A crescente visibilidade política e acadêmica das últimas décadas sobre demandas de pessoas que integram distintas minorias sociais, enquanto grupos socialmente marginalizados, tem gerado dois efeitos contraditórios. O primeiro, positivo e esperado, relativo a uma maior consideração social sobre as demandas e visões de mundo de pessoas que antes eram pura e simplesmente ignoradas, além de silenciadas, por consideradas “moralmente desprezíveis” ao ponto disso em si “justificar” que sequer fossem ouvidas em razão dos preconceitos sociais contra elas. O segundo, como reação lamentável, embora historicamente previsível, relativo a um desmerecimento das demandas de tais grupos sociais, por supostamente “prejudicarem” outras “grandes lutas” sociais, consideradas “mais relevantes”. E isso vindo tanto de movimentos e partidos de esquerdas tradicionais quanto das direitas.
De ambos os lados do espectro político, o termo “identitário/identitarismo” passou a ser usado como uma carta(da) coringa para desqualificar a defesa de direitos de minorias sociais, como algo supostamente “autoevidente”, em evidente tentativa de estigmatizar a pessoa chamada de “identitária”. Isso porque visa declarar uma posição em defesa de direitos de minorias sociais como supostamente “indefensável” e “puramente ideológica” no sentido pejorativo do termo, como algo que definitivamente “não é sério” e que, por isso, ou não merece consideração ou merece ser visto como algo “secundário” e que “mais atrapalha” do que contribui para a evolução social e humana em geral.
Acusar alguém de “identitário/identitarismo” é a nova katchanga real dos debates políticos, sociais e acadêmicos. A ideia de “argumento da Katchanga” se popularizou no meio jurídico com uma publicação do prof. Georges Marmelstein em seu blog,1 relatando uma história que o prof. Lenio Streck explica ter sido originada em lições do prof. Luiz Alberto Warat, para denunciar o jogo de cartas marcadas que configura a prática da dogmática jurídica2, (eu apenas ressalvaria, a prática de deturpação da dogmática jurídica). Para sintetizar: em um cassino que era obrigado a realizar qualquer jogo, um forasteiro apareceu e desafiou o croupier a jogar um jogo de cartas, o jogo da katchanga, o qual “se aprende, jogando”. Iniciado o jogo, distribuídas as cartas iniciais a cada jogador, comprando duas cartas do baralho, o forasteiro-desafiante gritava “Katchanga!”, para dizer que tinha conseguido o conjunto de cartas necessário para vencer o jogo imediatamente, sem explicações. Ocorrido o fato algumas vezes e após diversos prejuízos (afinal, os jogos envolviam apostas em um cassino), o croupier que estava aprendendo percebeu que qualquer conjunto de cartas que o outro formava era irrelevante, vencendo o jogo quem gritasse “Katchanga” primeiro. Então, propôs um jogo final, na lógica do “tudo ou nada”, para recuperar o prejuízo sofrido até ali, e assim que recebeu seu conjunto inicial de cartas, o croupier gritou “Katchanga!”, esperando vencer. Mas seu sorridente interlocutor-desafiante afirmou em segunda, “Katchanga Real!” para, sem explicações, recolher tudo e vencer o jogo.
O intuito dessa irônica estória é satirizar o uso genérico com que alguns princípios jurídicos de conteúdo extremamente vago, como a “dignidade da pessoa humana”, a “razoabilidade”, a “proporcionalidade” e o “interesse público (primário)” são usados no debate jurídico, com pessoas dizendo que sua tese ou pretensão tem que ser acolhida “por força do princípio” em questão, mas sem fundamentar a razão disso. A ideia foi criticar o uso de argumentos como carta-coringa-genérica, como se bastasse a menção a “dignidade humana”, a “razoabilidade/proporcionalidade/ponderação”, a “boa-fé objetiva”, o “interesse público” e outros para vencer o argumento, sem necessidade de fundamentação da razão desse princípio abstrato incidir no caso e justificar a decisão.
Pois bem, é exatamente na lógica da “katchanga real” que os termos “identitário”, “identitarismo” têm sido usados, o que vale também para a correspondente sigla inglesa “woke”. Afinal, são termos/conceitos invocados como carta-coringa-genérica para pura e simplesmente menosprezar ou desqualificar demandas de mulheres (cis e trans), pessoas negras, LGBTI+, com deficiência e integrantes de minorias sociais (estigmatizadas em geral como se fossem pautadas por “pura ideologia atécnica, anticientífica, antiacadêmica” em detrimento de demandas políticas tidas como mais “urgentes” ou “sérias”. E isso sem nunca definir exatamente o que entende por pessoa “identitária” e sistema de princípios que configuraria o “identitarismo”, o que é feito por todos os espectros do pensamento político em geral e político-partidário em especial. Sendo que, nos setores políticos progressistas, virou moda culpar “os identitários/o identitarismo” pelas derrotas de candidatos(as) de partidos de esquerda, mesmo quando eles(as) sequer citam ou citam de maneira bem tímida, genérica, superficial e rara as demandas de minorias sociais. Culpam as demandas por direito ao igual respeito e consideração, sem discriminações sociais de quaisquer naturezas, de minorias sociais pelas derrotas de candidaturas de partidos políticos de esquerda e/ou progressistas em geral. E sempre, das esquerdas às direitas, sem sequer trazer dados que mostrem a correção dessa acusação peremptória, sempre feita de forma puramente genérica.
De um lado, as esquerdas tradicionais em geral criticam movimentos de minorias sociais como supostamente culpadas pela “divisão da esquerda”, já que têm na revolucionária “grande luta socialista” ou, em contexto social-democrata (“capitalismo controlado”) na grande luta reformista relativa a “direito dos trabalhadores” como a “principal causa” de sua militância político-ideológica. Em passado ainda recente, consideravam pessoas LGBTI+ como pessoas com “estilo de vida” fruto de “vício burguês”. Por outro lado, as direitas em geral alegam focar-se na defesa da “família”, da “segurança” e da “propriedade privada”, considerando a defesa de direitos de minorias suposto fator de “desunião” social, em detrimento de políticas públicas destinadas “ao povo” como um todo. Como se vê, adotam de forma normalmente implícita, mas evidente uma concepção orgânica de povo, que ideologicamente entende o povo como (devendo ser) formado a partir de uma homogeneidade cultural. Também em passado recente consideravam pessoas LGBTI+ como pessoas com “estilo de vida” decorrente de “degradação moral” do comunismo.
Como visto, as esquerdas tradicionais consideram Movimentos Sociais de Minorias como pessoas que supostamente “dividem a esquerda”, pois pretendem uma "esquerda única”, marcada na visão tradicional de luta de classes em prol de direitos trabalhistas e nada mais (pois os chamados novos movimentos sociais vieram a pluralizar a ideia“movimento social”, que surgiu para defesa de direitos trabalhistas do proletariado, seja pela revolução socialista, seja por reformismos social-democratas). Para além disso ignorar a já bem consolidada crítica de Nancy Fraser, Axel Honneth e muitos(as) outros(as), pela qual não é possível falar em redistribuição de bens materiais sem falar de reconhecimento de igual dignidade social de minorias historicamente estigmatizadas,3 essa tese puramente ideológica fecha os olhos para a interseccionalidade das opressões das pessoas trabalhadoras em geral, pois ao pregar proteção “ao trabalhador” de forma abstrata, acaba assumindo o efeito identitário de proteger só o trabalhador homem, branco, cishétero, sem deficiência e nacional que, embora oprimido enquanto “trabalhador” no critério “classe profissional”, integra o grupo hegemônico em outros temas. Logo, essa posição menospreza os próprios direitos de trabalhadores(as) que sofrem múltiplas opressões por suas distintas identidades – pense-se no caso da trabalhadora (mulher) negra, lésbica e com deficiência, embora cisgênero (mulher cis e não mulher trans). Além da mesma opressão que o homem branco cishétero sem deficiência trabalhador, ela sofre as opressões do machismo, do racismo negrofóbico e lesbofóbico (homotransfobia como forma de racismo, cf. STF) e do capacitismo.
Daí a crítica já bem difundida do identitarismo real ser o proclamado tanto por esquerda tradicional quanto pela citada direita tradicional. Quando à primeira, por sua ideologia ter como efeito a proteção prioritária “do trabalhador” apenas enquanto homem, branco, cishétero, sem deficiência e nacional, por fechar os olhos ou menosprezar as demandas de trabalhadores(as) que sofrem múltiplas opressões simultâneas além da opressão de classe com a qual diz supostamente se preocupar. Quanto à segunda, por pregar por direitos só de quem consideram como “cidadão de bem”, à luz de sua citada concepção orgânica de povo, manifestamente descabida em democracias marcadas pelo fato do pluralismo (cf. John Rawls), ou seja, o dever de reconhecimento da igual dignidade dos distintos grupos sociais, sem discriminações arbitrárias de quaisquer naturezas. E adiciono uma crítica de incompetência dessas esquerdas tradicionais, pois como não se mostram capazes de convencer a sociedade a aderir a suas ideologias revolucionárias (de “socialismo com liberdade”), protestam contra integrantes de minorias sociais que querem promover ideologias reformistas (de “capitalismo controlado”) como supostamente atrapalhando o convencimento que se mostram incapazes (e incompetentes) de promover, em prol da sua ideologia pretensamente revolucionária. Ou seja, protestam contra pessoas que adotam ideologia política que luta por uma utopia social-democrata de Estado de bem-estar social universal ao invés de sua bela utopia de socialismo com liberdade (pois não é concebível uma revolução que consagre o que se convencionou chamar de “socialismo real”, que socialistas chamam de “capitalismo de Estado”, ignorando que a teoria socialista prega o“monopólio dos meios de produção pelo Estado”, donde na teoria socialista, o socialismo como fase de transição ao comunismo adota um “capitalismo dirigido de forma absoluta pelo Estado” como consequência lógica de sua teoria).
Por essas e muitas outras, Sueli Carneiro proferiu sua célebre máxima, pela qual “entre esquerda e direita, continuo sendo preta”, a qual aplico à minha pessoa também, no sentido de que “entre esquerda e direita, continuo sendo gay”, o que vale para integrantes de minorias sociais em geral. Porque a garantia de não-discriminação e fim da violência específica objeto de crimes de ódio e discursos de ódio contra minorias sociais não pode esperar a Revolução Socialista (espera-se que para um “socialismo com liberdade”, como diz o nome do PSOL em resposta aos “socialismos reais” históricos), como querem as esquerdas tradicionais, nem esperar o fim de problemas em geral de segurança pública, como querem as direitas, na síntese acima formulada. Temos urgência e não aceitaremos o menosprezo a nossas demandas antidiscriminatórias em geral. Sem falar que temos aqui um falso problema, pois não é necessário acolher uma demanda em detrimento de outra, já que todas podem ser pleiteadas e obtidas conjuntamente. É um erro metodológico e político-estratégico querer escolher um tema “ou” outro, pois escolhas trágicas entre eles são raras e, se tiverem que ser feitas, devem sê-lo só na hora da votação de um projeto de lei, de aprovação de uma política pública pelo Executivo ou de outra instituição pública ou privada (Universidade etc.).
Exemplo desse uso nefasto e desrespeitoso dos termos “identitário” e “identitarismo” se vê no texto de Richard Miskolci, Professor de Sociologia da UNIFESP, no qual ele, a pretexto de criticar um evento específico e que gerou enorme polêmica (adiante explicado), criticou as universidades em geral por suposto foco identitário supostamente generalizado, sem a devida explicação e comprovação das afirmações peremptórias que fez.4 Vejamos.5
Primeiro, Miskolci critica as ações afirmativas formadas por cotas identitárias (só podendo estar se referindo a cotas a pessoas negras, indígenas e com deficiência) como se não existissem as cotas puramente sociais, que existem na mesmíssima lei de cotas – lei Federal 12.711/12. Isso porque ele critica as cotas identitárias ratificando (ou relatando com muita benevolência) a crítica das direitas sobre “pessoas pobres brancas” que também não acessam universidades. Como se vê, já aqui há desconsideração por desconhecimento imperdoável ou deturpação grosseira do tema, ao desconsiderar as cotas identitárias são vinculadas ao estudo integral em “escolas públicas ou em escolas comunitárias que atuam no âmbito da educação do campo conveniadas com o poder público” (art. 1º), para que 50% das vagas universitárias sejam destinadas a indivíduos autodeclarados “pretos, pardos, indígenas, quilombolas e por pessoas com deficiência” (art. 3º). Logo, o critério social está atendido pelas cotas universitárias em questão, pela lei regulamentadora das cotas identitárias não admitir que integrantes de minorias sociais que não tenham cursado o ensino médio integralmente no ensino público ou comunitário conveniado com o Poder Público delas se beneficiem.
Por outro lado, Miskolci não faz nenhuma problematização da branquitude extrema das universidades que gerou a necessidade social de cotas raciais-fenotípicas, ocupada quase exclusivamente por pessoas brancas e quase nenhuma pessoa negra (preta ou parda). Afinal, é bem notório que “estudos mostram que a diversidade nos recursos humanos aumenta a capacidade criativa, otimiza as decisões estratégicas e influencia diretamente a capacidade de inovar quando se desenvolve um ambiente inclusivo”, quando tais ambientes têm a “pluralidade e (o) respeito às diferenças” como “valores que norteiam a cultura organizacional”.6 Logo, a inclusão de pessoas não-brancas e com deficiência em um ambiente universitário até então marcado pela prevalência quase absoluta de pessoas brancas e sem deficiência já promove a diversidade universitária, e com um critério de classe, já que a lei brasileira vincula a concessão das cotas identitárias ao aspecto social de ensino médio integralmente cursado na rede pública ou comunitária conveniada com o Poder Público. Um texto que se pretende defensor de especialistas e da ciência como este se pretende não poderia incorrer em lacunas em temas tão basilares dessa discussão, sendo que o ambiente universitário também deve se pautar pela diversidade humana e de visões de mundo.
Por outro lado e no aspecto mais relevante à crítica principal que quero fazer, o texto faz uma distorção surreal ao pontuar que “especialistas” teriam sido supostamente “ignorados(as)” nas suas críticas às supostas “bases frágeis” das minorias sociais que passaram a ingressar nas universidades e estariam tendo a alegada proeminência descabida que ele quer denunciar. Isso porque faz a grave acusação de suposta “complacência irrestrita”, por mero “temor compreensível de se ser tachado de preconceituoso, relegado ao ostracismo por colegas de trabalho ou, como não faltam exemplos, tornar-se alvo de investigações e processos administrativos”, com “destruição e humilhação públicas”, por “monopólio de um suposto 'lugar de fala' [que supostamente] se sobrepôs e superou o da pesquisa e seus resultados”.
Ora, são muitas afirmações peremptórias desacompanhadas dos necessários dados empíricos (“provas”) que as sustentem, e isso inclusive na estratégia de citar como supostamente notórios os tais “processos administrativos disciplinares” por meros questionamentos acadêmico-universitários de supostas “bases frágeis” em termos acadêmicos de posições defendidas por integrantes de minorias. Onde ocorreu isso? Qual exemplo concreto? Não se sabe, porque o texto não explica... Pois o que é de fato notória e bem conhecida é a existência de processos administrativos disciplinares contra pessoas que proferem injúrias, discursos de ódio ou menosprezos em geral contra integrantes de minorias sociais, assim qualificados juridicamente pela representação que pede sua instauração e, eventualmente, pela decisão condenatória administrativa. Mas ao falar sobre notórios processos administrativos disciplinares para querer “provar” seu ponto, Miskolci alhos com bugalhos, por colocar no mesmo balaio todo e qualquer processo tal movido contra pessoa do âmbito acadêmico, que envolvem os aqui citados e aqueles aos quais ele diz que supostamente existiriam (sem provar). E a questão principal é que pessoas que proferem discursos que minorias consideram ofensivos querem defender o pseudo “direito” de proferi-los.
Obviamente, pode-se discordar de se determinado discurso é passível de punição ou se constitui mera “grosseria/deselegância” protegida pela liberdade de expressão, mas não se pode seriamente colocar no mesmo balaio esse tipo de processo com o tipo de processo que o texto denuncia supostamente existir, de pretensão de punição de alguém por mera crítica acadêmica.
Por outro lado, onde está esse apoio irrestrito a um “identitarismo” puro que o texto denuncia? Universidades públicas e privadas têm aceitado mais pessoas integrantes de minorias sociais e aceitado suas problematizações, hipóteses e referências não-hegemônicas, algo que pura e simplesmente não existia no passado, como é (isso sim) bem notório antes do advento das cotas raciais-fenotípicas e da maior aceitação e/ou tolerância a pessoas LGBTI+ e mesmo a mulheres com demandas feministas nas Universidades. Por outro lado, ao contrário do que o texto quer absurdamente insinuar sem usar essa expressão, mas com esse evidente contexto, o “lugar de fala” tem sido invocado na academia não como “lugar de cala” (de “cale a boca quem não integra a minoria para falar de demanda sobre ela”. O conceito de lugar de fala tem sido usado para exigir que se ouçam pessoas que integram os grupos vulnerabilizados e considerar seriamente seus pontos de vista e suas críticas, especialmente quando o fazem na forma acadêmica, além da exigência de que a pessoa que fala mostre de que lugar está falando,7 embora não só.
Trata-se de reação absolutamente legítima a inúmeros eventos acadêmicos ainda hoje, com mesas exclusivamente formadas por pessoas integrantes de grupo socialmente hegemônico, como homens brancos cishétero ou pessoas de maiorias sociais em geral, especialmente nos temas que envolvem as minorias sociais diretamente. É uma exigência de honestidade intelectual epistemológica, de se sair da torre de marfim acadêmica para se apurar o que de fato ocorre no mundo real e a partir de distintas visões de mundo e não só aquela da opinião hegemônica. A descontextualização feita pelo texto aqui criticado é simplesmente inacreditável.
Em suma, ainda que (espera-se) sem intenção, o texto de Richard Miskolci pura e simplesmente deturpa os relevantes temas por ele abordados ao ponto de beirar a má-fé subjetiva e certamente viola a boa-fé objetiva, por adotar um nível de terraplanismo que certamente viola o padrão de conduta imponível às pessoas prudentes pelo princípio da boa-fé objetiva. E para explicar o óbvio sobre a primeira expressão, bem conhecida em processos judiciais litigiosos: beirar a má-fé não significa “ter má-fé (propriamente dita, de vontade de deturpar)”, mas ter uma conduta tão incrivelmente absurda que é difícil acreditar que não é feita por deliberada má-fé, que não é aqui afirmada por ausência de provas (“dados” que sustentem as afirmações), já que vieses cognitivos de confirmação notoriamente fazem pessoas em geral “verem” apenas aquilo que confirmam suas pré-compreensões e suas compreensões já consolidadas, e “não verem” aquilo que contraria suas crenças. É o que parece ser a posição de Miskolci no texto aqui criticado.
Agora, é preciso comentar o fato concreto que o citado professor da UNIFESP usou como desculpa para fazer sua crítica geral. Ele fez essas críticas genéricas, a quaisquer “demandas identitárias” em geral e a “cotas identitárias” em especial a pretexto de criticar um caso recente e extremamente polêmico, de apresentação de uma travesti com livro publicado em que visa desenvolver como conceito a ideia de “Educando com o Cu/Cuceta”, no qual, antes de defender suas ideias, fez uma performance com minissaia em cima da mesa na qual, em seguida, apresentaria suas ideias. Embora ninguém que tenha assistido e dividido a mesa com ela tenha se incomodado, isso gerou protestos generalizados de pessoas em geral conservadoras e de direita, achando absurda e inadmissível tal conduta em uma universidade pública, bem como de pessoas progressistas, inclusive algumas mulheres trans, sobre ser algo “desnecessário” e “não-estratégico”, por ser bem evidente que seria usado pela direita e pela extrema-direita para “embasar” seus ataques já bem notórios, históricos e consolidados às universidades públicas em geral.
Tive debates bem duros desde o citado evento à luz do que as pessoas críticas consideram “(in)adequado” ao “ambiente acadêmico” e o que constitui ou não “ciência” e “conhecimento científico”. Meu ponto principal não é criticar quem acha que o que Tertuliana Lustosa defende em seus livros e fez no citado evento da Universidade Federal do Maranhão “não é adequado” a um “ambiente acadêmico” e/ou “não é” uma forma de “produzir conhecimento científico” e/ou de “fazer ciência”. Sobre isso, minha crítica se direciona ao extremo conservadorismo essencialista que acusa de “relativismo” descabido quem adota uma posição distinta da sua sobre o que é ou não “adequado/condizente” com o “ambiente acadêmico” e mesmo sobre que tipo de ideias podem ou não ser consideradas “acadêmicas”.
Essa posição é conservadora já na própria definição do que que é coerente ou não com as ciências humanas, enquanto ciências da compreensão/valoração sobre condutas humanas, para fins de entendimento das ações e do modo de ser e agir da humanidade em geral, em contraposição às chamadas ciências exatas, enquanto meras ciências da “constatação objetiva”, pautadas por “métodos objetivos neutros”. Incorre no conceito de “matematização” das ciências humanas, como se “ciência” só existisse na lógica do que acontece independente da nossa vontade (daí serem “ciências da constatação”), um estigma contra as ciências humanas até hoje, menosprezadas por muitos(as) pelo fato de, nelas, pessoas racionais e de boa-fé poderem legitimamente discordar na valoração/compreensão inerente a elas (ciências humanas), ao contrário do que o entendimento tradicional e, muito se diz, já superado ou relativizado sobre as próprias ciências naturais. Mas, reitero, meu foco principal no debate não é esse, pois pessoas racionais e de boa-fé podem legitimamente discordar sobre se uma produção ou conduta específica configura ou não uma conduta “adequada/condizente com o ambiente acadêmico”.
Meu ponto principal é o seguinte: as Universidades devem estar abertas a pessoas que têm ideias, problematizações e críticas ao conhecimento hegemônico ou a uma determinada situação consolidada (um “status quo”), ainda que quem quer que seja entenda que tal conhecimento “não é” científico ou acadêmico. Afinal, uma crítica bem notória, de matriz decolonial, pontua a necessidade da academia não se limitar a academicismos e cientificismos (conceitos distintos de defesas acadêmicas e científicas) e, principalmente, a pesquisadores(as) em “torres de marfim” que visam desenvolver teses/hipóteses sobre problemas sociais diversos sem ouvir as pessoas diretamente afetadas por eles. Quem me critica poderá dizer que essas “pesquisas empíricas” podem ser feitas fora dos “muros acadêmicos/universitários”, só que isso gera uma cisão absoluta e metafísica, por critérios conservadores, entre o que “pode ou deve” ser ouvido “dentro dos muros universitários” e o que “só pode” ser ouvido fora deles. Dizer que algo “não é compatível” com o “ambiente acadêmico”, porque nele “não se pode tudo, significa interditar o espaço da academia a pessoas que fazem o que a pessoa que defende isso acha “incompatível” com o ambiente acadêmico. E isso tem um nome muito famoso: censura, por querer “proibir” que o espaço universitário abarque condutas tais. Quem defende isso tem que ter, pelo menos, a coerência de defender sua posição como uma “censura válida”, pela “natureza das coisas” do “ambiente acadêmico” – uma forma de argumentação tradicionalmente conservadora. Quem defende isso não pode seriamente negar que está querendo fechar o ambiente universitário a temas que não consideram “acadêmicos/científicos”, pois essa é a consequência lógica de sua postura.
Por outro lado, meu ponto também é o de que eventos acadêmicos em geral inúmeras vezes contam com apresentações artísticas e direito de fala e considerações a pessoas que levam suas opiniões e críticas (não só “dúvidas”) não-acadêmicas. A pretensão de fechar o ambiente universitário só àquilo que se considere “acadêmico ou científico em sentido estrito” afigura-se descabido e/ou, no mínimo, extremamente problemático, por aumentar o fosso entre academia e sociedade, entre pessoas acadêmicas e pessoas não-acadêmicas (pessoas em geral!). O mínimo que a academia tem que ser é aberta à possibilidade de eventos nos quais sua organização possa convidar pessoas não-acadêmicas para fazerem falas e/ou performances não-acadêmicas, se houver pertinência temática com o “tema acadêmico” que o evento quer trabalhar. Não há nenhum “niilismo” ou “relativismo” criador de um “grau zero de sentido” nessa posição, ao contrário do que fui descabidamente acusado em duro debate informal. Há um mínimo de razoabilidade e bom senso em deixar a academia aberta também a discursos não-acadêmicos e não-científicos em seus eventos acadêmicos/científicos quando haja pertinência temática com os eventos em questão.
E, no caso de Tertuliana Lustosa, havia total pertinência temática com o tema do evento do qual participou. A uma, ela foi apresentar suas pesquisas e suas ideias que já publicou na forma de livro, então, no mínimo, era devida uma presunção de seriedade de suas ideias e suas teses. E isso as pessoas que a criticam em geral não lhe concedem, unicamente pelo seu mero ato de “dança sensual com minissaia sem roupa de baixo” – coloquemos assim, com a formalidade linguística que a academia tradicional tanto aprecia! Mas certamente receberei a réplica de que “o papel aceita tudo” e que não é porque algo está publicado na forma de livro que deve ter a si atribuído o rótulo de “trabalho acadêmico”, com o que concordo plenamente, pois o ponto não é esse! O ponto é que os princípios constitucionais da liberdade de cátedra e da autonomia universitária obviamente permitem que professores(as) e acadêmicos(as) em geral de universidades organizem eventos acadêmicos para chamarem para serem ouvidas pessoas, acadêmicas ou não, para difundirem suas ideias, problematizações e críticas, acadêmicas ou não, desde que com pertinência temática com tema acadêmico do evento acadêmico em questão. Veja-se que isso que estou fazendo aqui já é uma delimitação restritiva, pois estabelece um critério que eu acreditava que era mais do que óbvio, mas pelo visto não é: não se está dizendo que se pode “fazer qualquer coisa sobre qualquer coisa” nas universidades, pois é evidente que é preciso haver pertinência temática com tema acadêmico para que uma pessoa possa participar, como palestrante, de evento acadêmico. E, para ser acadêmico, um evento tem que se basear em um tema acadêmico, ainda que o evento sobre tema acadêmico possa ter pessoas não-acadêmicas fazendo falas e críticas de forma não-acadêmica sobre o objeto do tema acadêmico ali discutido. Portanto, a acusação de niilismo e de relativismo é manifestamente descabida.
Liberdade de expressão permite que as pessoas difundam quaisquer ideias que não configurem injúrias e discursos de ódio, mesmo que sejam ideias repudiadas pela maioria ou pela maior autoridade do multiverso (ou do universo, para quem não acredita no multiverso!). No mesmo sentido, as liberdades de expressão intelectual, cultural e científica também protegidas constitucionalmente garantem o direito de defender como “científicas” ideias que não sejam assim consideradas pela maioria ou pela maior autoridade científica do tema em questão. Configura puro autoritarismo pretender proibir que universidades, no exercício do seu direito à autonomia universitária, e professores(as), no exercício do seu direito à liberdade de cátedra e concepções pedagógicas, “não possam” organizar eventos em que tragam pessoas consideradas ou com falas consideradas “não-acadêmicas/científicas” por quem quer que seja.
Nos duros debates que tive, de forma um tanto contraditória, se negou que se estaria querendo “proibir algo”, ao mesmo tempo em que se disse que “muitas coisas não são para estar lá mesmo. (pois) Há finalidades pelas quais a universidade existe”, em resposta à minha fala pela qual, mesmo sem intenção, ali estaria se estaria defendendo uma ideia com “efeito” censório tal. Afinal, essa resposta foi dada logo após eu dizer que “Nunca defenderei que um espaço acadêmico não pode ouvir pessoas que têm ideias a difundir, ainda que consideradas ‘grosseiras/descabidas’ por muitos(as). Isso é da base da liberdade científica, acadêmica e de expressão”.
Sempre brinco que como o STF e a Corte Interamericana de Direitos Humanos entendem que é inconstitucional exigir diploma para ser jornalista, eu vou me conceder a garantia do sigilo da fonte! Aplico aqui esse princípio, porque o intuito não é um debate específico com a pessoa em questão, muito bem intencionada e que tem, apenas, uma concepção da qual discordo de maneira muito paradigmática que entendo extremamente perniciosa para um conceito constitucionalmente e socialmente adequado de ambiente universitário (e ela, certamente, acredita o mesmo sobre minha posição! Concordamos em discordar e as pessoas que me honram com a leitura desse texto podem tirar suas próprias opiniões sobre o tema). Apenas trouxe esse debate para exemplificar um pouco da vida como ela é nos debates reais, já que o intuito foi criticar o texto aqui expressamente referenciado, donde espero que tal debate informal enriqueça a compreensão de quem lê este texto, para que possa formar sua própria opinião.
Seja qual for o “melhor entendimento” sobre o “caso Tertuliana Lustosa”, voltemos ao título e ao início deste texto para ver-se como pessoas conservadoras e reacionárias agem para desqualificar minorias sociais em geral.8 O caso de Tertuliana Lustosa é a exceção da exceção no âmbito universitário, ainda mais em Universidades Federais e Estaduais, extremamente sérias que são, tanto que são sempre as melhores do país. Performances artísticas sensuais são raríssimas em eventos acadêmicos das ciências humanas, sendo que desconheço isso ter ocorrido, ao menos quando o evento não seja sobre arte erótica. Em eventos acadêmicos de Faculdades de Direito, certamente são raríssimos, se é que realmente ocorrem (desconheço). Nas Faculdades de Filosofia, Sociologia e Antropologia, também (idem). Constitui conservadorismo ou reacionarismo descabido opor-se a tais apresentações se houver pertinência temática com o tema em questão e obviamente não se converta em “pornografia”, o que nunca ocorre – o problema, aqui, é que pessoas conservadoras e reacionárias acusam de “pornografia” ou “obscenidade” o que não é em um sem número de casos (no passado, o Judiciário dos EUA já foi provocado a proibir publicações em defesa de direitos de “homossexuais” a pretexto de suposta “pornografia” inerente a isso – algo considerado inconstitucional pela Suprema Corte dos EUA no caso julgamento do ONE v. Olesen, 1957),9 então peço que leitores/as entendam o termo em algo que haja consenso sobre o tema. Então, sendo a exceção da exceção, certamente não poderia ser usado como “exemplo” de “identitarismo consolidado” na academia, que foi o que o texto em questão quis criticar.
E pior, o texto aqui criticado sequer conceitua, ainda que singelamente, o que considera “identitarismo” e que casos concretos (provados por “dados”, não só alegados genericamente) consistiriam na suposta “hegemonia” geradora dos supostos cancelamentos fruto de “complacência irrestrita”, por mero “temor compreensível de se ser tachado de preconceituoso, relegado ao ostracismo por colegas de trabalho ou, como não faltam exemplos, tornar-se alvo de investigações e processos administrativos”, com “destruição e humilhação públicas”, por “monopólio de um suposto 'lugar de fala' (que supostamente) se sobrepôs e superou o da pesquisa e seus resultados” (sic!). Eis a katchanga real aqui denunciada, caracterizadora de verdadeiro argumento de espantalho, por inventar o monstro do cancelamento de “especialistas” que quiseram fazer uma justa crítica acadêmica às supostas “bases frágeis” das argumentações das pessoas “identitárias” na promoção do seu “identitarismo”!
E que aparentemente quer infantilizar “especialistas sérios(as)”, para criar como “critério” de sua “vitimização” as críticas duras inerentes a um debate acadêmico e mesmo as críticas grosseiras lamentavelmente frequentes nas redes sociais. Na lógica do famoso quem fala o que quer, ouve o que não quer, quem quer fazer uma crítica se abre a receber críticas também, o que vale em geral, donde também vale para uma “crítica acadêmica séria”, que se submete a “críticas acadêmicas sérias a suas críticas acadêmicas” e mesmo a críticas de pessoas não-acadêmicas a críticas acadêmicas. Se a pessoa deixa de fazer uma “crítica acadêmica séria” por “medo de cancelamento”, então ela se mostra não ter compromisso real com o conhecimento acadêmico em questão, por só se manifestar quando isso lhe for conveniente. Definitivamente, não é assim que as coisas funcionam em um debate acadêmico sério e em um debate social sério em geral.
A síntese do meu ponto principal é a seguinte: é evidente que se pode criticar casos concretos em geral e que, no exercício de sua liberdade de cátedra e do princípio da autonomia universitária, professores(as) não chamem para os eventos acadêmicos que organizarem pessoas que difundam determinadas ideias e/ou façam determinadas performances, submetendo-se a críticas públicas por suas ações ou omissões nos temas e nas pessoas que elegem para os eventos acadêmicos que pretendem realizar. Contudo, o ponto é que não se pode seriamente querer defender que, pelo critério de “ciência” e/ou de “atividade acadêmica em sentido estrito” que a pessoa adote, queira-se proibir que as pessoas que querem chamar aos eventos acadêmicos que organizam pessoas que difundam determinadas ideias e/ou façam determinadas performances, também aqui submetendo-se a críticas públicas por suas ações ou omissões nos temas e nas pessoas que elegem para os eventos acadêmicos que pretendem realizar. Simples assim.
Estamos vivendo a era do espantalho do identarismo, bem na lógica da falácia do argumento de espantalho: a pretexto de combater um “monstro” intolerável (o “espantalho”), atacam-se outras pessoas ou outros alvos, pela distorção de um conceito para atacar determinados alvos a partir dessa versão distorcida. Afinal, textos como o de Miskolci distorcem as demandas e pretensões dos Movimentos Sociais de grupos estigmados para, a partir dessa distorção feita sob o rótulo de “identitarismo” (“woke”, “identitário” etc), atacarem demandas legítimas e nada autoritárias de Movimentos Sociais de grupos estigmatizados, acusando-os de fazerem o que eles como um todo não fazem, a saber, o espantalho da censura acadêmica a críticas sérias de especialistas sérios(as).
Aplica-se com perfeição o que a ensaista e escritora Juliana Borges, autora de importantes estudos antirracistas10 recentemente denunciou em sua rede social: a culpabilização e/ou responsabilização de demandas de minorias sociais por derrotas de lideranças progressistas em pleitos eleitorais pelo “espantalho do identitarismo”, propugnado pela “cabeça entorpecida de quem comanda estes partidos”, ou seja, quem tem o poder de mando sobre ele, na sua nefasta culpabilização de “mulheres, negros, indígenas, população LGBTQPIA+”. Um espantalho que “maqueia, num bom uso ideológico que só a burguesia até então fazia, quem realmente faz as escolhas e defina a política. E não somos nós”. Vale a longa citação do restante de sua infelizmente precisa fala, após sua ironia inicial contra o racismo negrofóbico sofrido reiteradamente pelo jogador Vini Jr na Espanha e na Europa, em jogos do Real Madrid e até no não-reconhecimento de seu status como melhor jogador do mundo, quando disse que “talvez o Vini Jr. Tenha que deixar de ser identitário e dialogar com a dona Maria da base. Contém ironia”:
O espantalho do identitarismo é (colocado como) o culpado do fracasso de uma tática eleitoral baseada em marketing milionário e entorpecida pela falsa dicotomia entre reconhecimento e redistribuição, quando ambas caminham juntas. Mas reconhecer para redistribuir envolve se olhar no espelho sem o narcisismo que só busca olhar a si próprio. Falam de uma dona Maria imaginária, plana, sem subjetividades e desejos. A chamam de precarizada quando ela se vê batalhadora – ah, se tivessem lido a diferença entre imagem de controle e o poder da autodefinição. Mas é coisa escrita por identitárias, né? Qual o quê?
O espantalho do identitarismo esconde o que um tweet disse bem: é triste escolher essa invenção de identitarismo como inimigo ante o combate a fome e à extrema-direita. Disputa hegemônica mandou abraço pra esquerda, camarada Gramsci. Quando defender o direito intransigente à humanidade de todos se torna uma agenda radical e que uns entendem que deve ser combatida, estamos mal. E nada diferentes de uns invasores em 1500. Qual o quê?
O negócio mesmo, pra essa gente, é abaixar a cabeça e aguentar a opressão. Vini Jr. Que o diga. Qual o quê?11
Registre-se o óbvio, por necessário nesses tempos estranhos. Obviamente casos pontuais de exageros e abusos ocorram e devam ser criticados duramente. Mas além deles ocorrerem em número ínfimo comparado ao que inúmeras acusações descabidas querem fazer crer, criticar casos isolados não permite a desonestidade intelectual de generalizar uma suposta “complacência irrestrita”, por mero “temor compreensível de se ser tachado de preconceituoso, relegado ao ostracismo por colegas de trabalho ou, como não faltam exemplos, tornar-se alvo de investigações e processos administrativos”, com “destruição e humilhação públicas”, por “monopólio de um suposto ‘lugar de fala’ (que supostamente) se sobrepôs e superou o da pesquisa e seus resultados” (sic!). Ocorre que foi isso que o texto de Richard Miskolci aqui criticado fez e é por isso que merece a dura crítica aqui formalizada.
Permitam-me uma pitada de humor sarcástico (e tragicômico) para dizer que gostaria de terminar esse texto com um “Ante o exposto, requer-se a condenação do autor citado por academicismo de má-fé, por alterar a verdade dos fatos a seu favor” (!), por analogia ao disposto no art. 80, inciso II, do CPC, que qualifica tal deturpação da verdade dos fatos como litigância de má-fé, embora no contexto da violação do padrão de conduta imponível pelo princípio da boa-fé objetiva (cf. supra). Mas como estamos em artigo acadêmico, ainda que online e não para uma revista científica, o advogado-jurista aqui focará na sua atividade enquanto jurista-acadêmico, para finalizar da forma como segue.
Para concluir, parece bem evidente que as lutas de pessoas que integram minorias sociais têm incomodado profundamente pessoas de ambos os lados do tradicional espectro político, pois tanto integrantes das esquerdas tradicionais quanto das direitas, embora por motivos diferentes, visam desqualificar integrantes de minorias sociais na sua luta reformista por um Estado de bem-estar social que proteja também e com a mesma prioridade os direitos antidiscriminatórios indispensáveis à garantia do igual respeito e consideração a elas (cf. supra). Usam os termos “identitário”, “identitarismo” e a sigla “woke” como cartas-coringa-genéricas, para desqualificar de forma vaga e não-fundamentada demandas indispensáveis a uma democracia de verdade, já que as mulheres (cis e trans), as pessoas negras, com deficiência e LGBTI+ (entre outras) não podem esperar a “revolução socialista com liberdade” ou a resolução de todos os problemas de segurança pública (etc) para finalmente “chegar sua (nossa) vez” de ter suas demandas não-discriminatórias consideradas e atendidas. Temos direito de termos nossas demandas consideradas e acolhidas imediatamente e não deixaremos de fazer nossas reivindicações porque isso incomoda quem acha que haveria “demandas mais importantes” a ser perseguidas. Inclusive por ser um falso problema esse que visa estabelecer “prioridades”, já que todas as demandas podem ser acolhidas e “escolhas trágicas” não precisem ser feitas de antemão, mas somente na “hora H” de uma votação, se for estritamente necessário, assumindo-se não só os bônus, mas também os ônus de tal escolha política. Essa katchanga real precisa ser apontada e repudiada como tal e esse foi o intuito deste texto.
Exercício regular do direito de crítica acadêmica aqui realizado com sucesso e no tema dos direitos de minorias sociais em geral, objeto do texto aqui duramente criticado, permito-me parafrasear o “Velho Lobo – Zagallo”, para dizer: vocês vão ter que nos engolir! Pois, parafraseando máxima de paradas do orgulho LGBTI+ mundo afora, nós estamos aqui e temos visões de mundo diferentes que vocês, por preconceito ou ignorância, consideram “estranhas” – conformem-se!12 Isso porque, para finalizar com paráfrase da célebre frase de Mario Quintana: ideologias como as aqui criticadas passarão, nós passarinho! Ou seja, suas críticas descabidas que visam ou têm o efeito de censurar ou menosprezar nossas demandas passarão, pois têm como destino o lixo da história, ao passo que nossas justas demandas por igual respeito e consideração passarinho, porque prevalecerão no fim dessa história.13 Minorias sociais não voltarão ao armário, não deixarão de lutar por igual respeito e consideração e não deixarão de comparecer a espaços acadêmicos para fazerem as críticas que acharem devidas, especialmente quando convidadas a evento acadêmico com pertinência temática tal (cf. supra), ressalvado exercício regular do direito fundamental ao protesto e à crítica em outros casos. Pela atenção, obrigado.
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1 Atualmente, disponível em: LIMA, George Marmelstein. Teoria da Katchanga. JusBrasil, 2016. Disponível em: . Não localizei o texto original no blog do festejado autor, que foi citado por outros textos como: LIMA, George Marmelstein. Alexy à Brasileira ou Teoria da Katchanga. Blog “Direitos Fundamentais”, 2008. Link original (que atualmente remete ao site geral): http://direitosfundamentais.net/2008/09/18/alexy-a-brasileira-ou-a-teoria-da-katchanga/>. Assim citado por: CRUZ, Luis Felipe Ferreira Mendonça. Ações Afirmativas e o Princípio da Igualdade, Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. 2011. Disponível em:
2 STRECK, Lenio Luiz. A Katchanga e o bullying interpretativo no Brasil. Consultor Jurídico, 28 jun. 2012. Para nova síntese do autor: STRECK, Lenio Luiz. Com ‘Katchanga Real’, Congresso quer colocar o STF nas cordas. Consultor Jurídico, 14 out. 2024. Acessos: 30 out. 2024. Pontue-se minha discordância sobre a teoria da argumentação jurídica e a teoria da ponderação de princípios alexyana (de Robert Alexy) ser necessariamente uma “katchanga”, um “solipsismo” ou algo violador do aspecto deontológico do Direito (binômio licitude-ilicitude) se levada a sério em seus pressupostos dogmáticos. Pois tanto não o é que a lei brasileira teve que ser alterada para que se imponha sua aplicação correta, embora por um conceito simplificador, constante do art. 489, §2º, do Código de Processo Civil, o qual, todavia, parece positivar a essência da teoria alexyana levada a sério. Entendo que a ponderação nada mais faz do que estabelecer uma metodologia racional de realização da famosa interpretação sistemático-teleológica do Direito, interpretado como um todo (pois, ao contrário do que famosas críticas querem fazer crer na sua descabida acusação de “irracionalidade” da teoria da ponderação de princípios, estabelecer um procedimento racional não significa que ela gere uma “única resposta possível” na busca da resposta correta do Direito naquele caso concreto ou processo de controle abstrato de constitucionalidade ou convencionalidade – que é aquela mais coerente com as regras e princípios em vigor no país, em um juízo de plausibilidade, na famosa definição de Dworkin sobre a teoria da resposta correta, no livro Levando os direitos a sério). Mas o tema transcende muito o objeto deste já longo texto e fica, assim, para um momento futuro.
3 Agradeço ao Prof. Alexandre Bahia pelo comentário que gerou essa frase, na sua gentil análise desse texto.
4 MISCOLCI, Richard. A crise da hegemonia universitária das universidades. Rede Estação Democracia, 25 out. 2024. Disponível em: . Acesso: 25.10.2024.
5 Agradeço ao Professor Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, Professor de todes nós, pelo envio do artigo aqui criticado e a provocação epistemológica que me conclamou a escrever essa resposta. Chamo de Professor de todes nós pelo rico trabalho de orientação de Doutorado, Mestrado e Graduação de décadas feito pelo ilustre constitucionalista pátrio, que tantas pessoas maravilhosas ajudou a formar/desenvolver, além de atual professor Titular de Direito Constitucional do Departamento de Direito Público da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais e Bolsista em Produtividade do CNPq (Pq 1D). E uso todes não só por aceitar o termo, mas como provocação a pessoas reacionárias que têm ojeriza ao reconhecimento e à proteção de pessoas não-binárias por intermédio de termos não-binários e a pessoas que, embora não reacionárias em geral, têm posição reacionária nesse tema!
6 SILVA, Daniele Santos da. NUNES, José Mauro Gonçalves. Diversidade e Inclusão no Ensino Superior: Um Estudo Sobre o Posicionamento de Mercado de IES Privadas a Partir da Percepção dos Gestores Educacionais. XLV Encontro da ANPAD - EnANPAD 2021 On-line - 4 - 8 de out de 2021 - 2177-2576 versão online, p. 01. Disponível em: . Acesso: 30 out. 2024.
7 Agradeço novamente ao Prof. Alexandre Bahia, por chamar a atenção ao tema do trecho do lugar do qual quem fala está falando.
8 Isso não se aplica à pessoa com quem debati, apesar da coincidência de resultados neste caso específico. Não se trata de pessoa conservadora no geral, embora tenha posições conservadoras aqui e ali, apesar de ser uma pessoa progressista em geral. Um ser humano, demasiado humano, como todas, todes e todos nós! E, novamente, uso todes não só por aceitar o termo, mas como provocação a pessoas reacionárias que têm ojeriza ao reconhecimento e à proteção de pessoas não-binárias por intermédio de termos não-binários e a pessoas que, embora não reacionárias em geral, têm posição reacionária nesse tema!
9 Para explicação de todo histórico do caso: VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. HEEMAN, Thimootie Aragon. One, Inc. v. Olesen, 1958. In: BECKER, Rodrigo Frantz (Coord.). Suprema Corte dos Estados Unidos. Casos Históricos, São Paulo: Almedina, 2022. A decisão é muito singela, determinando a anulação da decisão de segunda instância para que o caso fosse decidido novamente, aplicando-se o critério definido pela Suprema Corte em precedente anterior, sobre o que configura ou não “ato obsceno” passível de proibição legal (“A petição para mandado de certificação foi concedida e o julgamento da Corte de Apelações do Nono Circuito dos EUA foi revertido. ‘Roth v. United States’”). Ou seja, entendeu que as publicações da revista ONE não se enquadram neles. Para compreender a decisão, é preciso entender que a censura tinha barrado a ONE por dois artigos e um anúncio. O primeiro, o poema “Safo Relembrada”, um romance de quatro páginas escrito por James Barr Hugate, pelo qual a cantora Pavia gradualmente admitiu para si mesma que estava apaixonada pela jovem Jill, que ficou dividida entre ela e o “bom jovem” que queria se casar com ela. Mas, “ao contrário da maioria da ficção lésbica da época, não havia nenhuma cena trágica de morte lésbica para manter os censores governamentais afastados. O relacionamento lésbico simplesmente triunfou”. Os oficiais federais afirmaram que a publicação era “obscena porque luxuriosamente estimulava o(a) leitor(a) homossexual médio(a)”. O segundo artigo atacado pela defesa do Correio foi o poema sobre “Lord Samuel e Lord Mangu”, que problematizava prisões britânicas de vários homens proeminentes, por acusações de bases morais homossexuais (“homossexual ‘morals’ charges”): em síntese, um trecho em que se ironizava a afirmação de que a “sodomia” traria a desgraça ao reino, indagando-se retoricamente se a pessoa ainda pensaria assim se tivesse conhecido o “Rei Elizabeth” e a “Rainha James”, invertendo nome e cargo de rei e rainha [possivelmente insinuando suas homossexualidades]. Por último, apontou-se um pequeno anúncio de uma revista suíça trimestral, “porque dá informação sobre como obter material obsceno”, a saber, a própria revista suíça. A ação da ONE foi derrotada nas duas primeiras instâncias. O Juiz Clarke declarou a edição de outubro de 1954 como “obscena” pelas razões apontadas pela defesa do Correio, e em uma explicitação de sua própria e gritante homofobia, afirmou que “A sugestão de que homossexuais devem ser reconhecidos como um segmento do nosso povo e ter a si atribuída a categoria especial de classe é rejeitada”. Em 27 de fevereiro de 1957, o painel de três juízes da Corte de Apelações do Nono Circuito classificou a edição de outubro de 1954 como “moralmente depravada e aviltante”, de sorte que “obscena e não-enviável pelo correio”. Também demonstrando um profundo grau de homofobia, típico da época, aduziu a Corte que “A revista... tem o propósito primário de excitar pensamentos de luxúria, sensualidade e lascívia nas mentes das pessoas que a leem”, de sorte que, citando precedentes anteriores e demonstrando a sua explícita homofobia, afirmou que “as leis contra a obscenidade não são destinadas a se enquadrar nos padrões morais da “escória da sociedade”, pois “Padrões sociais são fixados pela e para a grande maioria e não por ou para uma minoria endurecida e enfraquecida”. Sobre o poema lésbico, classificou-o como “pornografia barata destinada a promover o lesbianismo” pelo fato da jovem ter trocado sua “chance de uma vida normal para ficar com a lésbica”, o que não se adequaria ao declarado intuito da ONE de lidar com a homossexualidade de um ponto de vista científico, histórico e crítico. Sobre o poema dos Lordes, afirmaram que ele teria uma “natureza tão vulgar e indecente que tende a fazer surgir o sentimento de nojo e repulsa”. Por fim, aduziu que o anúncio suíço seria apenas aparentemente inofensivo, “mas não é, os juízes disseram, porque ele informa aos leitores ‘onde conseguir mais do material contido na ONE’”. Veja-se, um Tribunal afirmou que homossexuais seriam “a escória da sociedade”, afirmando ainda que uma mulher preferir relacionar-se com uma mulher em detrimento de se relacionar com um homem configuraria “promoção” da lesbianidade mediante “pornografia barata”, por considerar isso inadmissível. Esse foi o grau de homofobia direta e institucional decorrente da homofobia estrutural então tira como “aceitável” na época. Ou seja, a Corte de Apelações do Nono Circuito identificou homossexuais como parte da “escória da sociedade”, numa evidente desumanização negatória da cidadania homossexual e sua inferioridade quase ontológica relativamente à heterossexualidade, ao não admitir a possibilidade racional de uma mulher preferir uma relação amorosa com outra mulher em detrimento da relação com um homem, equiparando a homossexualidade como algo que daria “nojo e repulsa”. Vemos aqui uma manifestamente extrema do heterossexismo e da heteronormatividade no Direito, ou seja, das ideologias que pregam que a heterossexualidade seria a única orientação sexual “sadia” ou “válida”, a qual deveria constituir a “norma” social, rechaçadas como “nojentas, repulsivas ou intoleráveis” quaisquer outras orientações sexuais e, especificamente, os relacionamentos afetivo-sexuais com pessoas do mesmo gênero. Longe de ser um julgamento imparcial e objetivo, expressou o moralismo totalitário homofóbico e heterossexista da época, tratando apenas pessoas heterossexuais como sujeitos de direito, negando quaisquer direitos de cidadania a homossexuais e não-heterossexuais em geral (bissexuais, pansexuais, assexuais etc). Afinal, considerar como “obscena, sensual, lasciva ou imunda” uma publicação que relata um romance (sem referência a atos sexuais), uma ironia crítica à consideração da homossexualidade como algo supostamente “ruim” ou “pernicioso” e um anúncio de uma revista apenas porque destinada ao público homossexual constitui um juízo valorativo homofóbico, por inferiorizante de homossexuais relativamente a heterossexuais, e não um puro silogismo, já que tais situações, quando destinadas ao público heterossexual, não são assim classificadas; eis os dois pesos e duas medidas denunciados pela ação da ONE. Para ampla explicação do histórico do caso, da sua judicialização e das decisões e informações citadas: MURDOCH, Joyce. PRICE, Deb. Courting Justice. Gay Men and Lesbians v. the Supreme Court, New York: Basic Books, 2001, p. 27-50.
10 Como seu livro: BORGES, Juliana. Encarceramento em massa, Coleção Feminismos Plurais (coord. Djamila Ribeiro), São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
11 BORGES, Juliana. (Espantalho do Identitarismo). Instagram, 29 out. 2024. Disponível em: . Acesso: 30 out. 2024.
12 A expressão é “We’re here, we’re queer, deal with it”. O termo “queer”, que literalmente significa “estranho/esquisito”, passou por profunda ressignificação, pois ele era usado no passado de forma extremamente pejorativa, para menosprezar minorias sociais em geral (não só LGBTI+) como subversivas no sentido pejorativo da palavra e passíveis de “repudio social” por isso. O termo passou por ressignificação positiva para abarcar pessoa que adota identidade ou postura não-hegemônica e, ainda, não-essencialista, além de, nas últimas décadas, ter sido praticamente monopolizada no contexto dos debates dos direitos da diversidade sexual e de gênero da população LGBTI+ - Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Intersexos e demais minorias sexuais e de gênero (não-cishétero) que não se identificam com as identidades mencionadas na sigla. Nesse contexto, como o termo “queer” não tem tradução hegemônica, preferi explica-lo com “diferentes que vocês consideram ‘estranhas’ por preconceito ou ignorância”. Daí a liberdade poética da tradução do corpo do texto.
13 Sobre o famoso trecho do célebre “Poeminha do Contra”, de Mário Quintana (“Todos esses que aí estão/Atravancando meu caminho,/Eles passarão.../Eu passarinho!”), vale essa bela e sintética análise de Carolina Marcello, Mestra em Assuntos Literários, Culturais e Itinerantes e Licenciada em Estudos Portugueses e Lusófanos pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto: “Por um lado, podemos pensar que se trata do substantivo ‘pássaro’ em graus diferentes. Assim, o sujeito poético estaria indicando que, na sua visão, os obstáculos são maiores que ele, que é apenas um ‘passarinho’. Por outro lado, ‘passarão’ pode ser lido como uma conjugação futura do verbo ‘passar’ (terceira pessoa do plural). Isso indicaria que todos os seus problemas são efêmeros e, eventualmente, irão se dissipar. Deste modo, o sujeito pode ser comparado a um ‘passarinho’, sinônimo de liberdade e de leveza”. MARCELLO, Carolina. Poeminho do Contra de Mario Quintana. Cultura Genial, s/d. Disponível em: . Acesso: 30 out. 2024. Grifo nosso.