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Modulação tributária no STF e STJ: Da simplicidade à complexidade

A modulação de efeitos judiciais visa limitar o impacto retroativo das decisões, garantindo segurança e previsibilidade para os contribuintes.

30/10/2024

A modulação temporal de efeitos de uma decisão judicial é um mecanismo utilizado por um Tribunal para, em regra, restringir a eficácia da declaração de inconstitucionalidade judicialmente proclamada, estabelecendo a produção de seus efeitos a partir do marco temporal que se achar mais oportuno para cada caso, quase sempre em nome da segurança jurídica. Em temas tributários, costuma consistir em se determinar a partir de que momento passa a incidir os efeitos da inconstitucionalidade de determinado tributo, da sua incidência ou de outros elementos a ele inerentes. O instituto também se presta, à luz do Código de Processo Civil, a calibrar efeitos deletérios gerados por mudanças jurisprudenciais, ainda que não haja declaração de inconstitucionalidade.

No Supremo Tribunal Federal, a modulação de efeitos em matéria tributária é feita de duas formas, de maneira geral. A primeira consiste em projetar os efeitos da declaração de inconstitucionalidade para um marco específico, que costuma ser a data da publicação da ata de julgamento (ADIn 4.411), do acórdão (ADIn 5.299) ou, ainda, da data do início do julgamento (ADIn 7.112). Ações judiciais ou demandas administrativas costumam ficar de fora, ou seja, sobre esses casos incide a retroatividade dos efeitos da decisão.

Há também a hipótese de se atrelar o início dos efeitos da inconstitucionalidade ao exercício financeiro vindouro ou simplesmente a uma determinada data futura distinta das três possibilidades acima. Foi o que ocorreu na ação declaratória de constitucionalidade 49. O julgamento de mérito ocorreu em 2021 e houve a declaração de inconstitucionalidade. Em 2023, a Suprema Corte apreciou embargos de declaração e, neles, o ministro Edson Fachin, relator, invocou a segurança jurídica e a necessidade do equilíbrio do federalismo fiscal. Invocou-se a necessidade de se preservar as operações praticadas e as estruturas negociais concebidas pelos contribuintes, principalmente aos beneficiários de incentivos fiscais de ICMS em operações interestaduais.

Modulando os efeitos, o STF conferiu “eficácia pró-futuro a partir do exercício financeiro de 2024, ressalvados os processos administrativos e judiciais pendentes de conclusão até a data de publicação da ata de julgamento da decisão de mérito”.

Ou seja, define-se uma data, preserva-se quem judicializou (ou promoveu demandas administrativas) previamente a questão e a modulação dos efeitos da decisão está feita. Nem sempre é assim, contudo. Há modulações que ganham excepcional nível de sofisticação em razão da complexidade do caso em julgamento.

Exemplo é a ADIn 5.659, de relatoria do ministro Dias Toffoli, que definiu a tributação pelo ISS dos programas de computadores (excluindo a possibilidade de cobrança de ICMS). Eis os termos da modulação: “eficácia ex nunc, a contar da publicação da ata de julgamento do mérito em questão, para: a) impossibilitar a repetição de indébito do ICMS incidente sobre operações com softwares em favor de quem recolheu esse imposto até a véspera da data da publicação da ata de julgamento do mérito, vedando, nesse caso, que os municípios cobrem o ISS em relação aos mesmos fatos geradores; b) impedir que os estados cobrem o ICMS em relação aos fatos geradores ocorridos até a véspera da data da publicação da ata de julgamento do mérito. Ficam ressalvadas (i) as ações judiciais em curso, inclusive de repetição de indébito e execuções fiscais em que se discutam a incidência do ICMS e (ii) as hipóteses de comprovada bitributação, caso em que o contribuinte terá direito à repetição do indébito do ICMS. Por sua vez, incide o ISS no caso de não recolhimento do ICMS ou do ISS, em relação aos fatos geradores ocorridos até a véspera da data da publicação da ata de julgamento do mérito”.

Como se observa acima, o STF criou um verdadeiro estatuto da segurança jurídica, tentando evitar ainda mais conflituosidade na aplicação de sua própria decisão. Ou seja, há um pêndulo que migra da simplicidade à complexidade.

No STJ também é possível identificar esse fenômeno. Em 2007, apreciando o recurso especial 654.446 (crédito-prêmio de IPI), o relator, ministro Herman Benjamin, propôs que fossem modulados os efeitos da decisão para garantir o benefício às empresas que provocaram o Judiciário até 2004. Era, na prática, o que hoje está disciplinado no art. 927, § 3° do CPC1, que, identificando mudanças jurisprudenciais, pavimenta o caminho da segurança jurídica por meio da modulação da decisão que promove uma virada jurisprudencial. O marco indicado pelo ministro Herman Benjamin foi o de 9/8/04, data de publicação do acórdão no REsp 591.708/RS, que promoveu a citada virada.

Acontece que mesmo o STJ começa a conferir mais complexidade a suas modulações. Caso emblemático é o veiculado por dois recursos repetitivos - Resps 1.898.532/CE e 1.905.870/PR – que tratavam do Tema 1079 e cujo desfecho de mérito foi o seguinte: “ i) o art. 1º do Decreto-Lei 1.861/1981 (com a redação dada pelo DL 1.867/1981) definiu que as contribuições devidas ao Sesi, ao Senai, ao Sesc e ao Senac incidem até o limite máximo das contribuições previdenciárias; ii) especificando o limite máximo das contribuições previdenciárias, o art. 4º, parágrafo único, da superveniente Lei 6.950/1981, também especificou o teto das contribuições parafiscais em geral, devidas em favor de terceiros, estabelecendo-o em 20 vezes o maior salário mínimo vigente; e iii) o art. 1º, inciso I, do decreto-Lei 2.318/1986, expressamente revogou a norma especifíca que estabelecia teto limite para as contribuições parafiscais devidas ao Sesi, ao Senai, ao Sesc e ao Senac, assim como o seu art. 3º expressamente revogou o teto limite para as contribuições previdenciárias; iv) portanto, a partir da entrada em vigor do art. 1º, I, do Decreto-Lei 2.318/1986, as contribuições destinadas ao Sesi, ao Senai, ao Sesc e ao Senac não estão submetidas ao teto de vinte salários.”

A modulação nesse caso se deu “tão-só com relação às empresas que ingressaram com ação judicial e/ou protocolaram pedidos administrativos até a data do início do presente julgamento, obtendo pronunciamento (judicial ou administrativo) favorável, restringindo-se a limitação da base de cálculo, porém, até a publicação do acórdão”.

É, sem dúvida, uma inovação na complexidade do instituto da modulação.

Como é possível observar, a trajetória da questão no STF e no STJ tem seguido um caminho que começou com simplicidade até ganhar grande complexidade na gestão da eficácia das decisões tomadas em matéria tributária, seja quando há declaração de inconstitucionalidade, seja quando o que ocorre é uma virada jurisprudencial.

É de fundamental importância que qualquer que seja o papel criativo exercido pelo STF e pelo STJ nessa questão não deixe de lado a necessidade de simplicidade, transparência e homogeneidade de critérios, de forma a que possam os contribuintes contar com algum tipo de previsibilidade indicada pela jurisprudência. É um dever indeclinável da Justiça ter o maior cuidado possível com a redução de impactos deletérios à esfera de direitos dos contribuintes, a fim de que o instituto da modulação não seja transmudado de solução para causa do problema.

________

1 “Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão: § 3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.”

Saul Tourinho Leal
Saul Tourinho Leal, é doutor em Direito Constitucional pela PUC/SP, tendo ganhado, em 2015, a bolsa de pós-doutorado Vice-Chancellor Fellowship, da Universidade de Pretória, na África do Sul. Foi assessor estrangeiro da Corte Constitucional sul-africana, em 2016, e também da vice-presidência da Suprema Corte de Israel, em 2019. Sua tese de doutorado, "Direito à felicidade", tem sido utilizada pelo STF em casos que reafirmam direitos fundamentais. É advogado em Brasília.

André Peixoto
Advogado de Tourinho Leal Drummond de Andrade Advocacia.

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