A propriedade plena de um imóvel garante ao seu titular o “jus utendi”, direito de usar, o “jus fruendi”, direito de fruir, o “jus abutendi”, direito de dispor da coisa, e, por fim, o direito de reavê-la do poder de quem injustamente a detenha ou possua.
Para o objeto do presente estudo, vamos tratar sobre a fruição do imóvel e os limites da propriedade.
Por fruição entende-se o direito de colher frutos do bem, que, conforme a lição de Silvio Rodrigues1, “envolve o poder de colher os frutos naturais e civis da coisa, bem como de explorá-la economicamente, aproveitando seus produtos”
E nesse ponto é necessário fazer um corte sobre o direito de fruição com o aluguel do imóvel, ou a contraprestação pelo uso nos casos que não se enquadrem na lei especial de locação.
Todos os rendimentos oriundos da fruição do bem imóvel são considerados como frutos civis. Explorar economicamente a propriedade imobiliária não transforma sua natureza, bem como não gera automaticamente ao proprietário a qualidade de empresário ou lhe reveste um manto de atividade profissional.
A exploração econômica de um bem não deve ser necessariamente interpretada como atividade empresarial.
Isso posto, o direito de propriedade na relação do seu titular para com o bem, pode ser pleno ou limitado, conforme os direitos reais instituídos sobre o imóvel. No entanto é necessário abordar a limitação dos direitos frente a sociedade e terceiros, especialmente quanto a utilização do bem.
Já vimos que ao proprietário recai o direito de extrair os frutos civis do imóvel, porém, a destinação e a forma de uso podem sofrer limitações legais ou de natureza convencional.
O direito de vizinhança é um exemplo de limitação legal quanto ao uso da propriedade, conforme prevê o art. 1277 e seguintes do código civil. No texto do citado artigo, temos em comum aos princípios da convivência em condomínio, a proteção quanto a segurança, o sossego e a saúde quando provocados pela unidade vizinha.
Tomando-se por base o direito de fruição do bem imóvel e a limitação legal quanto ao uso, o fato social que é levado às portas do judiciário e ao legislativo, decorre da nova modalidade de disponibilização do imóvel para “locações” de curtíssima temporada em unidades condominiais estritamente residenciais. Utilizamos as aspas ao termo locação pois a jurisprudência atualmente afasta o tipo de negócio da locação por temporada e o conceitua como uma hospedagem atípica.
Estamos diante da teoria tridimensional do direito que para o I. jurista Miguel Reale2 se traduz na interdependência e correlação entre o fato, o valor e a norma.
Com a modernização das mais variadas tecnologias, a locação por temporada passou a ser disponibilizada via aplicativos que funcionam como um intermediador e ligam pessoas (locador e locatário), sem que, necessariamente, necessitem se conhecer. A pessoalidade deixou de ter relevância nessa forma de contratação, dando lugar para a renda econômica e a comodidade do imóvel.
É importante frisar que a locação por temporada sempre existiu, independente da forma de anúncio ou de contratação. Definida no art. 48 da lei 8.245/91, como aquelas destinadas a determinadas necessidades em prazo não superior a 90 dias, ou seja, entre 1 e 90 dias.
Ocorre que com a estabilidade econômica, que gerou o aquecimento do mercado imobiliário, e com as facilidades trazidas pelas novas tecnologias, o volume de ofertas e de imóveis destinados ao uso temporário aumentou exponencialmente, de forma a afetar o princípio de proteção à segurança, à saúde e ao sossego, seja pela destinação do imóvel como verdadeira atividade empresarial, seja em decorrência da alta rotatividade de pessoas no condomínio.
Com isso, natural que o fenômeno jurídico fosse levado ao judiciário para que, via jurisprudência, a sociedade passasse atribuir um valor ao fato. Os principais pontos de divergência e objeto das mais variadas decisões resumem-se em: direito de propriedade versus convenção condominial, locação por temporada ou hospedagem atípica; e, por fim, se a destinação do imóvel via plataforma transforma sua fruição como atividade não residencial em condomínios residenciais.
Recentemente a matéria foi afetada pelo julgamento do REsp 2.121.055/MG, no qual a min. Relatora Nancy Andrighi destacou a necessidade de uniformização da jurisprudência em decorrência das diversas decisões anteriores e, também, foi incluída na reforma do código civil, com alteração do parágrafo primeiro do art. 1336 do CC.
A normatização ainda passa pelos projetos de lei que acrescentam o art. 50 A à lei de locação e, como dissemos, pelo anteprojeto de reforma do CC.
Embora entenda que o tipo contratual está mais para uma locação atípica, atualmente a jurisprudência dominante é no sentido de que a forma de utilização do imóvel figura-se como uma hospedagem atípica, diante da alta rotatividade que não combina com a natureza residencial do condomínio, ou seja, a curtíssima temporada não poderia ser disponibilizada em condomínios residenciais.
Esse entendimento é repetido na normatização da reforma do código e do PL 2.474/19, nos quais, sem definir exatamente o que seria uma “hospedagem atípica”, vedam sua instituição automaticamente, salvo previsão autorizadora na convenção ou em assembleia.
Já o PL 2795/24, que também acresce o art. 50A à lei 8.245/91, seguindo a regra do direito privado de que tudo que não é proibido é permitido, inverte o sentido da norma para que a vedação deva ser expressa na Convenção Condominial, o estatuto do condomínio.
Na lição do doutor Cesar Calo Peghini3, “a natureza jurídica da convenção condominial é estatutária, não convencional, e, portanto, não é contrato...”
A convenção condominial como estatuto, é a lei de regência do condomínio, portanto, a vedação ou autorização da utilização do imóvel em locações por curtíssima temporada deve ser expressamente permitida ou vedada em seu texto. Ao nosso entender, a corrente que defende a vedação expressa em convenção deve prevalecer sobre a que exige a autorização. A linha é tênue, mas devemos seguir os princípios de direito privado.
Por fim, analisando os projetos de lei que alteram a lei de locação, precisamos entender se a lei especial que a princípio regula a relação entre locador e locatário, poderia tratar sobre matéria de cunho condominial que possui livro específico no CC, pois o PL de 2024 conflita com o projeto que altera o art. 1336 do CC, norma geral.
A matéria é por demais controvertida, pois implica na limitação do direito individual sobre o direito de determinada coletividade, e nos parece que além dos tribunais, o legislador também acaba por confundir os institutos e as regras de direito.
Certo ou errado, estamos próximos de uma regulamentação. Ao condomínio que não está atualizado frente ao novo cenário, caberá definir os limites diários da locação por temporada, o que exigirá a alteração da convenção condominial.
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1. Rodrigues, Silvio. Direito civil. Direito das coisas, v. 5, 28ª ed. ver. e atual. de acordo com o Código Civil (lei 10.406 de 10-1-2002) – São Paulo: Saraiva, 2003, p.78
2. REALE, Miguel. Filosofia do direito. 20 ed. – São Paulo: Editora Saraiva, 2002, p.539
3. PEGHINI, Cesar Calo. Direito condominial – 2. ed. – Leme-SP: Mizuno, 2022, p. 57