Raciocínio fingido (sham reasoning) é conceito utilizado por Charles Sander Peirce para identificar, na investigação científica, processos decisórios que acabam por falsear a dúvida objeto de investigação, pois já contém uma crença em si mesmo: “quando estou em dúvida, não sei como vou agir, diferentemente de quando tenho uma crença”1.
Esse é o fenômeno que vem ocorrendo atualmente em matéria de modulação de efeitos nas teses tributárias.
Acomodação histórica
A modulação de efeitos das decisões judiciais surge como uma necessidade da incorporação e desenvolvimento do controle concentrado de constitucionalidade no Brasil, desaguando, rapidamente, no inicial controle difuso e no modelo de precedentes que passou a evoluir a partir da chamada objetivização ou transsubjetivização dos casos individuais.
O difuso torna-se concentrado e aquilo que nasce como exceção passa a ser regra, ou seja, a modulação passa a ser adotada como política judiciária (das mais variadas).
Daí decorre a distorcida fórmula modulatória que vem sendo adotada nos últimos tempos pelo STF e STJ, sobretudo em matéria tributária, ora utilizando (1) razões de gestão de acervo de processos em busca da redução de litígios2, ora empregando (2) razões orçamentárias nas contas públicas3, ora fundando (3) em razões de igualdade econômico-concorrencial4.
Essa postura identifica-se com um instrumentalismo ideológico ou utilitarista, próprio da terceira fase histórica do Processo Civil, no qual a fundamentação acaba sendo fim (e não meio) para o atingimento de certas finalidades desejadas.
Tem-se com isso a adoção de um consequencialismo degenerado em matéria de modulação, pautado em crenças e dirigido às consequências (momentâneas) dos casos presentes, mais afeto ao law and economics de Richard Posner, fortemente caracterizado pelo racionalismo a priori, no qual se pretende maximizar dogmaticamente certos tipos de consequências, dando ênfase à justificação da decisão5 6.
A justificação da decisão passa a ser fim para a realização dos desígnios constitucionais.
O problema disso é que, pela ausência de um adequado método, as decisões sobre modulação acabam não cumprindo seu papel de previsibilidade e segurança jurídica para que os jurisdicionados possam direcionar, pautar e programar suas condutas futuras.
Controle de constitucionalidade, precedentes e modulação
Nosso controle de constitucionalidade é marcado por uma transição do modelo difuso inicialmente adotado com o estabelecimento da República7, marcantemente influenciado pela experiência norte americana e inspirado em seu judicial review, para um modelo concentrado de inspiração europeia, em especial germano-austríaca, mais adequado a um estado unitário, semelhante ao federalismo brasileiro.
Fica claro, nessa transição, o abandono da ideia de um Tribunal Constitucional com função meramente de “legislador negativo”, com a competência de rever, em última instância, as decisões proferidas pelas Cortes de Justiça locais questionadas em face da Constituição e das leis federais, de modo que o Supremo Tribunal Federal não mais se limitaria a proceder a anulação em concreto das leis, com efeitos entre as partes do processo, na qual se desenvolveu a teoria da nulidade, com efeitos ex tunc (para o passado), típica do modelo difuso.
A partir de então, o Supremo passa a promover o controle abstrato, com efeitos erga omnes, demandando assim a incorporação da teoria da anulabilidade, com efeitos ex nunc (para o futuro), característica desenvolvida no modelo concentrado mediante a incorporação do instituto da modulação de efeitos.
Nesse ambiente é que se desenvolve o modelo de precedentes no Brasil a partir da EC 45/04 (reforma do Judiciário, com a previsão da súmula vinculante e da repercussão geral), fortemente caracterizado por um senso de “descongestionamento” da justiça, produzindo com isso ferramentas de simplificação decisória.
Nesse intento simplificatório, o CPC/2015, em seu artigo 927, acabou por veicular, predestinadamente, formas decisórias capazes de vincular horizontal e verticalmente a conduta de terceiros8, de modo que o precedente que pretende regular as condutas futuras, em verdade não precede, antecede, ou seja, já nasce com uma predestinação carimbada, daí o paradoxo: como regular condutas futuras de forma descolada de uma prática judicante que preencha historicamente a riqueza factual dos conflitos que se pretende resolver9?
A necessidade de método
Ao assumir o papel de realizadora das promessas constitucionais (o que por si só já é bastante controverso), as decisões constitucionais devem considerar as consequências futuras nas condutas sociais, mas essas consequências devem partir de uma investigação originada em dúvidas genuínas e concretas, delineadas pelos casos (esse já é um primeiro problema dos precedentes que não precedem), e não por dúvidas cartesianas abstratas (“penso, logo existo”). É assim que se atinge, na linha de Peirce, uma crença coletiva que cria um hábito de conduta10, na qual, por sua vez, se concilia segurança e evolução.
Essenciais, portanto, as contribuições do instrumentalismo enquanto método do pragmatismo, tal qual concebido e idealizado por John Dewey11, segundo o qual as decisões judiciais exigem uma lógica relativa às consequências prováveis (lógica da probabilidade). Longe daquilo que hoje é praticado nas modulações de efeitos.
Trata-se de uma lógica instrumental que busca a solução dos casos a partir das suas consequências prováveis no “devir” (dever-ser no futuro), e não no presente. Não se pode, por isso mesmo, encerrar em si mesma, quase que vedando processos investigatórios.
Recentemente, foi anunciado pelo presidente do Supremo Tribunal Federal em exercício, ministro Luis Roberto Barroso, a contratação de um economista chefe para o auxílio do tribunal na análise das consequências prováveis das decisões constitucionais tomadas pelo órgão12.
Trata-se, sem dúvida, da correta investigação dos problemas que se pretende solucionar na tomada das decisões, o que, por outro lado, precisa ser publicamente discutido no processo por meio da garantia do contraditório e da ampla defesa dos atores interessados, até porque está-se diante de um modelo adversarial cujas razões de decidir deverão constar da decisão (Código processual de 2015, art. 371). Do contrário, continuaremos envoltos num instrumentalismo teleológico, tão criticado na atualidade pelo desrespeito que muitas vezes acaba por promover aos precedentes.
Por fim, é preciso avaliar as diferentes funções normativas da modulação, ora focadas nos impactos do juízo de inconstitucionalidade (art. 27 da lei 9.868/99), ora focadas na alteração de jurisprudência dominante (art. 927 § 3º do CPC/15, sendo esse também o caso dos arts. 23 e 24 da lei de introdução nacional ao direito brasileiro), ora focadas na adequação do título executivo judicial a precedentes vinculantes (art. 535, § 6º do mesmo código processual), não podendo limitar-se (tais avaliações) apenas aos aspectos orçamentários com impactos desfavoráveis ao fisco.
Com isso, incorporam-se novos elementos à justificação da decisão, ligados às consequências prováveis formuladas a partir das hipóteses normativas, permitindo assim validar a relação entre meio e fim13.
A esse respeito, citamos interessante voto-vencido do ministro Mauro Campbell na ação rescisória 6015/SC, DJe 09/05/23:
“(…) Nesse novo contexto, as questões que exsurgem como passos para a aplicação da dogmática do princípio da proporcionalidade, ou princípio da proibição do excesso, consoante a doutrina de José Joaquim Gomes Canotilho (in “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002, pp. 269, et seq.) são:
1ª) qual a finalidade que seria atingida com o afastamento da súmula n. 343/STF (identificação da finalidade);
2ª) se essa finalidade é constitucionalmente protegida ou não (razoabilidade);
3º) se o afastamento da súmula 343/STF é meio adequado ao atingimento dessa finalidade (conformidade ou adequação);
4º) se o afastamento da súmula 343/STF é meio necessário ao atingimento dessa finalidade (exigibilidade ou necessidade); e
5º) se os danos causados com o afastamento da súmula 343/STF são ou não inferiores aos benefícios que se pretende obter (proporcionalidade em sentido estrito). (…).”
(grifos do original)
A partir daí, num típico raciocínio abdutivo, o ministro Mauro Campbell formula as dúvidas que se pretende responder no caso concreto e passa a analisar a relação entre meios e fins, fornecendo importante aparato metódico para controle da decisão, indo além de um consequencialismo ao tipo do raciocínio fingido.
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1 “A crença não nos leva a agir de imediato, mas nos coloca em situação tal que, chegada a ocasião, nos comportaremos de certa maneira. A dúvida não tem, absolutamente, esse efeito ativo, mas estimula-nos a indagar até vê-la destruída.” PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. São Paulo, Perspectiva, 1999. p. 77.
2 Esse é o caso das modulações focadas em datas de afetação de recursos repetitivos, inclusão em pauta de julgamento, publicação do acórdão, ou status dos processos nas instâncias de origem. Vide, por exemplo, os Temas 986 e 1079 do STJ, nos quais se previu uma regra de modulação pautada na existência de decisão favorável ao contribuinte na data do início do julgamento do precedente.
3 Exemplo do tema 745/STF (“ICMS-seletividade”). Veja-se a fundamentação da modulação no voto do Min. Dias Toffoli: “(…) De mais a mais, destaco que houve a devida ponderação dos interesses em conflito no julgamento daquela nova proposta de modulação dos efeitos abarcando-se os dos estados-membros, do Distrito Federal e os dos contribuintes, considerando-se, ainda, que as perdas de arrecadação em razão da tese fixada ocorreriam em tempos difíceis. (…).” (grifamos).
4 Exemplo dos Temas 881 e 885 do STF. Veja-se a fundamentação para a não modulação no voto do Min. Roberto Barroso: “(…) quem não o recolheu, supostamente beneficiado por uma coisa julgada claramente superada, levou vantagem competitiva sobre todos os concorrentes. E penso que se estaria produzindo uma injustiça tributária e uma consequente injustiça econômica se nós modulássemos em favor dos que, mesmo sabendo a claríssima posição do Supremo de ser devido o tributo, ainda assim, persistiram em não o recolher.”
5 POSNER, Richard. Direito, pragmatismo e democracia. Tradução Teresa Dias Carneiro. Rio de Janeiro, Forense, 2010.
6 ________ . Richard A. A problemática da teoria moral e jurídica. São Paulo. Martins Fontes, 2012.
7 “A Constituição de 1891 era a encarnação, em texto legal, do liberalismo republicano e moderado que havia se desenvolvido nos EUA.” SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2016, p. 110.
8 “Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II – os enunciados de súmula vinculante;
III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.”
9 Trata-se de problema central na teoria dos precedentes, em especial no que diz respeito ao processo de formação dos precedentes e à identificação dos aspectos relevantes que decorrem contingencialmente do acúmulo dos casos. Acerca desse tema, vide: KELLOG, Frederic Rogers. “Pragmatismo, teoria do conhecimento e filosofia do direito: artigos coligidos de Frederic Kellog.” Organizadores: George Browne Rego, Pedro Spíndola Bezerra Alves. Recife: Ed. UFPE, 2019.
10 PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica e Filosofia. Textos escolhidos de Charles Sanders Peirce. Introdução, seleção e tradução de Octanny Silveira da Mota e Leonidas Hegenberg. São Paulo, Ed. Cultrix, 1972.
11 DEWEY, John. O desenvolvimento do pragmatismo americano. Tradução Cassiano Terra Rodrigues. In: COGNITIO-ESTUDOS: Revista Eletrônica de Filosofia. São Paulo, Volume 5, Número 2, julho – dezembro, 2008, pp. 119-132.
12 “Barroso inova e contrata economista para equipe no STF”, disponível em: https://valor.globo.com/politica/noticia/2023/08/28/barroso-inova-e-contrata-economista-para-equipe-no-stf.ghtml, consultado em 18/02/2024.
13 A esse respeito, citamos interessante voto-vencido do Min. Mauro Campbell, na AR 6015/SC, Dje 09/05/23.