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A relativização da eficácia das cláusulas de eleição de foro nos contratos empresariais a partir do advento da lei 14.879/24

A lei 14.879/24 altera a validade das cláusulas de foro em contratos, limitando a liberdade contratual ao exigir relação com o domicílio das partes ou local da obrigação.

31/10/2024

No dia 4/6/24 foi sancionada pelo presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva a lei 14.879/24 que altera a lei 13.105 de 16 de março de 2015 (CPC) para alterar a redação do parágrafo primeiro do art. 63 do CPC, estabelecendo que as cláusulas de eleição de foro devem guardar relação com o domicílio das partes contratantes ou com o local do cumprimento da obrigação, sob pena de declinação de competência de ofício pelo Juízo.

A (in)eficácia das cláusulas de eleição de foro é matéria controversa nos Tribunais de Justiça pátrios, sobretudo quando interpretadas em um contexto de relação de consumo, de nítida hipossuficiência/vulnerabilidade de uma das partes ou quando latente a finalidade de dificultar ou impossibilitar o acesso ao Poder Judiciário por uma das partes.

O STJ dispõe de um acervo considerável de decisões no sentido de que, verificada a prejudicialidade à defesa do consumidor pode o Juízo, de ofício, declarar nula a cláusula de eleição de foro. Cita-se, à título de exemplo, uma das diversas decisões da Corte Superior neste sentido.

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. AÇÃO DE RESTITUIÇÃO POR ENRIQUECIMENTO ILÍCITO. RECEBIMENTO DE DEPÓSITOS INDEVIDOS FEITOS PELO PRÓPRIO BANCO. RELAÇÃO DE CONSUMO. COMPETÊNCIA ABSOLUTA. DOMICÍLIO DO CONSUMIDOR. CLÁUSULA DE ELEIÇÃO DE FORO. ABUSIVIDADE RECONHECIDA. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO.

[...]

4. Reconhecida a abusividade da cláusula de eleição de foro, por acarretar prejuízos à defesa da parte, aplica-se a competência absoluta do foro do domicílio do consumidor.

5. Agravo interno a que se nega provimento.

(AgInt no CC 197.244/SP, relator ministro João Otávio de Noronha, 2ª seção, julgado em 14/5/24, DJe de 20/5/24.)

No entanto, a discussão naquele contexto restringe-se às relações de consumo, em contratos por adesão ou de nítida hipossuficiência de uma das partes contratantes.

Por outro giro, sob a ótica do direito empresarial e das relações paritárias e simétricas, a lei em comento, na opinião deste Autor, afronta diretamente o princípio da força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda) e da liberdade contratual, além de configurar um evidente retrocesso no que toca à autonomia privada nas relações contratuais.

Sendo assim, este texto tem por objeto a análise conjunta da lógica própria aplicável aos contratos empresariais, o princípio da autonomia privada e as novas regras de fixação de competência trazidas pela referida lei.

Quando se fala do princípio da autonomia privada no âmbito da teoria geral dos contratos temos por essencial a distinção da liberdade de contratar da liberdade contratual. A primeira diz respeito à autonomia da parte na escolha de contratar ou não contratar, por vez que a segunda guarda relação com a possibilidade de as partes negociarem e estabelecerem os conteúdos, cláusulas e condições do instrumento contratual conforme seus próprios interesses.

É dizer que, em razão da liberdade contratual, as partes são livres para estabelecer com quem vão contratar, delimitar o objeto da relação contratual e impor, aos seus próprios interesses, os conteúdos daquele instrumento contratual.

No contexto dos contratos empresariais, dever-se-ia prezar ainda mais pela autonomia privada, considerando que a liberdade contratual é exercida com uma única e exclusiva finalidade: o lucro.

Consequentemente, as relações contratuais entre empresas regem-se por sua própria lógica ante suas especificidades e, principalmente, como dito, pelo fato de que ambas as partes contratantes têm por finalidade o lucro na sua atividade, consequentemente moldando suas condições contratuais para esse fim.

No entanto, infelizmente, não foi essa a ideia que norteou o legislador de 2002 na elaboração do Código Reale. A lei 10.406/02 (CC), seguindo caminho trilhado pelo CC Italiano de 1942, tentou unificar o direito privado, pelo menos no que toca à teoria geral dos contratos, em uma única lei, tanto as normas aplicáveis ao relações civis, quanto as aplicáveis às relações empresariais.

Lado outro, felizmente, essa tentativa de unificação vem sendo superada em razão do trabalho de notáveis juristas. Referencia-se, por exemplo, o advento da lei 13.874/19 (LLE - Lei de Liberdade Econômica) que incluiu o art. 421-A no CC, para dispor que os contratos civis e empresariais se presumem paritários e simétricos, estabelecendo uma distinção entre os contratos de natureza civil, os de origem interempresarial e deixando a regulação dos contratos consumeristas ao CDC - Código de Defesa do Consumidor. Nesse sentido, muito bem escreve a professora Cláudia Lima Marques “[...] pois a reconstrução do direito privado brasileiro identificou três sujeitos: o civil, o empresário e o consumidor” (MARQUES, 2021).

Exposto isso, não é razoável ou, ao menos, não é desejável, que se aplique aos contratos empresariais a integralidade de regras e princípios que norteiam as relações civis, tampouco aquelas regras ou princípios que regem os vínculos contratuais de natureza consumerista ou de evidente hipossuficiência econômica, devendo ser enrijecido de forma considerável a proteção aos princípios da autonomia privada e da força obrigatória dos contratos.

Nos ensina a Ilustríssima professora Paula Andrea Forgioni:

“O diferenciador marcante dos contratos comerciais reside no escopo de lucro de todas as partes envolvidas, que condiciona seu comportamento, sua vontade comum e, portanto, a função econômica do negócio, imprimindo-lhe dinâmica diversa e peculiar.” (FORGIONI, 2018).

Não é diferente o posicionamento de Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Faria:

“Os contratos interempresariais são aqueles celebrados entre empresas, em que somente empresas fazem parte da relação, pois ambos os polos da relação têm sua atividade movida pela busca do lucro.” (ROSENVALD; FARIAS, 2024).

Portanto, a salvaguarda dos fundamentos das relações privadas, que é a autonomia privada das partes e o pacta sunt servanda deve ser promovida de modo a melhor acomodar os agentes econômicos – partes contratantes, na busca pelo lucro na atividade empresarial. Nesse sentido:

“Ainda neste diapasão, não podemos olvidar um dado fundamental: a autonomia privada nos contratos interempresariais é mais ampla do que nos contratos puramente civis e, notadamente, alargada quando comparada aos contratos consumeristas.” (ROSENVALD; FARIAS, 2024).

Tanto é verdade que o Conselho de Justiça Federal aprovou, na I Jornada de Direito Comercial, o Enunciado 21 assim ementado: “Nos contratos empresariais, o dirigismo contratual deve ser mitigado, tendo em vista a simetria natural das relações interempresariais.”.

Feita essa breve exposição acerca da peculiaridade dos contratos empresariais, no sentido de uma categoria autônoma de relação contratual às relações civis e de consumo, surge a insatisfação relativa à lei 14.879/24, que trouxe novas regras para a eficácia de cláusulas de eleição de foro.

Antes de adentrar ao mérito da cláusula de eleição de foro propriamente dita, cumpre fazer algumas breves considerações acerca da competência no âmbito do direito processual civil. A competência é regulada entre os arts. 42 ao 53 da lei 13.105/15 (CPC).

Daniel Amorim Assumpção Neves conceitua a competência como a limitação do exercício legítimo da jurisdição. As regras de competência podem ser relativas ou absolutas. A primeira prestigia a vontade das partes, por vez que as absolutas são fundadas em normas de ordem pública, para as quais a liberdade das partes deve ser desconsiderada, em virtude da prevalência do interesse público sobre os interesses particulares (NEVES, 2023).

A competência em razão da pessoa é uma das hipóteses de competência absoluta. É dizer que, por exemplo, as ações que tenham como parte a União Federal, fundações ou empresas públicas federais deverão ser processadas perante a Justiça Federal, com exceção das ações relativas ao direito da insolvência (recuperação judicial e falência de empresas) - (art. 109, inciso I da CR/88).

Por outro giro, exemplo clássico de competência relativa é a competência territorial, por meio da qual se determina qual o foro competente para a demanda. A regra geral do CPC é a de domicílio do réu (art. 46), aplicáveis as ações de direito pessoal e real sobre bens móveis.

Ato contínuo, por ser a competência territorial de natureza relativa, admite-se a convenção pelas partes, de modo a eleger a circunscrição territorial judiciária competente para julgar eventual conflito decorrente daquele contrato, p. ex. É a chamada cláusula de eleição de foro.

A cláusula de eleição de foro encontra amparo no art. 78 do CC, que dispõe que nos contratos escritos as partes contratantes poderão especificar domicílio onde se exercitem e cumpra os direitos e obrigações deles resultantes.

A antiga redação do art. 63, §1º do CPC trazia que a eleição de foro só produzia efeito quando constasse de instrumento escrito e aludisse, expressamente, a determinado negócio jurídico. Portanto, percebe-se, que a cláusula de eleição de foro encontrava como requisitos para sua eficácia: (i). constar de instrumento escrito e (ii). fazer alusão expressa a determinado negócio jurídico.

Além desses requisitos, havia algumas hipóteses de ineficácia da cláusula de eleição de foro, quando esta fosse abusiva. Fredie Didier Jr. lista algumas hipóteses de ineficácia, dentre elas está, como já abordado neste texto, a eleição de foro pactuada em contrato de consumo, onde ter-se-ia por abusiva quando (i). a parte aderente não dispunha de intelecção suficiente para compreender o sentido e as consequências da estipulação contratual, (ii). se da cláusula resultar dificuldade ou inviabilidade de acesso ao Poder Judiciário ou (iii). quando se tratasse de contrato de obrigatória adesão (DIDIER JR., 2016).

Portanto, percebe-se que a lei 14.879 de 2024 traz, agora, um novo requisito para a eficácia da cláusula de eleição de foro, para além dos já existentes, que é a pertinência do foro eleito com o domicílio/residência de uma das partes ou com o local da obrigação, ressalvada a pactuação consumerista, quando favorável ao consumidor, sob pena de declinação da competência de ofício (art. 63, §5º do CPC).

É dizer que, em síntese, sob a nova regra, condiciona-se a eficácia da cláusula de eleição de foro à pertinência do foro eleito como competente com o domicílio de uma das partes ou com o local de cumprimento da obrigação.

A partir de todas as considerações feitas acerca dos contratos empresariais como uma classe autônoma e o maior prestígio ao princípio da autonomia privada, os leitores mais perspicazes já devem ter começado a sentir inquietações acerca da modificação trazida pela lei 14.879/24 no diploma processual civil.

Ora, a cláusula de eleição de foro, assim como qualquer outra disposição de um contrato empresarial, como uma convenção de arbitragem, p. ex., é estabelecida por meio do exercício da liberdade contratual, de forma a melhor refletir a intenção e a vontade dos agentes econômicos o que não implica – necessariamente, que guardará relação com o domicílio de um dos contratantes ou com o local do cumprimento da obrigação.

A lei em comento, cuja proposta partiu do Deputado Federal Rafael Prudente (MDB) encontrou justificativas em dois pontos: (i). eventual violação à boa-fé objetiva e lealdade processual ao estipular eleição de foro aleatório e (ii). a limitação da liberdade contratual em prol do interesse público na eficiência e excelência da prestação jurisdicional nos tribunais.

Na última justificativa, utilizou-se como principal argumento suposta superlotação no TJDFT - Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, que teriam sido ali ajuizadas em razão da celeridade do órgão para apreciação das demandas, respaldado em cláusula de eleição de foro que estipulava como competente o foro do Distrito Federal.

Com a máxima vênia ao Ilustre Parlamentar, mas um caso esporádico, sobre o qual sequer apresentou-se dados e números concretos não pode ser fundamento para restrição da autonomia privada, sobretudo na esfera empresarial, onde dever-se-ia prezar ainda mais pelos princípios do pacta sunt servanda e da liberdade contratual.

Percebe-se, ainda, evidente contradição na justificativa do PL - Projeto de Lei 1.803/23, pois o Parlamentar narra que o TJDFT foi premiado como o melhor tribunal do Poder Judiciário Brasileiro e, ainda assim, propõe o referido projeto de lei sob a premissa de que o tribunal em questão vem recebendo uma “enxurrada de ações”.

A bem da verdade, sancionou-se uma lei sem ouvir o mercado, a comunidade jurídica, a academia e sem uma prévia análise dos impactos que a mudança traria às relações empresariais, aos contratos internacionais.

O legislador deixou, inclusive, de projetar eventuais problemas que viriam com a referida lei. Os tribunais pátrios já vêm enfrentando dificuldades até mesmo para delimitar o termo inicial da aplicação da mudança legislativa – se aplicável após a celebração de novos contratos ou na data da distribuição das ações, mesmo que o contrato objeto destas ações tenha sido celebrado em momento anterior ao advento da lei em análise.

Outra problemática que não foi pensada pelo Parlamento: o que acontece se, na vigência de um determinado contrato, as partes realocam a sua sede? Ter-se-á por competente o foro da comarca da sede da parte contratante à época da celebração do contrato ou da data da distribuição do processo?

A título de exemplo, imaginemos um contrato firmado entre uma empresa de engenharia sediada na cidade de São José dos Campos/SP e uma gigante do setor de gás e energia sediada no exterior. O objeto do hipotético contrato trata-se de uma complexa operação de engenharia a ser executada na cidade de extrema, sul de Minas Gerais, onde será construída uma filial da contratante estrangeira.

As partes, optando pela jurisdição brasileira, pactuam convenção de arbitragem no contrato em questão e, por outro lado, elegem como competente o foro da comarca da Capital de São Paulo, em razão da existência de varas especializadas em Direito Empresarial e conflitos relacionados à arbitragem.

Ante a existência de compromisso arbitral, o foro de eleição teria a finalidade para tratar, p. ex., das medidas cautelares e de urgências previstas no art. 22-A da lei 9.307/96 (lei de arbitragem) ou até mesmo de eventual ação anulatória de sentença arbitral.

No entanto, em razão do advento da lei 14.879/24, as partes não poderiam promover uma ação anulatória de sentença arbitral, p. ex., perante uma das varas especializadas em Direito Empresarial e em conflitos relacionados à arbitragem de São Paulo, pois as sedes das partes, tampouco o local de cumprimento da obrigação é na Capital do Estado de São Paulo.

Portanto, as partes teriam que submeter eventual demanda judicial perante o foro da comarca de São José dos Campos ou de extrema, pois, a propositura perante a vara especializada de São Paulo configura “abuso” e “ajuizamento em juízo aleatório”.

Ainda, para além das disposições concernentes ao Direito Empresarial e à Arbitragem, a referida lei configura latente desestímulo aos investimentos estrangeiros no país, visto que os grandes players do mercado internacional em muito prezam pela forma, o tempo e o custo com que os litígios empresariais de alta complexidade são resolvidos.

Nesse sentido, a revista Doing Business do World Bank Group, p. ex., leva em consideração o tempo e o custo para se resolver uma disputa empresarial, além da qualidade dos processos, para classificar a economia dos países.

The enforcing contracts indicator measures the time and cost for resolving a commercial dispute through a local first-instance court, and the quality of judicial processes index, evaluating whether each economy has adopted a series of good practices that promote quality and efficiency in the court system. The most recent round of data collection was completed in May 2019. (WORLD BANK GROUP, 2020).

Por fim, conclui-se, que o condicionamento da eficácia da cláusula de eleição de foro ao domicílio de uma das partes ou ao local de cumprimento da obrigação configura latente afronta ao princípio da liberdade contratual e da autonomia privada, princípio este que figura como um dos alicerces da teoria geral dos contratos e do direito privado como um todo, além de desincentivar o aporte de capital estrangeiro no país e a especialização do Poder Judiciário, especialização essa que tanto é almejada pelos advogados e demais operadores do Direito Empresarial.

_____

FORGIONI, Paula A. Contratos empresariais: teoria geral e aplicação, 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018.

BENJAMIN, Antonio Herman V.; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. 9. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.

ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de. Curso de Direito Civil: v. 4. Contratos. 14. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Juspodivm, 2024.

NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil – Volume único. 15. ed. rev., atual e ampl. São Paulo: JusPodivm, 2023.

DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 18. ed. Salvador: Ed. Jus Podivm, 2016.

WORLD BANK GROUP. Doing Business 2020: Brazil profile. Disponível em: https://archive.doingbusiness.org/content/dam/doingBusiness/country/b/brazil/BRA.pdf. Acesso em: 27 out. 2024.

DANIEL MACHADO OLIVEIRA
Estagiário de Direito Empresarial. Estudante de Direito na Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM) com extensão em Contratos Empresariais pela Escola Superior de Advocacia da OAB/SP. Monitor de Direito Empresarial e Contratual na FDSM. Membro do Núcleo de Estudos Empresariais (NEE) vinculado à Pontifícia Universidade de Católica de Minas Gerais (PUC/MG).

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