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Aspectos criminais da lei de licitações - lei 14.133/21

A lei 14.133/21 moderniza regras de licitações e contratos, mantendo a punição de crimes previstos na legislação anterior, exceto o art. 89, agora extinto.

4/11/2024

A lei 14.133, de 01/4/21, contém a disciplina legal sobre licitações e contratos administrativos. Um dos temas de destaque da nova lei consiste nas regras relativas a crimes em licitações e contratos administrativos.

A partir desse novo cenário normativo, diante da revogação da antiga lei de licitações – lei 8.666/93 -, os Tribunais Superiores, com destaque à atuação do STF e do STJ, têm prolatado decisões significativas no âmbito criminal. Ponderação importante surge quanto à continuidade ou não da existência dos crimes elencados na antiga lei de licitações (lei 8.666/93), especificamente na seção III – dos crimes e das penas. A perspectiva criminal tem gerado discussões relevantes nos Tribunais a respeito da possibilidade da abolitio criminis de demandas que tratam sobre crimes no âmbito das licitações, diante da revogação da antiga lei.

O fenômeno da abolitio criminis consiste na causa extintiva de punibilidade devido a revogação formal do tipo penal, acarretando na extinção do crime. Em outras palavras, determinado fato penal deixa de ser considerado crime devido à publicação de lei que extingue o delito anteriormente estabelecido no ordenamento jurídico brasileiro, cessando os seus efeitos penais.

Diante desta conjuntura, o STF decidiu, recentemente1, manter a condenação de réu em um caso no qual houve a prática do crime previsto no art. 89 da antiga lei de licitações. De acordo com a Corte, não é possível vislumbrar a abolitio criminis, considerando que ocorreu a continuidade normativo-típica, em razão do crime objeto de discussão continuar sendo fato punível pelo Estado diante do previsto no art. 337-E na atual lei de licitações.

A continuidade normativo-típica trata-se de um fenômeno jurídico que ocorre quando uma lei penal é revogada (lei 8.666/93), mas a mesma conduta ainda é considerada crime pela nova lei que a substituí (lei 14.133/21). Significa dizer que o tipo penal continua sendo previsto, embora esteja agora em um artigo diferente ou tenha um tratamento normativo distinto do anterior.

De modo semelhante, o STJ já firmou entendimento2 de que não há o que se falar em abolitio criminis com relação aos crimes da lei 8.666/93, porquanto houve a continuidade normativo-típica por meio da inserção do capítulo II-B no CP intitulado “Dos Crimes em Licitações e Contratos Administrativos” diante da nova lei 14.133/21. TRFs - Tribunais Regionais Federais, tais como o 1º3, 3º4 e 5º5, têm seguido a interpretação dada pelo STF e pelo STJ ao manter as sanções nas suas respectivas competências.

No entanto, em que pese ter havido a manutenção da maioria dos crimes previstos na antiga lei, a segunda parte do art. 89 da lei 8.666/936 não está prevista na lei 14.133/21. Dessa forma, é possível afirmar que não é mais crime deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade da licitação. Não custa observar, no entanto, que a contratação direta ilegal em si segue sendo tipificada (art. 337-E da lei 14.133/21) e que  diversos são os requisitos e exigências legais para que se proceda, regularmente, sob a ótica administrativa, uma correta contratação direta por dispensa ou inexigibilidade de licitação, sobretudo diante das previsões contidas nos arts. 72 a 75 da lei 14.133/21.

De uma maneira geral, importante pontuar que a nova lei de licitações trouxe penas mais gravosas do que as previstas na antiga lei. Contudo, considerando que, sob o aspecto criminal, ocorre o fenômeno da ultratividade7, serão aplicadas as penas mais brandas da antiga lei aos fatos ocorridos durante a sua vigência, ainda que com o advento da lei 14.133/21.

Cumpre destacar, ainda, que houve a previsão de um novo crime, capitulado no art. 337-O da nova lei, que agora considera fato punível a omissão grave de dado ou de informação por projetista, com a previsão em seu parágrafo §2º de aplicar o dobro da pena se o crime é praticado com o fim de obter benefício, direto ou indireto, próprio ou de outrem.

Pelo exposto, sob a perspectiva criminal, embora a antiga lei de licitações tenha sido revogada, é certo que os fatos penais nela anteriormente previstos permanecem considerados como crime pelo advento da nova lei de licitações, com exceção da segunda parte do art. 89 da lei 8.666/93, em relação ao qual ocorreu a abolitio criminis. E apesar de a nova lei ter estabelecido penas mais severas, é importante destacar que se aplicam as penas mais brandas da legislação anterior apenas aos delitos cometidos durante a vigência da então lei 8.666/93.

_________

1 STF. AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS: HC 225554 AgR/DF. Relator: Ministro Alexandre de Moraes. DJE 26/04/2023. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur478111/false. Acesso em: 16 set. 2024.

2 AgRg no AREsp n. 2.073.726/PA, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma. DJE 27/06/2022. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202200479080&dt_publicacao=27/06/2022 > Acesso em 16 de setembro de 2024.

3 ApCrim, relator Juiz Federal Marllon Sousa, Décima Turma, DJE 22/08/2023. Disponível em: https://pje2g.trf1.jus.br/consultapublica/ConsultaPublica/DetalheProcessoConsultaPublica/documentoSemLoginHTML.seam?ca=d3d78ed7072012d1d498e738d2b16ffae32850b4a23f5a55ebf7e6d6a48e53b832460d57a2a07eece086f069b324f794e0a102c1e98cbf23 > Acesso em 24 de outubro de 2024

4 ApCrim, relator Desembargador José Lunardelli, 11ª Turma, DJE 07/10/2022. Disponível em: https://web.trf3.jus.br/jurisprudencia/Home/ImprimirDecisao/?nd=2 > Acesso em 24 de outubro de 2024

5 ApCrim, relator Desembargador Luis Bispo, Quarta Turma, DJE: 21/05/2024. Disponível em: https://pje.trf5.jus.br/pjeconsulta/ConsultaPublica/DetalheProcessoConsultaPublica/documentoSemLoginHTML.seam?idProcessoDocumento=ee5321f8e2831d61c69391c05ca7cd13 > Acesso em 24 de outubro de 2024

6 “deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade”

7 Artigo 5º, inciso XXXIX da CF.

Rodrigo da Fonseca Chauvet
Sócio advogado do escritório Trigueiro Fontes Advogados.

Natália Miranda Lopes
Advogada da Área Criminal de Trigueiro Fontes Advogados

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