Introdução
Se você está lendo essas linhas é porque já possui alguma familiaridade com a figura dos fundos de investimento. Como investidor, como profissional que presta serviços a um fundo ou como ambos, você provavelmente conhece bem a dinâmica de funcionamento desses entes, sua relevância para a economia e sua importância para o desenvolvimento do Brasil.
Poupo-lhe assim o tempo de ler uma longa introdução e antecipo que o objetivo deste texto é defender a urgente necessidade de os fundos de investimento terem uma segura e clara fonte de integração ao Direito.
Em outras palavras, nosso propósito é permitir que o leitor entenda a importância de terem os fundos de investimento uma disposição legal que defina qual corpo de normas jurídicas deve ser aplicado pelo operador quando se deparar com uma situação não tratada no regulamento de um dado fundo e com relação à qual as normas legais e regulamentares aplicáveis àquela espécie de fundo também sejam omissas. Para alcançar esse intento faremos, no item 1, uma singela abordagem sobre as fontes de integração dentro do ordenamento jurídico brasileiro e sobre a temática das fontes de integração no que diz respeito à figura do fundo de investimento no direito pátrio, mostrando, no item 2, que o caminho de aplicação do direito aos fundos de investimento passa por definir com propriedade sua natureza jurídica. Mostraremos então, no item 3, o histórico de desenvolvimento do assunto em nosso sistema, precipuamente após a edição da lei da liberdade econômica, conforme será apontado no item 4. Em seguida, no item 5, abordaremos as implicações tributárias da natureza jurídica dos fundos de investimento e sua suposta interrelação com o conceito de personalidade jurídica, mostrando, no item 6, algumas disfuncionalidades que advêm da má técnica legislativa e apresentaremos, por fim, no último item, nossa conclusão e nossas proposições, apontando a necessidade de se aplicar aos fundos, supletivamente, as normas atinentes ao direito das empresas.
1 As fontes de integração no ordenamento jurídico pátrio
A lei de introdução às normas do Direito brasileiro, decreto-lei 4.657, de 4/9/42, assim estabelece em seu art. 4º: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.”
Com esse comando direto o legislador determinou que ao juiz cabe aplicar a lei ao caso concreto que vier a julgar. A lei é, portanto, sua fonte primária de integração. Apenas e tão somente se a lei for omissa é que caberá ao juiz servir-se das demais fontes, sendo essas, portanto, fontes secundárias.
No mesmo sentido, nosso CPC, lei 13.150, de 16/3/15, estabelece em seu art. 140 que “o juiz não se exime de decidir sob alegação de lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico.”
O ordenamento jurídico brasileiro é formado por diversos conjuntos de leis. A CF/88 é nossa lei maior. Toda a legislação infraconstitucional deve guardar-lhe obediência, sejam leis Federais, estaduais, municipais ou distritais, inexistindo hierarquia entre as leis emanadas pelos diferentes entes da federação, posto serem dotados de autonomia política, sem qualquer relação de subordinação entre eles.
Outra característica do direito brasileiro é a codificação. Moldados pelo sistema conhecido como civil law, oriundo do direito romano, desenvolvemos conjuntos normativos complexos, materializados em códigos, tanto de direito material quanto de direito processual.
Para além do direito codificado, temos lei complementares, leis delegadas, decretos-lei, leis ordinárias e assim desenvolvemos uma enorme quantidade de leis esparsas, direcionadas a assuntos específicos diversos, que ainda passam, muitas vezes, por um detalhamento vindo de uma regulação infralegal, materializada por meio de portarias, resoluções, instruções normativas e outros instrumentos regulatórios emanados de autoridades do Poder Executivo da União Federal, do Distrito Federal, dos Estados da Federação e dos municípios, bem como de órgãos de suas administrações e de agências reguladoras.
É dentro desse vasto oceano que deve o juiz mergulhar para sentenciar, diante de uma determinada situação fática e dentro dos limites do pedido formulado pelo autor da ação. Ao dar sua sentença, o juiz aplica o direito ao caso concreto. Ponderando as alegações das partes, analisando as provas produzidas nos autos para delas extrair seu entendimento sobre as alegações controversas e interpretando a legislação, o juiz parte da norma jurídica e entrega à sociedade uma norma de decisão.
O juiz produz direito ao sentenciar. Não o direito abstrato da lei, mas um direito concreto, assim entendido o direito extraído da norma jurídica e transformado em norma de decisão. A agilidade e a assertividade dessa produção judicial são fundamentais para a construção de um nível de segurança jurídica que propicie um eficaz desenvolvimento da atividade.
2. As fontes de integração e os fundos de investimento
Em se tratando de uma demanda judicial relacionada às operações ou às relações internas de um fundo de investimento e pautado pela estruturação das fontes de integração do ordenamento jurídico brasileiro que acabamos de analisar, o juiz decidirá a causa de acordo com: (a) o regulamento do fundo em questão; (b) as normas regulamentadoras aplicáveis àquela espécie de fundo, sejam elas emanadas da Comissão de Valores Mobiliários ou da Superintendência Nacional de Previdência Complementar, ambas autarquias Federais com poder de expedir normas reguladoras de fundos de investimento, cada qual dentro de sua esfera de atuação; e (c) as leis referentes àquela espécie de fundo ou aos fundos de investimento em geral.
Mas o que fazer quando nenhuma dessas fontes de integração referidas no parágrafo anterior endereçarem a solução da res controversa que o magistrado tiver diante de si? Interessa-nos aqui inquirir o que deve o juiz fazer quando essas fontes forem omissas relativamente a uma demanda específica.
O caminho não é claro. Ao contrário, é extremamente polêmico. Em diversos casos atinentes a fundos de investimento já enfrentados pelo judiciário brasileiro, os juízes, diante da situação fática referida acima, ora aplicaram a legislação referente a condomínios inserida no CC, ora a legislação referente ao direito das empresas.
O retrato do quanto aqui afirmado e a complexidade do assunto estão bem caracterizados na decisão proferida, em 17/11/19, pelo STJ, em sede de recurso especial processado sob o 1.834.003, sendo relator o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, decisão que, inclusive, já faz expressa referência à lei da liberdade econômica, à época do julgamento ainda em forma de medida provisória, mas já vigente, embora não vigente à época dos fatos relacionados ao caso em julgamento e, portanto, a ele ainda não aplicável.
A própria Comissão de Valores Mobiliários, ao exercer sua função judicante no âmbito de processos administrativos atinentes a fundos de investimento, já teve oportunidade de determinar a aplicação subsidiária de dispositivos do CC atinentes aos negócios jurídicos em geral, expressamente afastando a possibilidade de aplicação subsidiária da lei de sociedades por ações a casos referentes a fundos de investimento.
Essa constatação evidencia que a identificação da correta fonte de integração de temas relacionados a fundos de investimento, no ordenamento jurídico brasileiro, passa pela definição prévia da natureza jurídica desses entes.
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