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O novo crime de feminicídio e sua quesitação no júri

A nova lei 14.994/24 redefine o feminicídio como crime autônomo, agravando penas para 20 a 40 anos.

18/10/2024

Em 09 de outubro de 2024 foi sancionada pelo Presidente da República a lei 14.994 que alterou significativamente diversos dispositivos legais relativos à prevenção e repressão a infrações penais no contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher, possivelmente motivado o legislador pelo incessante crescimento de tais delitos no cenário doméstico, em que pese no ano em curso ter completado dezoito anos de vigência a chamada lei Maria da Penha (lei 11.340, de 07 de agosto de 2006, e trinta anos da assinatura da Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, mais conhecida popularmente como Convenção do Pará, firmada pelo Brasil em 1994.

Nesse peculiar enfoque, aqui cabe um sublinhar, não se pode olvidar que, na aplicação da lei penal, a ótica das vítimas dos delitos, afinal, como bem releva a Resolução da Organização das Nações Unidas 40/34 de 1985 e a resolução 253 do CNJ a vítima1 ocupa papel central na macroproteção nos direitos resguardados no corpo social, sobretudo àqueles protegidos pela lei estatal que assegura os direitos e garantias mais relevantes à manutenção da ordem e vida social – direito penal.

E nesse contexto a lei 14.994/24 trouxe valorosos avanços em busca da promoção de proteção mais eficiente à sociedade e, sobretudo, às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar.

Em destaque nesse singelo arrazoado, busca-se um primeiro estudo prático sobre as alterações dadas pela nova lei ao crime de feminicídio, doravante tipificado no art. 121-A, do Código Penal, portanto, agora considerado como crime autônomo em relação ao delito de homicídio (art. 121, do Código Penal). Eis o primeiro ponto de debate.

Isso porque, até o advento da lei 14.994/24, o feminicídio era regulado pelo Código Penal como uma modalidade de homicídio qualificado (art. 121, §2º, inciso VI, c/c §2º-A) e, como tal, já era tido como crime hediondo por força do art. 1º, inciso I, da lei 8.072/90. A partir de agora, o feminicídio passa a ser crime autônomo, mas permanece enquadrado como hediondo, agora com fulcro no art. 1º, inciso I-B, da lei 8.072/90.

A segunda mudança relevantíssima dada ao feminicídio pela nova lei encontra-se no preceito secundário do tipo penal correspondente, porquanto a sanção penal que antes era de 12  a 30 anos, para as condutas praticadas de 09 de outubro de 2024 em diante passa a ser de 20 a 40  anos de reclusão.

Perceba-se, pois, que, por se tratar a pena de norma de direito material mais rigorosa, a novatio legis in pejus não poderá atingir crimes consumados em momento anterior à vigência da lei 14.994/24, em homenagem ao princípio da irretroatividade da lei penal prejudicial (art. 1º, do Código Penal).

Portanto, o atual regramento do feminicídio somente se aplicará aos delitos consumados a partir do dia 09 de outubro de 2024, data de de início de vigência da lei 14.994/2024.

Partindo-se dessa premissa, passa-se à análise do tipo penal propriamente dito.

Diz o caput do art. 121-A do Código Penal: “Matar mulher por razões da condição de sexo feminino”. E vai além. O §1º esclarece que “há razões da condição do sexo feminino quando o crime envolve: I – violência doméstica e familiar; II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher”.

Nota-se, portanto, que para a aplicação da lei penal mais gravosa (feminicídio em relação ao homicídio) a conduta há de ser necessariamente praticada “por razões da condição do sexo feminino”, o que aponta para a interpretação restritiva e literal do conceito biológico de mulher, mesmo porque é vedada a interpretação extensiva ou por analogia in mallam partem no Direito Penal.

Para além da sanção penal mais gravosa já mencionada, também se verifica do §2º do art. 121-A do Código Penal que para o crime de feminicídio foram trazidas novas causas especiais de aumento de pena (de um terço à metade), a saber: I – durante a gestação, nos 3 meses posteriores ao parto ou se a vítima é a mãe ou a responsável por criança, adolescente ou pessoa com deficiência de qualquer idade; II – contra pessoa menor de 14 anos, maior de 60 anos, com deficiência ou portadora de doenças degenerativas que acarretem condição limitante ou de vulnerabilidade física ou mental; III – na presença física ou virtual de descendente ou de ascendente da vítima; IV – em descumprimento das medidas protetivas de urgência previstas nos incisos I, II e III do caput do art. 22 da lei 11.340, de 7 de agosto de 2006 (lei Maria da Penha); V – nas circunstâncias previstas nos incisos III, IV e VIII do § 2º do art. 121 deste Código.

Perceba-se que, em qualquer dessas circunstâncias fáticas, a pena máxima em abstrato para o feminicídio poderá chegar a 60 anos de reclusão, portanto, cuida-se da sanção mais grave de todo o ordenamento jurídico brasileiro atual.

No caso, o que mais chama a atenção é o inciso V do §2º do art. 121-A do Código Penal. Isso porque este menciona apenas três incisos do art. 121, §2º, do mesmo diploma legal, que regulam algumas circunstâncias qualificadoras do homicídio, isto é: III - com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum; IV - à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido; VIII - com emprego de arma de fogo de uso restrito ou proibido.

Aqui vão algumas situações que, certamente, serão posicionadas na realização dos quesitos2.

Isso quer significar que estas circunstâncias, a par de qualificarem o crime de homicídio, são consideradas como causas especiais de aumento de pena no feminicídio e, como tal, hão de ser questionadas ao Conselho de Sentença sob tal rubrica, observando-se o disposto no art. 483, inciso V, do CPP.

No ponto, é de se ressaltar também que não há previsão legal de qualificadoras para o crime de feminicídio (art. 121-A, do CP) e as causas de aumento de pena sus mencionadas restringem-se às qualificadoras do homicídio previstas no art. 121, §2º, III, IV e VIII, do CP. Daí é imperioso concluir que as qualificadoras do homicídio dispostas nos incisos I, II, V e VII do Código Penal não se aplicam como tal ao feminicídio, sob pena de novamente se admitir a analogia in mallam partem.

Nada obstante, tais circunstâncias podem ser sopesadas pelo julgador na primeira fase da dosimetria da pena (como circunstâncias do crime), caso o crime seja praticado contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição; ou também segunda etapa de dosagem da sanção penal como agravantes, a saber: 1) motivo fútil ou torpe (art. 61, II, a, CP); 2) para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime (art. 61, II, b, CP); 3) mediante paga ou promessa de recompensa (art. 62, IV, CP).

A consequência prática dessa conclusão é que, se para o homicídio tais circunstâncias qualificadoras devem necessariamente ser questionadas aos jurados, para o feminicídio, não. Isso porque, a par de entendimentos contrários, defende-se a desnecessidade de quesitação de agravantes e atenuantes ao Conselho de Sentença, já que estas não são mencionadas expressamente no art. 483, do CPP conforme diversos precedentes do STJ3 a partir da reforma de 2008 do CPP.

Por derradeiro, questão prática que pode causar certa dificuldade em sessão plenária do Tribunal do Júri é a eventual sustentação pela Defesa de desclassificação da conduta de feminicídio para homicídio.

Isso porque, em tese, é juridicamente viável prever que poderá a Defesa sustentar perante os jurados que o réu não agiu por razões do sexo feminino, isto é, que o crime não envolve violência doméstica e familiar contra a mulher ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher (art. 121-A, caput, e §1º, CP).

Nesse caso, caberá ao julgador, após questionar o Conselho de Sentença sobre a materialidade e autoria, quesitar a tese desclassificatória, a fim de que o réu passe a responder por homicídio (art. 121, CP), cuja pena é deveras menor do que aquela prevista para feminicídio, ainda que se trate de homicídio qualificado.

Para tanto, sugere-se a seguinte redação ao terceiro quesito: “O réu agiu por razões da condição do sexo feminino porque o crime envolve violência doméstica e familiar contra a mulher”? Ou, ainda: “O réu agiu por razões da condição do sexo feminino porque o crime envolve menosprezo ou discriminação à condição de mulher”?

A resposta positiva dos jurados permitirá o prosseguimento da votação normalmente, passando-se para o próximo quesito obrigatório da absolvição.

A dificuldade estará se os jurados responderem negativamente ao quesito desclassificatório, pois, nesse caso, será forçoso reconhecer que não se trata de crime de feminicídio, mas de homicídio. Isso porque, como visto, há circunstâncias que são consideradas como qualificadoras do homicídio que não o são para o feminicídio (poderão ser causas de aumento – art. 121-A, §2º, CP –  ou não).

Então, com o questionário pronto para o crime de feminicídio e iniciada a votação, caso seja este desclassificado para homicídio e na denúncia tenha sido narrado, por exemplo, o motivo torpe ou fútil, não haverá quesito próprio para a respectiva qualificadora (art. 121, §2º, inciso I ou II, CP), haja vista que tais circunstâncias não qualificam, nem aumentam a pena do feminicídio. O que fazer?

Em uma primeira solução, pensa-se que se deve prosseguir na votação, sem que seja questionada a qualificadora do motivo torpe ou fútil aos jurados e, nesse caso, poderá o juiz reconhecer um ou outro na dosimetria da pena como mera agravante (art. 61, II, a, CP), desde que tal circunstância se encontre narrada na denúncia e tenha sido debatida em plenário pelas partes, consoante entendimento do STJ já citado. Não seria o caso de reconhecê-la como qualificadora do homicídio porque assim não foi considerada na pronúncia já que nesse momento processual admitiu-se a acusação por feminicídio. Vale lembrar que as agravantes, por não carecerem de quesitação aos jurados, sequer precisam ser reconhecidas na decisão de pronúncia.

Uma segunda saída seria o juiz presidente, diante da possibilidade de os jurados desclassificarem o delito para homicídio, já se precaver e inserir no questionário a circunstância qualificadora correspondente. Nesse caso, se o Conselho de Sentença mantiver a imputação de feminicídio, o juiz presidente declarará prejudicado o quesito da qualificadora. Entretanto, extrai-se que esta solução pode não encontrar amparo legal, porquanto as qualificadoras devem ser expressamente admitidas como tal na decisão de pronúncia (art. 413, §1º, CP). E, no caso, a pronúncia teria admitido a acusação por feminicídio sem considerar circunstâncias qualificadoras, ainda que cite expressamente como causas de aumento aquelas retratadas nos incisos III, IV e VII do art. 121 do Código Penal, conforme art. 121-A, §2º, V, do mesmo diploma legal.

Exemplo: Pronúncia pelo art. 121-A, caput e §2º, inciso V (emprego de recurso que dificultou a defesa da vítima). A circunstância foi incluída na pronúncia como causa de aumento de pena (não como qualificadora). Em plenário, a Defesa sustenta a tese de desclassificação para homicídio. O juiz presidente elabora o questionário com o quesito da desclassificação e também com o quesito próprio da causa de aumento de pena citada. Se os jurados desclassificarem a conduta para homicídio, o juiz presidente deverá declarar prejudicado o quesito da causa de aumento de pena, não podendo considerá-la como qualificadora do homicídio (art. 121, §2º, III, CP) porque não foi assim admitida na pronúncia. Entretanto, como dito, cremos que tal circunstância poderá ser sopesada pelo magistrado como agravante na segunda etapa da dosimetria (art. 61, II, c, CP), porquanto foi expressamente narrada na denúncia4.

Lado outro, é de se salientar que, tratando-se de crime de tentativa de feminicídio, poderá eventualmente a Defesa trazer em plenário duas teses desclassificatórias: uma para delito diverso de crime doloso contra a vida (ausência de animus necandi) e também a desclassificação para homicídio, como já exposto.

Nessa situação cremos que mais correto seria, após os quesitos da materialidade e autoria, o juiz presidente questionar a tentativa/desclassificação para crime diverso e, caso positiva a resposta, quesitar então a desclassificação para homicídio (art. 121, caput, CP, como no exemplo anterior).

Isso porque o primeiro é prejudicial ao segundo, já que se os jurados responderem negativamente ao quesito da tentativa, estarão acolhendo a tese de Defesa para que seja a infração penal desclassificada para crime não doloso contra a vida, o que lhes exclui a competência para julgamento doravante, inclusive. A partir daí caberá ao juiz presidente decidir motivadamente se o réu praticou algum outro crime que não seja doloso contra a vida ou não.

Em suma, assim ficaria o questionário: 1º quesito: Materialidade; 2º quesito: autoria; 3º quesito: Tentativa/desclassificação; 4º quesito: Desclassificação/homicídio; 5º quesito:Absolvição.

Por fim, se eventualmente a defesa sustentar em plenário que não se trata de feminicídio porque o crime não envolve violência doméstica e familiar e também porque não envolve menosprezo ou discriminação à condição de mulher, o respectivo quesito desclassificatório deverá ser desmembrado em dois: primeiro questiona-se a violência doméstica e familiar e, depois, o menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Nesse caso, somente haverá desclassificação para homicídio se os jurados responderem negativamente a ambos os quesitos desclassificatórios, pois basta que reconheçam uma das duas circunstâncias para caracterização do feminicídio.

Abarcadas, de forma sucinta, as hipóteses de quesitação no novo delito de feminicídio é preciso deixar fincado uma premissa básica: a vontade do legislador foi, ao aumentar nas penas abstratas, sinalizar a reprimenda geral de forma mais intensificada como corolário de proteção ao direito a vida (direito fundamental magno) e, assim, a observação da ótica do direito penal, também (ou seja, sem excluir todas suas vigas mestras) como fator de proteção às vítimas (evitando assim sua proteção deficiente) e seu acesso, quando vilipendiado, a seus familiares como, sobretudo, acesso ao direito universal à justiça.

_____

1 Art. 1º O Poder Judiciário deverá, no exercício de suas competências, adotar as providências necessárias para garantir que as vítimas de crimes e de atos infracionais sejam tratadas com equidade, dignidade e respeito pelos órgãos judiciários e de seus serviços auxiliares. § 1º Para os fins da presente Resolução, consideram-se vítimas as pessoas que tenham sofrido dano físico, moral, patrimonial ou psicológico em razão de crime ou ato infracional cometido por terceiro, ainda que não identificado, julgado ou condenado.§ 2º O disposto na presente Resolução aplica-se igualmente aos cônjuges, companheiros, familiares em linha reta, irmãos e dependentes das vítimas cuja lesão tenha sido causada por um crime.

2 Art. 482, CPP: O Conselho de Sentença será questionado sobre matéria de fato e se o acusado deve ser absolvido. Parágrafo único. Os quesitos serão redigidos em proposições afirmativas, simples e distintas, de modo que cada um deles possa ser respondido com suficiente clareza e necessária precisão. Na sua elaboração, o presidente levará em conta os termos da pronúncia ou das decisões posteriores que julgaram admissível a acusação, do interrogatório e das alegações das partes.

3AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. IMPUGNAÇÃO DEFICIENTE. INOBSERVÂNCIA DO COMANDO LEGAL INSERTO NOS ARTS. 932, III, DO CPC/2015, E 253, PARÁGRAFO ÚNICO, I, DO RISTJ. SÚMULA 182/STJ. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. PENAL E PROCESSUAL PENAL. VIOLAÇÃO DOS ARTS. 385 E 492, I, B, DO CPP. HOMICÍDIO. TRIBUNAL DO JÚRI. PleiTO DE RESTABELECIMENTO DA AGRAVANTE PREVISTA NO ART. 61, II, F, DO CP. TRIBUNAL QUE DECOTOU A AGRAVANTE POR NÃO ESTAR DESCRITA NA DENÚNCIA E POR NÃO TER SIDO QUESITADA AOS JURADOS. DESNECESSIDADE. DEBATE EM PLENÁRIO SUFICIENTE. RECONHECIMENTO PELO JUIZ TOGADO. PRECEDENTES.[...]3. É cediço neste Sodalício que no procedimento do Tribunal do Júri, após a reforma promovida pela lei 11.689/2008, as agravantes e atenuantes passaram a ser reconhecidas diretamente pelo juiz togado, sem necessidade de indagação aos jurados, bastando que sejam debatidas em plenário.[...](AgRg no REsp 1.946.263/RJ, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 18/9/2023, DJe de 21/9/2023.)

4 Pode-se assim concluir porque na pronúncia o juiz admitiu a acusação com a causa especial de aumento de pena decorrente do emprego de recurso que dificultou a defesa da vítima.

Fernando Chacha
Juiz de Direito no Tribunal de Justiça de Goiás. Especialista em Direito Tributário pelo IBET e em Direito Público e das Relações Sociais pela UCDB. Autor de inúmeros artigos jurídicos.

Marcos Boechat Lopes Filho
Juiz de Direito do TJGO. Especialista em Direito Processual Civil pela PUC/GO.

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