Neste final de semana, acontece o Grand Prix da Fórmula 1 em São Paulo. Para os fãs de corrida automobilística, este é um evento icônico não apenas pela corrida, mas por todas as experiências únicas que ele proporciona, como o som do ronco dos motores, das mensagens de rádio dos pilotos, das cores e identidade visual dos carros, do formato das pistas, dentre muitos outros elementos característicos das corridas de F1.
Esse conjunto de elementos é fundamental para diferenciar a F1 de outras competições automobilísticas, criando uma experiência de entretenimento singular para o público. Afinal, quem nunca ouviu (ou até imitou!) o inconfundível beep que antecede as comunicações de rádio entre piloto e equipe? Esse sinal sonoro se tornou tão icônico que o McDonald's o utilizou em uma campanha publicitária voltada ao evento deste final de semana1.
Assim, diante da importância destes ativos intangíveis, surgem alguns questionamentos da ordem de propriedade intelectual. Por exemplo, a F1 é titular desses ativos? Ela possui direito de exclusividade sobre estes elementos sensoriais? Pode restringir o uso deles por terceiros? Existe proteção sob a ótica da propriedade intelectual?
Dentre os múltiplos institutos, é consenso que a “marca” seria o mais adequado para a proteção desses ativos. Afinal, conceitualmente, as marcas são justamente sinais distintivos apostos a produtos e serviços – tal como o GP da F1 – capazes de distingui-los de concorrentes. Nas palavras do doutrinador Denis Borges Barbosa:
“(...) as marcas são sinais distintivos apostos a produtos fabricados, a mercadorias comercializadas, ou a serviços prestados, para identificação do objeto a ser lançado no mercado, vinculando-o a um determinado titular de um direito de clientela”.
Assim, numa abordagem teleológica, observa-se que o elemento essencial das marcas é sua capacidade de criar uma associação com os produtos e serviços de um titular específico. O sinal deixa de ter apenas seu valor literal ou empírico (como a palavra “Ferrari”) e assume um sentido associativo, transformando-se em uma marca (como a marca “Ferrari”).2
Sob essa perspectiva, as marcas não se restringiriam apenas a nomes e logotipos (elementos meramente visuais), mas se expandiriam para englobar qualquer sinal sensorial que identifique um produto ou um serviço. Esses sinais, que podem incluir cores isoladas, formas tridimensionais, gestos, posições, sons, hologramas e até aromas, são as denominadas marcas não tradicionais.
Na literatura estrangeira, o pesquisador norte-americano Kenneth L. Port define marca não tradicional como:
"[...] marcas sensoriais como som, cor, cheiro, sabor e marcas táteis, além de marcas holográficas ou até o movimento de um produto [...]. Indicadores não tradicionais de origem supostamente se tornam marcas válidas quando são ou se tornam distintivos para o bem ou serviço no qual são usados e, na mente dos consumidores, passam a identificar uma fonte ou origem consistente para esse bem ou serviço e podem ser representados graficamente." (tradução livre)3
Neste sentido, no contexto automobilístico, há argumentos sólidos para sustentar que o beep das comunicações de rádio dos pilotos de F1 configura uma marca não tradicional pertencente à organização. Da mesma forma, a cor vermelha característica da Ferrari ("Vermelho Ferrari" ou "Rosso Ferrari"), quando aplicada a um carro esportivo, também pode ser considerada uma marca não tradicional – afinal, até pessoas leigas em carros fazem essa associação automaticamente.
O desafio, contudo, está no reconhecimento legal desses sinais sensoriais como marcas. Jurisdições como a dos Estados Unidos e da Europa são mais receptivas e protetivas em relação a esses sinais, permitindo seu registro junto aos respectivos escritórios de marcas e patentes.
Nos Estados Unidos, por exemplo, o USPTO - Escritório de Marcas e Patentes concedeu registro à marca sonora do rugido do leão da Metro-Goldwyn-Mayer4, bem como ao tom vermelho nas solas dos sapatos da Louboutin5. Já no setor automobilístico, a Lamborghini conseguiu registrar o movimento de abertura das portas de seus carros. Esses precedentes sugerem que tanto o beep das comunicações de rádio da F1 quanto o vermelho da Ferrari poderiam ser registrados como marcas nesta jurisdição.
No Brasil, o desafio está no fato de que a proteção e o registro de marcas se limitam, em tese, às marcas tradicionais, ou seja, às marcas nominativas, figurativas ou mistas. Isto pois, a própria lei 9.279/96 (LPI - Lei da Propriedade Industrial) define as marcas como “sinais distintivos visualmente perceptíveis”.
Dessa forma, há atualmente um “vácuo” legal na proteção das marcas não tradicionais no Brasil. Esses sinais não encontram respaldo em patentes, pois não têm funcionalidade; nem em desenhos industriais, pois não possuem necessariamente formas ornamentais; e tampouco em software, já que não consistem em programas de computador.
Consequentemente, a proteção das marcas não tradicionais recai sobre o instituto da concorrência desleal6, previsto de forma subsidiária na LPI, o que impõe um custo elevado ao titular. Afinal, esse mecanismo exige que o titular se oponha ativamente ao uso por terceiros e ainda comprove um desvio fraudulento de clientela resultante desse uso.
Vale apontar, no entanto, que a vedação às marcas não tradicionais, no Brasil, não é absoluta. Há algum tempo, o próprio INPI vem permitindo o registro de marcas tridimensionais e de posição, entendendo que, apesar de possuírem aspectos tridimensionais, suas distintividades residem, em última instância, no elemento visual. Exemplos desses registros incluem o formato triangular das embalagens do chocolate Toblerone7, o formato dos chaveiros da Kipling8 e os icônicos “três furos” na parte frontal dos famosos tênis da marca Osklen9.
Além das marcas tridimensionais e de posição, existem casos excepcionais em que titulares de marcas não tradicionais, com notável criatividade, conseguiram expressar graficamente seus sinais não visuais (ex. sons), obtendo o registro junto ao INPI. Exemplos clássicos e amplamente reconhecidos são os sons do “plim plim” 10 da Globo e “tudum” 11 da Netflix. Ambas as empresas registraram esses sons graficamente pretendendo a proteção não exatamente do aspecto visual da marca registrada, mas sim, de sua exteriorização e interpretação sonora.
Portanto, apesar da restrição legal imposta pela LPI, a F1 poderia, com uma boa dose de criatividade, representar graficamente suas marcas não tradicionais e, pelo menos, pleitear seu registro junto ao INPI. Uma vez concedido o registro, a F1 obteria uma segurança jurídica significativamente maior, pois suas marcas se tornariam direitos líquidos e certos, oficialmente reconhecidos por um órgão competente.
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1 Vídeo da campanha disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=l_uO1BCA_iA&t=22s. Acesso em 31.10.2024
2 SCHMIDT, Lélio Denicoli. A distintividade das marcas: secondary meaning, vulgarização e teoria da distância. São Paulo: Saraiva, 2013. pp. 127-130.
3 PORT, Kenneth L. On Nontraditional Trademarks. Saint Paul, Mitchell Hamline School of Law, 2011. pp. 2-3
4 USPTO; registro nº 73555319
5 USPTO – registro nº. 77141789
6 1 LPI, art. 195. Comete crime de concorrência desleal quem: (iii) emprega meio fraudulento, para desviar, em proveito próprio ou alheio, clientela de outrem.
7 INPI; registro n.º 820963712.
8 INPI; registros n.º 822174367, n.º 822174405, n.º 822174391, n.º 822174375, n.º 822174383, n.º 822174421 e n.º 822174413.
9 INPI; registro nº 830621660.
10 INPI; registro n.º 905172671
11 INPI; registro n.º 919020305.