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Paridade ou privilégio? STF proíbe penhoras contra partidos endividados durante as eleições

A decisão do STF que impede a penhora de fundos partidários para garantir igualdade eleitoral levanta questões sobre favorecimento de partidos inadimplentes, gerando desequilíbrio político.

25/10/2024

Como amplamente noticiado pela imprensa, com vistas a garantir a paridade de armas entre os partícipes da vida política, o STF decidiu que, no curso das campanhas eleitorais, é vedada a penhora de verbas de partidos políticos oriundas de fundos públicos.

Publicada em 01/10/24, às vésperas do 1º turno das eleições municipais, a decisão foi proferida monocraticamente pelo relator, ministro Gilmar Mendes, nos autos da ADPF 1.017, acolhendo liminarmente o pedido de determinado partido político que teve percentual do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (Fundo Eleitoral) bloqueado judicialmente para o pagamento de dívida decorrente de prestação de serviços de campanha.

Embora o pedido tenha se voltado contra o bloqueio do Fundo Eleitoral (fundo público destinado a arcar com os gastos de campanha em ano eleitoral, criado após a vedação de doações por empresas privadas), a decisão abarcou também as verbas do Fundo Partidário (fundo público destinado à manutenção das atividades partidárias), com determinação de comunicação da medida em âmbito nacional, mediante o envio de ofícios a todos os Tribunais Estaduais e Federais do país.

Na forma do regimento interno do STF, o caso foi submetido ao plenário para referendo pelos demais ministros da corte. O julgamento colegiado se iniciou no último dia 11/10/24, mas foi retirado de pauta em 13/10/24, por pedido de vista da ministra Cármen Lúcia.

Sem qualquer intenção de adentrar nas particularidades do caso concreto sob julgamento, tampouco de descredibilizar a decisão liminar proferida de forma legítima e fundamentada na ADPF 1.017, é natural que, diante do debate público que se instaurou sobre a questão, reflitamos se essa ampla proteção outorgada durante a campanha eleitoral a partidos políticos inadimplentes cumpre, realmente, o seu propósito de promover a igualdade eleitoral.

Com efeito, sob a perspectiva da paridade de armas, a decisão pretendeu garantir que candidatos do partido inadimplente tivessem as mesmas oportunidades que seus adversários na formação da vontade individual de cada eleitor, pois a plena liberdade de voto é resultado de um processo dialógico livre entre eleitores-candidatos e eleitores-eleitores.

Todavia, há um ponto essencial que não foi sopesado na decisão: apenas partidos que realizam suas campanhas em desacordo com suas reais capacidades financeiras são favorecidos com tal proteção patrimonial, em detrimento de partidos que se esforçam para cumprir suas obrigações em dia.

É bastante claro que, não sendo possível atingir o patrimônio do partido mau pagador, são inevitavelmente apequenados todos os demais partidos que restringem seus gastos com autopromoção ao limite de suas receitas, o que causa um injustificável desequilíbrio concorrencial que, em última análise, milita contra o próprio pluralismo político.

Proteger a inadimplência, na verdade, caminha na contramão do que se entende por paridade de armas, na medida em que os partidos que empilham dívidas sabem que poderão seguir gastando mais do que têm sem enfrentar quaisquer consequências patrimoniais, enquanto os partidos que agem corretamente e com responsabilidade financeira são reflexamente penalizados.

Ao garantir que partidos inadimplentes não sejam afetados por penhoras judiciais que visam à satisfação de dívidas (principalmente aquelas decorrentes das próprias campanhas eleitorais), premia-se a má-gestão e cria-se um disfuncional ambiente de incentivo ao calote, onde apenas aqueles que desonram suas obrigações são beneficiados.

Assim, ao invés de fortalecer o sistema eleitoral, a proteção outorgada a determinados partidos, com a proibição dos mecanismos expropriatórios legalmente previstos, promove uma deformação estrutural que mina a igualdade do processo eleitoral, o que não se compatibiliza com o dever de neutralidade do Estado-Juiz.

Em poucas palavras, chega a ser uma contradição em termos que se fale em “paridade de armas” quando o que está em discussão é, justamente, um pretendido “escudo” que beneficia única e exclusivamente aqueles que travam irresponsavelmente a “batalha” pelo voto.

E não se pode perder de mira que, além dos inequívocos prejuízos aos partidos que agem de maneira correta, também são lesados os legítimos interesses dos prestadores de serviços de campanha (que, no mais das vezes, tratam-se de empresas privadas especializadas no planejamento estratégico e realização da propaganda político-eleitoral), que passam a ficar impossibilitados de adotar as medidas tendentes à satisfação do crédito, ainda que apenas durante o período eleitoral.

Na prática, é como se essas empresas funcionassem como financiadoras privadas da campanha (mediante a prestação serviços de alta expressão econômica sem a devida remuneração), o que é vedado pelo próprio STF desde 2015, que, com o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.650, declarou a inconstitucionalidade dos dispositivos da lei Federal 9.096/95 que autorizavam a realização de doações empresariais.

Ademais, vale dizer que, como assinalado pela decisão liminar do STF, as verbas oriundas dos fundos públicos são reputadas impenhoráveis pela lei Federal 11.694/2008, mas é certo que, em função da profunda alteração no modelo de financiamento partidário ocorrida na última década (que passou a ser quase que exclusivamente público), há uma forte tendência de relativização dessa impenhorabilidade, que em nenhuma hipótese pode representar um regime de irresponsabilidade civil de partidos políticos.

TSE deu início a esse movimento ao admitir o atingimento do Fundo Partidário em execução promovida pela União contra uma determinada agremiação para o ressarcimento de verbas malversadas, registrando-se no acórdão, inclusive, que “as demais fontes de recursos financeiros para os partidos, em razão de seu caráter facultativo, não podem ser efetivamente consideradas como naturalmente garantidas, porquanto é consabido que a doação de pessoa física ainda não é tradição em nosso país” (TSE, REsp Eleitoral 0602726-21.2018.6.05.0000, rel. min. Alexandre de Morais, DJe: 21/03/22).

STJ reforçou essa tendência em atualíssimo precedente que autorizou a penhora do Fundo Partidário em hipótese em que a dívida contraída pelo partido inadimplente está vinculada ao rol de destinações do art. 44 da lei 9.096/95, que prevê que os recursos provenientes desse fundo podem ser aplicados, inclusive, “na propaganda doutrinária e política” e nas “campanhas eleitorais” (STJ, REsp 2.101.596, rel. min. Nancy Andrighi, DJe: 14/03/24).

Dado esse contexto, não há dúvidas de que a observância do princípio da paridade de armas é crucial para a democracia e a legitimidade do processo eleitoral, mas sua aplicação deve ser pautada pela efetiva promoção da igualdade, não podendo servir, contraditoriamente, como fonte de concorrência desleal, afinal, “a lei não pode conceder tratamento específico, vantajoso ou desvantajoso, em atenção a traços e circunstâncias peculiarizadoras de uma categoria de indivíduos se não houver adequação racional entre o elemento diferencial e o regime dispensado aos que se inserem na categoria diferençada” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, 3ª ed., 8ª tiragem, Malheiros, 2000, p. 39).

A decisão liminar do STF, como dito, ainda será apreciada pelo plenário da Corte. No julgamento colegiado, para que se alcance um veredicto que prestigie um sistema eleitoral realmente justo e igualitário, é fundamental que sejam sopesados os inequívocos impactos anticoncorrenciais causados por uma proteção patrimonial que, com todas as vênias, revela-se seletiva e injustificável.

Daniel Gustavo Magnane Sanfins
Sócio do escritório Duarte Garcia, Serra Netto e Terra. Responsável pela área de Contencioso Cível e Arbitragem. Especialista em contencioso cível e digital. Graduação em Direito da Universidade de São Paulo, 1998. Pós-graduação lato sensu em Processo Civil pela Escola Paulista da Magistratura, 2005. Especialização em Direito Digital pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (GVLaw), 2015.

Gustavo Roberto Cavalcante
Advogado do escritório Duarte Garcia, Serra Netto e Terra, atuação em Prevenção e Resolução de Litígios. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC).

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