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Inteligência Artificial na Administração Pública global: indicadores positivos

Uso da IA no setor público. Princípios legais e éticos para uma aplicação eficiente e responsável, com exemplos do Brasil e da OCDE.

11/10/2024

O presente artigo pretende destacar o uso de sistemas de Inteligência Artificial no setor público de forma responsável e com respeito aos princípios administrativos da legalidade, da obediência à legislação vigente e da eficiência dos atos praticados. Registra o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana a ser aplicado do Direito Digital e que sistemas de IA deverão prezar pela centralidade do ser humano. Por fim, traz exemplos de modelos de IA no Brasil e nos países da OCDE voltados para o aumento da eficiência, para supervisão governamental e  para o atendimento ao cidadão.

As tecnologias emergentes, como tokenização, blockchain, gêmeos digitais e 5G, têm ganhado crescente aceitação na sociedade. No entanto, o destaque da IA tem despertado o interesse global. Inicialmente, a automatização de tarefas repetitivas aguçou a curiosidade em torno do conceito de IA e sua aplicação na vida cotidiana. Em uma segunda fase, surgiu o encantamento pelo uso de modelos de IA na recomendação de filmes, produtos, interações sociais e opções de locação de imóveis, entre outros. Atualmente, vivemos um momento de perplexidade diante da diversidade de modelos de IA desenvolvidos, sua escalabilidade e a fenomenal expansão de uso  em todos os aspectos da vida humana.

Desde sua fase inicial de curiosidade, a IA evoluiu de modelos preditivos — que analisam dados passados para prever comportamentos futuros — para a Inteligência Artificial Generativa. Nesta modalidade, destacam-se os Grandes Modelos de Linguagem (LLMs, do inglês Large Language Models), definidos como uma categoria de modelos de IA treinados com enormes quantidades de dados, capacitando-os a entender e gerar linguagem natural e outros tipos de conteúdo, permitindo a execução de uma ampla variedade de tarefas (IBM, 2024).

Os novos modelos de Inteligência Artificial Generativa têm se mostrado cada vez mais bem treinados a compreender e produzir linguagem natural, facilitando a interação entre humanos e máquinas, estas com a finalidade de atender às necessidades humanas com maior rapidez e precisão. Contudo, não podemos esquecer que governos ao redor do mundo buscam regulamentar a IA, enquanto seu uso e aplicação se expandem de forma vertiginosa.

Aliada à plataformização dos serviços e à transformação digital iniciada no setor privado, a Administração Pública tem se preocupado em se adaptar a essa nova realidade, que se iniciou em meados de 1994 no Brasil com a digitalização de documentos e processos.

Assim, o presente artigo pretende destacar que é possível utilizar a inteligência artificial no setor público. Sempre com cuidados. Nessa medida, Virginia Dignum defende que sistemas de IA são artefatos criados para atingir objetivos a serviço da humanidade e, portanto, subordinados aos contextos em que existem''. Na visão de Virginia Dignum: a responsabilidade pelo uso da inteligência artificial envolve várias considerações.O conceito de “IA Responsável” pode incluir: Políticas de governança para atividades de pesquisa e desenvolvimento e a implantação e uso da IA em contextos sociais; O papel dos desenvolvedores, tanto em nível individual quanto coletivo; Questões de inclusão, diversidade e acesso universal;  Reflexões sobre os benefícios e riscos da IA. (DIGNUM, 2019).

A questão central é avaliar o grau de maturidade dos sistemas de IA, a possibilidade de serem utilizados de forma segura e responsável e em quais atividades da Administração Pública poderão ser aplicados. 

A par dos princípios administrativos que devem ser observados na Administração Pública, tais como a legalidade, a obediência à legislação vigente e a eficiência dos atos praticados – inclua-se, ainda, o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Ao ser cotejado com o Direito Digital, sistemas de IA deverão prezar pela centralidade do ser humano. Nessa esteira, Virginia Dignum (2019) defende que os sistemas de IA devem ser vistos como ferramentas criadas para beneficiar a humanidade, sendo fundamentais a cautela em relação aos riscos e o otimismo quanto aos benefícios de seu uso responsável.

À medida que a transformação digital se expande ao setor público, é essencial demonstrar que as aplicações da inteligência artificial na Administração Pública virão a contribuir para a eficiência dos serviços prestados. 

Um exemplo é o investimento do Reino Unido em modelos de IA que poderão automatizar cerca de 84% das transações repetitivas em 200 serviços governamentais. De acordo com estudo divulgado em 20/3/24 pelo Instituto Alan Turing, cerca de um bilhão de transações com cidadãos são realizadas anualmente, abrangendo quase 400 serviços — incluindo solicitações de passaporte e processos de crédito universal (TURING, 2024). Dos 400 serviços, os pesquisadores filtraram 201 deles que envolviam decisão e troca de informações entre o governo e um cidadão, como registrar-se para votar ou solicitar um número de seguro nacional, considerados como potenciais para serem automatizados. Como o entendimento é de que os governos necessitam ser mais “responsivos, eficientes e justos” no uso de IA, o investimento vem sendo considerado como justificado.

Outro exemplo aplicável à Administração Pública é o aprimoramento da justiça brasileira, com a crescente expansão da denominada Justiça 4.0. Dentre tantos avanços, destaca-se a plataforma PDPJ-br - Plataforma Digital do Poder Judiciário – instituída pela resolução 335 de 2020 do CNJ -, com foco na qualidade dos dados coletados, na interoperabilidade entre sistemas e na experiência do usuário, sempre orientada ao uso responsável das tecnologias, voltadas para a prestação eficiente de serviços, com observância aos direitos fundamentais e ao devido processo legal.

Em âmbito global, o presente artigo busca, ainda, explorar aspectos do relatório publicado pela OCDE, que apresenta iniciativas significativas adotadas pelos governos membros da organização, questionando: os governos estão prontos para o uso da inteligência artificial no setor público? (OECD, 2024).

O relatório tem como tema a  governança do uso da IA, especialmente nas iniciativas positivas de modelos de IA que países membros da OCDE têm desenvolvido sistemas de IA para aumentar a eficiência de suas operações administrativas. Segundo o IGD da OCDE de 2023, cerca de 70% dos países participantes utilizaram sistemas de IA para aprimorar suas operações internas, adotando abordagens gratuitas e de código aberto.

O Canadá, por exemplo, está utilizando robótica para automatizar tarefas repetitivas, como a transferência de informações entre sistemas, acelerando operações internas e aumentando a eficiência dos fluxos de trabalho dos agentes. Na Suécia, o Escritório de Registro de Empresas desenvolveu um sistema de IA que classifica cerca de 60% dos e-mails recebidos, analisando seu conteúdo e encaminhando-os ao destinatário apropriado. Na Itália, a Corte dei Conti utiliza um modelo de IA chamado GiusBERTo, que tem a função de desidentificar e anonimizar automaticamente decisões, respeitando a privacidade dos usuários e equilibrando o direito público ao acesso à informação.

No que diz respeito à melhoria da produtividade no setor público, os países integrantes da OCDE têm adaptado suas estruturas internas para facilitar o uso sistemático da IA. No âmbito tributário, sistemas de IA têm sido utilizados para simplificar processos de arrecadação e prevenir fraudes fiscais, organizar a gestão orçamentária e analisar dados de receitas e despesas.

Exemplo na saúde pública é o sistema de convergência de IA desenvolvido pela Agência de Controle e Prevenção de Doenças da Coreia, que analisa dados médicos, de quarentena e espaciais para desenvolver políticas de resposta a doenças infecciosas.

Na Turquia, o Ministério da Saúde integrou um aplicativo de IA chamado "Neyim Var?" (O que há de errado comigo?), capaz de fornecer orientações personalizadas aos cidadãos sobre serviços de saúde. 

No campo da supervisão governamental, os sistemas de IA têm sido utilizados para aumentar a transparência dos atos administrativos e a responsabilização dos agentes, detectando fraudes e gerenciando riscos. O controlador geral da Espanha utilizou IA para identificar possíveis fraudes em programas de subsídios, enquanto na Estônia, o Conselho Fiscal e Aduaneiro tem testado IA para detectar solicitações de reembolso de IVA incorretas. No Brasil, a Controladoria Geral da União desenvolveu o Alice - Analisador de Licitações, Contratos e Editais, que coleta informações automaticamente sobre processos em andamento nas principais plataformas de compras públicas, avaliando riscos e alertando auditores sobre situações que não estão em conformidade.

Em conclusão, a experiência mundial tem demonstrado que o uso responsável de sistemas de IA na Administração Pública pode transformar a prestação de serviços, com o objetivo de serem aprimorados nos quesitos da eficiência, da transparência, da redução de custas e destinados ao cidadão. Com a implementação em maior escala dos sistemas de IA, os próximos desafios serão as posturas dos governos, para, em atendimento à governança com responsabilidade, voltarem esforços para mitigar riscos e garantir que as tecnologias emergentes atendam às necessidades da sociedade de forma ética, precisa e eficaz.

__________

1 CNJ – Conselho Nacional de Justiça. Justiça 4.0. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/tecnologia-justica40. Acesso em: 08 out. 2024.

2 DIGNUM, Virginia. “Responsible Artificial Intelligence: How to Develop and Use AI in a Responsible Way”. Springer, 2019. p. 93.

3 IBM. Large Language Models. Disponível em: https://www.ibm.com/br-pt/topics/large-language-models. Acesso em: 07 out. 2024.

4 OECD – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. “Governing with Artificial Intelligence: Are governments ready?” OECD Artificial Intelligence Papers, No. 20, OECD Publishing, Paris, 2024. Disponível em: https://doi.org/10.1787/26324bc2-en. Acesso em: 08 out. 2024.

5 TURING, Instituto Alan. AI could help automate around 84% repetitive service transactions across government. Disponível em: https://www.turing.ac.uk/news/ai-could-help-automate-around-84-repetitive-service-transactions-across-government. Acesso em: 07 out. 2024.

Adriana Barrea
Juíza de Direito do Tribunal de Justiça de São Paulo. Especialista em Direito Digital (Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Juízes (ENFAM). Especialista em Algoritmização da Justiça (Universitat Driet de Barcelona). Especialista em Serviço Social, Ética e Direitos Humanos (UNYLEA). Cursando Especialização em Gestão Judicial: Judiciário de Alta Performance - Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Juízes (ENFAM) - 2024. Mestranda na Universidade de Girona - Garantismo Penal, com pesquisa em "Justiça 4.0".

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