especial Amazônia (Passado, Presente e Futuro da Floresta), pg. 42 e seguintes
4 https://www.migalhas.com.br/depeso/408283/tratado-da-ompi-sobre-patentes-recursos-geneticos-e-conhecimentos
5 Até o momento o draft discutido e aprovado não foi publicado formalmente no site oficial da CDB. Há uma discussão sobre a questão do quórum e haverá, em breve, algum comunicado oficial da CDB sobre o tema.
6 Lista indicativa de critérios para alocação de financiamento: a) riqueza da biodiversidade e outros critérios relacionados à biodiversidade para os quais os dados estão prontamente disponíveis em nível nacional; a) origem geográfica dos recursos genéticos dos quais as informações de sequência digital no banco de dados foram derivadas (observando que esses dados são atualmente frequentemente incompletos ou não representativos); c) necessidades de capacidade para a conservação e uso sustentável da biodiversidade, levando em consideração as circunstâncias dos países em desenvolvimento, em particular os países menos desenvolvidos e pequenos Estados insulares em desenvolvimento e aqueles com economias em transição, e de povos indígenas e comunidades locais.