Migalhas de Peso

Disparate impacte doctrine no direito brasileiro

Discutindo a plausibilidade e a concordância da utilização da teoria do impacto disproporcional com o intuito de descongelar as desigualdades materiais da sociedade.

28/10/2024

A priori, para se tratar da historicidade do DID - “Disparate Impact Doctrine”, faz-se necessário descrever o desenvolvimento do Direito constitucional americano, com suas prerrogativas e sujeições. Nesse contexto, em 1950, a tratativa da igualdade dos Direitos fundamentais ganhou terreno, diante de um quadro de segregação racial, oriundo do período da escravidão. Destarte, positivou-se a 14ª emenda da Constituição dos Estados Unidos, abrangendo a cláusula de igual proteção, diante de inconstitucionalidades ligadas a disparidades étnicas nas escolas.

Nessa perspectiva de discussão, em 1964, um ideal conjunto de arrefecer desigualdades fez com que a Suprema Corte americana e o parlamento, positivassem os “Civil Right Acts”- fato que repercutiu na seara constitucional de alguns países. Nesse diapasão, a finalidade de se criar esses atos cíveis perpassa na dirimição de segregações, no campo racial, cultural e intelectual de indivíduos vulneráveis. Posteriormente, em meados dos anos 70, foi colocado em xeque o direito antidiscriminatório, no tocante aos direitos sociais, positivando ações afirmativas, a fim de corrigir desigualdades materiais constitucionais.

Para exemplificar, cita-se o caso Griggs v Duke Power Co, no qual os valores empresariais utilizavam-se de práticas extremamente segregatórias, internamente, tratando vexatoriamente afrodescendentes, que não podiam compartilhar vestiários, bebedouros e chuveiros com pessoas de cor branca. Posteriormente, nessa mesma empresa, foi estabelecida a “política do Diploma”, submetendo a segregação de pessoas, por meio de testes de inteligência arbitrários, visando a evitar a ascensão de negros entre os cargos internos.

Nessa linha, em 1991, com a aceitação das emendas constitucionais e o Civil Right Acts, iniciaram-se as previsões, pelo poder judiciário americano, a respeito da TID - “Teoria do Impacto Desproporcional” ou DID - “Disparate Impact Doctrine”, tentando descongelar as desigualdades materiais. Explicando melhor, a existência de normas pretensamente neutras, poderiam trazer efeitos práticos prejudiciais, incompatíveis com a utópica igualdade constitucional. Por conseguinte, o poder legislativo pode criar leis, pautando-se na igualdade formal e carga normativa, com a competência de proibir a diferenciação interpartes, todavia a aplicabilidade destas pode ser excessivamente impessoal e ineficiente.

Outrossim, a TID, tenta combater a discriminação indireta, quase invisível ou não intencional, que se dissimulam por critérios, aparentemente neutros e legais. Segundo o ministro e presidente do STF do Brasil, Luís Roberto Barroso, “O modelo constitucional americano, nos últimos cinquenta anos, irradiou-se pelo mundo e tornou-se vitorioso em países da Europa, da América Latina, da Ásia e da África” (BARROSO, 2009). Portanto, no direito americano, observa-se que a segregação racial, tanto na forma direta como na indireta transpassa a arbitrariedade de contratações dentro das empresas, a diferenciação de tratamento nas escolas e no convívio da sociedade, trazendo á tona a complexa ideia das ações afirmativas.

Nesse prisma, é cediço que o ordenamento jurídico brasileiro sofreu influência marcante do Direito norte-americano, principalmente no fenômeno denominado de globalizações de Constituição. Isto é, a americanização do Direito brasileiro permitiu a abordagem do DID, pelo poder judiciário, na contenção de disparidades no tocante às desigualdades materiais. De acordo com o jurista Daniel Sarmento, pode-se descrever esta teoria supracitada como “Toda e qualquer prática empresarial, política governamental ou semigovernamental, de cunho legislativo ou administrativo, ainda que não provida de intenção discriminatória no momento de sua concepção, deve ser condenada por violação do princípio constitucional da igualdade material se, em consequência de sua aplicação resultarem efeitos nocivos de incidência especialmente (apud SARMENTO, p. 197).”

Nessa toada, apesar de diferenças estruturais entre as Cartas Magnas do Brasil e dos Estados Unidos, existem pontos de interseção ou compatibilidades protetivas e políticas anti-segregatórias importantes. Ademais, a americanização do Direito expandiu-se em 1990, com o crescimento considerável do ensino jurídico nas universidades brasileiras, permitindo uma espécie de intercâmbio acadêmico. Entretanto, o principal catalizador da TID no Brasil foi o STF, por meio do controle de constitucionalidade concentrado. Por conseguinte, é importante ressaltar que a proteção aos direitos segregacionistas nos EUA se pautava essencialmente nos direitos a não discriminação étnica e racial em contrapartida, o Direito brasileiro demonstrava a iniciativa de proteção efetiva aos hipossuficientes, a orientação sexual e a identidade de gênero.

Nessa linha de discussão, em 1990, por meio da ADIn –MC 1.946/DF, discutiu-se a inconstitucionalidade do art. 14 da EC 20/98. Ou seja, o marco inicial da Teoria do Impacto Desproporcional priorizou questões de cunho previdenciário em benefício do auxílio maternidade, baseando-se na equidade e igualdade material. Por conseguinte, o STF decidiu que a EC não poderia diferenciar arbitrariamente valores importantes pelo fato de uma mulher gerar um filho, indo na contramão da dignidade da pessoa humana. Segundo o ministro do STF Edson Fachin, “Com efeito, a isonomia formal, assegurada pelo art. 5º, I, CRFB, exige tratamento equitativo entre homens e mulheres. Não impede, todavia, que sejam enunciadas regras mais benéficas às mulheres diante da necessidade de medidas de incentivo e de compensação não aplicáveis ao gênero masculino”.

Para complementar esta argumentação, é mister destacar que o próprio texto constitucional determina que homens e mulheres são iguais, nos termos da Constituição (art. 5º, I, CF). Ou seja, a Constituição estabeleceu tratamento especial às mulheres em determinadas situações, a fim de assegurar a igualdade material de direitos e obrigações entre os sexos, dando-se como exemplos de conquistas anti-misoginias, no tocante a proteção do trabalho da mulher (art. 7º, XX), a aposentadoria antecipada das mulheres por tempo de serviço público (art. 40, § 1º, III), aposentadoria pelo Regime Geral de Previdência (art. 201, § 7º), dentre outros.

Após 16 anos da iniciativa do STF, foi impetrada a ADPF 291, com o intuito de julgar a inconstitucionalidade do art. 235 do CPM que tratava de atos libidinosos e pederastia de seus integrantes. Nesse viés, foi questionado, na época, a liberdade de relações homoafetivas, em um ambiente militar, ultrapassando a intervenção mínima, instituída constitucionalmente. Dizendo de outra forma, havia nítida discriminação indireta, por meio da legalidade formal, sem, contudo, observar a proporcionalidade inerente à questão dos direitos pessoais. Assim, a DID, importada do Direito norte-americano, se tornou a forma ideal na resolução desta problemática, com finalidade de proteger a vulnerabilidade de gênero em questão.       

Com a expansão da abstrativização do controle de constitucionalidade no Brasil e a aceitação dos precedentes, houve um aumento de demandas relativas à uniformização processualística que repercutiu positivamente nos direitos a não segregação. Nesse ângulo, em 2020, a ADIn 5.543 analisou a constitucionalidade do art. 64 da portaria 1.581, oriunda do Ministério da Saúde, cuja tratativa ia na contramão dos Direitos fundamentais da liberdade de gênero. Isto posto, a ANVISA proibia a doação de sangue de homens que tivessem relações sexuais, há doze meses, com outros homens. Porquanto, o STF julgou tal portaria inconstitucional, utilizando-se da TID, arrefecendo a desproporcionalidade na legalidade formal. Segundo o ministro do STF Edson,“Compartilhando da fundamentação doutrinária e da aplicação jurisprudencial por esta Corte da Teoria do Impacto Desproporcional, concluo que a política restritiva prevista no art. 64, IV, da portaria 158/2016 do Ministério da Saúde(LGL\2016\78223), e no art. 25, XXX, “d”, da Resolução da Diretoria Colegiada – RDC 34/2014 da ANVISA, ainda que de forma desintencional, viola a igualdade, pois acaba tal limitação, a despeito de intentar proteção, impondo impacto desproporcional sobre os homens homossexuais e bissexuais e/ou as parceiras destes ao injungir-lhes a proibição da fruição livre e segura da própria sexualidade para exercício do ato empático de doar sangue.”

De acordo com o ex-ministro do STF, Joaquim Barbosa, essa discriminação indireta consiste na prática não-intencional ou inconsciente, por parte de pessoa privada ou do Poder Público, na execução de determinada política pública ou ação estatal, legal ou administrativa, revestida de critérios aparentemente neutros e legalmente admitidos, mas que na prática ocasionam impactos negativos e desproporcionais sobre determinados grupos minoritários ou vulneráveis. Finalmente, após toda a discussão, elaborada sobre a TID faz-se necessário complementar, com a decorrente utilização de ações afirmativas no Direito brasileiro. Assim, como medida precursora de aproximação de vulneráveis a realidade socioeconômica de um país, surge essa possibilidade de, ao menos, suprir lacunas legislativas no Brasil contemporâneo. Estas são políticas públicas que protegem grupos que sofreram discriminação por diversos aspectos e podem ser positivadas, no âmbito das universidades, das escolas, dos programas de habitação, na redistribuição de terra, nos fundos de estímulos e empréstimos, dentre outros.

Diante do exposto, sabe-se que, apesar do Brasil exportar doutrinas norte-americanas efetivas nos EUA, sabe-se que a realidade brasileira é, demasiadamente, dificultada pela condição socioeconômica em que se encontra. Conquanto, os esforços constantes do poder judiciário para estreitar barreiras, quase intransponíveis aos milhares de vulneráveis, acaba por demonstrar a capacidade de reengenharia do sistema jurídico. Nesse campo, a teoria do impacto desproporcional, em conjunto com as ações afirmativas, podem ser concebidas como ferramentas úteis no combate à discriminação e a segregação de diversas montas, sem, contudo, carecer de medidas complementares , oriundas do poder público.

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1 ALMEIDA, Dayse Coelho de. Ações afirmativas e política de cotas são expressões sinônimas? Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 573, 31 jan. 2005. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/6238

2 JANNUCCI, Alessander. Teoria do impacto desproporcional e o direito à adaptação razoável. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 dez. 2014. 

3 LOPES, Otávio Brito. Minorias, discriminação no trabalho e ação afirmativa judicial. Disponível em:

4 OLIVEIRA NETO, Alberto Emiliano de. O princípio da não-discriminação e sua aplicação às relações de trabalho. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1176, 20 set. 2006. Disponível em:

Joseane de Menezes Condé
Servidora Pública Federal do TRT 15 Americana, Mestranda em Direito Internacional FUNIBER, pós graduação em Direito Constitucional IBMEC, pós graduanda em direito tributário e trabalhista.

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