O desmonte do “wokerismo”
É impressionante a velocidade com que as empresas vêm desmontando as chamadas políticas de inclusão do chamado “wokerismo”.1 Está ficando claro que, muitas delas apoiaram esse movimento não por convicção, mas, com o propósito de conquistar a simpatia do maior número possível de consumidores.2 O importante era dar a publicidade de estarem promovendo mulheres, negros, idosos, gays e outros grupos que, sem dúvida, merecem toda consideração. Na verdade, essas empresas queriam evitar o “cancelamento” ou “lacração” dos consumidores que alimentam os valores do “wokerismo” – uma subcultura que insiste em considerar todas as diferenças como resultantes da ação deliberada de “opressores” sobre “oprimidos”. Para tanto, foram inventados um sem-número de termos para estigmatizar os considerados opressores – machismo tóxico, dívida histórica, lugar de fala, etarismo, negacionismo, gordofobia, etc.
Está evidente que o objetivo fundamental daquelas empresas era o de agradar o grande público, – e não a verdadeira promoção dos grupos vulneráveis. Em muitas delas os profissionais de RH recebiam ordens superiores para contratar mulher ou negro “o mais urgente possível” como estavam fazendo os concorrentes que vinham sendo contemplados com belas notícias pela grande imprensa”.3
Que fique bem claro o posicionamento dos autores deste ensaio. Em um país de tantas desigualdades, é imperioso que se implementem medidas que atenuemo sofrimento dos grupos mais frágeis, mas, sem que sejam retaliações aos demais grupos. Esse é o propósito das políticas públicas como, por exemplo, o Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada; as proteções dos Estatutos da Igualdade Racial, da Criança e do Adolescente, da Pessoa com Deficiência, do Idoso e vários diplomaslegais que formama rede de proteção socialdo país aos quais damos todo apoio. Entretando, temos sérias reservas em relação aos grupos formados por pessoas que se sentem ungidas se autodefinem como “oprimidas” e rotulam as demais como “opressoras” e responsáveis pelos seus problemas. Com isso, estabelece-se um ambiente de agressões e conflitos com forte repercussão na sociedade. Isso porque o identitarismo da subcultura “woke” dedica maior fidelidade aos seus valores do que os da sociedade onde atuam. O exagerado sentimento de pertencimento se torna exclusivo, eliminando o espaço aos demais grupos. Ao fazer suas reivindicações, o “wokerismo” ataca os demais grupos e busca afirmar a sua superioridade. Nesse contexto, é comum a crítica ao capitalismo, o que marca uma nova modalidade de luta de classes.4
O ambiente conflitivo do “wokerismo”
O ambientede “nós” (os oprimidos ungidos)5 e “eles” (os opressores deliberados) gera situações que vão da inibição da liberdade de expressão ao medo e à apreensão. Por exemplo, para muitos grupos identitários, os homens cisgêneros6 “ocupam um espaço na sociedade que foi legitimado por uma estrutura patriarcal e hegemônica, sem se dar conta que as pessoas trans, travestis e não-binárias, não dispõem desse respaldo e, por isso, são questionadas diariamente sobre sua opção sexual”.7
Em decorrência dessa visão, os grupos identitários entram em processos de confrontação, atribuindo aos demais grupos a responsabilidade por práticas desumanas de décadas ou séculos atrás. Embates desse tipo provocam polarizações que são potencializadas pela força das redes sociais. Com isso, a conflituosidade cresce e torna mais difícila implementação de medidas que resolvam os problemas dentro de um clima de entendimento, compressão e respeito mútuo.
É claro que no Brasil existemracismo e sexismo.O mesmo ocorreem relação a obesos, idosos, portadores de deficiência e outros grupos. Mas, nada justifica atribuir às pessoas em geral o estigma de discriminadoras. A insistência do “wokerismo” em generalizar a culpa aprofunda divisões, corrói a liberdade de expressão e as bases do entendimento entre as pessoas.
É o que ocorre, por exemplo, quando os grupos “oprimidos” demandam que os grupos “opressores” assumam a responsabilidade por reparações morais e econômicas por fatos ocorridos no passado remoto. Vejam o caso da demarcação das terras indígenas no Brasil. Os militantes do “wokerismo” pleiteiam que os atuais proprietários de terras (rurais e urbanas) reconheçam a sua usurpação e devolvam as mesmas aos herdeiros dos povos originários.
Ao buscarculpas em toda parte, o “wokerismo” passa da inclusão para a exclusão, contribuindo para alastrara insegurança e a desconfiança.8 Em muitos casos, as pessoas se calam para não serem “canceladas”. Isso empobrece o pensamento e a verdadeira diversidade que se exige da democracia.9
Uma sociedade fragmentada se torna presa fácil do autoritarismo e do populismo.10 A morte de muitas democracias modernas se deve não a ataques militares, mas ao solapamento das instituições cuja função principal é a de garantira liberdade de expressão das pessoas.11 Numa palavra: a agressividade do “wokerismo” agrava as desigualdades que pretende combater e enfraquece a capacidade das sociedades para encontrar soluções para os problemas.12
Com frequência, o acusatório dos “opressores” empurra a sociedade para becos sem saída. Vejam o caso do combateao racismo. Ao se referirà dívida históricaassociada à escravidão, pergunta-se: o Brasiltem de pagar uma indenização aos “credores”? Quem são os credores? Os herdeiros? Mas, quem são eles? Qual é o valor da indenização a ser paga? De onde viriam os recursos? Dos contribuintes?
A dívida que realmente interessa não é a histórica, mas sim a atual que inclui a necessidade de se melhorar as condições de vida dos grupos discriminados – a saúde, a educação, a segurança, o emprego, a renda, o transporte público, etc.
Expansão do “wokerismo”
Os movimentos identitários que alimentam o “wokerismo” se disseminaram de formaavassaladora, atingindo vários segmentos sociais – empresas, universidades,13 partidos políticos, órgãos públicos e outras instituições.14 Recentemente, por força de uma resolução da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), as empresas que operam no Brasil têm de incluir pelo menos uma mulher no conselho de administração e um representante da comunidade LGBTQIA+.15 Espera-se que isso seja feito de modo gradual e pela via do entendimento. Mas, não será surpresa se essa decisão virar bandeira de luta dos simpatizantes do “wokerismo”.
Nos Estados Unidos o “wokerismo” entrou até nas orquestras sinfônicas.16 Muitas estão sendo pressionadas a relaxar os critérios de recrutamento de músicos para acomodar uma proporção de membros dos grupos identitários. Os maestros reagem, pois precisam de artistas que sejam capazes de atender as exigências dos desafios musicais. Mas, a ideologia do “wokerismo” pretende ser mais importante do que a preservação da qualidade artística.
Em muitos casos, até o movimento em favor da ESG (Environment, Social and Government) é propelido pelo “wokerismo”. Uma enorme profusão de consultorias vendemàs empresas programas para reduzir o preconceito e a discriminação. Alguns empresários os adotam por convicção. Outros, buscam apenas fugir do patrulhamento ideológico do “wokerismo”. Reagir a esse modismo, pode prejudicar a imagem das empresas peranteconsumidores e opiniãopública – com prejuízos econômicos.
Sinais de mudança
Mas, o mundo começa a mudar. Nos Estados Unidos a proporção dos que acham “privilegiados” por serem brancos está caindo em todas as pesquisas. O mesmo ocorre ao que se refere ao movimento sexista que considera machista os homens cis. E mais. Verifica-se na mídia impressa, rádio e televisão um declínio do uso as palavras típicas do “wokerismo” tais como opressão, privilégio branco, machismo tóxico, gordofobia, transfobia, etc. Diminui também o número de professores universitários que vinham sendo “cancelados” por usar palavras consideradas inapropriadas pelo “wokerismo”. Em nove estados, foi banida a proibição do uso de termos que supostamente afetam a noção de diversidade. Ou seja, em vários ambientes, cresce de modo acelerado um movimento de revisão do “wokerismo”.17
Nas empresas, essa revisão está ocorrendo entre as que constataram estar perdendo a sua própria identidade e o seu “market-share” devido a adoção da retórica do “wokerismo”. Por isso estão desistindo das políticas conflitivas no campo da diversidade. Assim ocorre na Ford, Microsoft, Harley-Davidson, John Deere, Google, Meta, Facebook, Instagram, X e outras.
O mesmo vem ocorrendo na Europa. Na França, por exemplo, inúmeros autores vêm combatendo a nova discriminação criada pelo “wokerismo”18 A Ministra da Cultura, Rachida Dati, declarou recentemente que o “wokerismo” é uma política de censura e, como tal, deve ser combatido e abandonado.19 Béligh Nabli aponta que o “wokerismo”, ao tentar destruir estruturas existentes, cria divisões ainda mais graves por ser acompanhado de confrontação e conflito.20 Michel Onfray destaca que a subcultura woke ameaça a liberdade de pensamento e tenta impor normas sociais que não se coadunam com a cultura da França.21
Isso não significa que questões como raça e opção sexual foram abandonadas. Os assuntos apenas saíram da arena conflitiva do “wokerismo” e voltaram a ser discutidos como políticas públicas com medidas pragmáticas e sem confrontação.22
Até mesmo as ações da ESG vem sendo questionada. Uma pesquisa realizada em 2023 pela Hoover Institution da Universidade de Stanford apontou para um ceticismo crescente entre os investidores em relação ao retorno dos investimentos em ESG.23
Vários sinais dessa reação já são observados no Brasil. Empresas e escolas começam a rever a sua adesão ao “wokerismo”.24 Uma pesquisa recente realizada pela consultoria global GPTW (Great Place to Work) mostrou que a prioridade de diversidade nas empresas brasileiras caiu de 37% para 18% entre 2021-22.25 Várias empresas estão em processo de revisão das suas políticas identitárias e algumas já abandonaram-nas. No momento, elas demandam a não divulgação de suas decisões para não serem abruptamente “canceladas”.
Conclusão
No momento em que o Brasil mais precisa de união da sociedade para aproveitar as oportunidades oferecidas pelas novas tecnologias e fontes alternativas de energia e para, com isso, superar graves problemas sociais – cuja solução depende do crescimento econômico e de uma justa distribuição da riqueza, a exacerbação de diferenças e posturas agressivas como as do “wokerismo” dificultam a busca de um consenso mínimo que permita a convivência de todos, sem que abram mão de suas convicções, mas em nome de um objetivo maior.
As reações e revisões do “wokerismo” dos países mais avançados podem ser um bom ponto de partida para se superar a atual polarização que reina no Brasil. Esse revisionismo não significa eliminar as ações de diversidade. Ao contrário, ele busca aumentar a eficácia dessas ações por meio de políticas públicas inteligentes e iniciativas que ficam longe do clima conflitivo do “wokerismo”. Essa proposta visa praticar soluções que efetivamente atenuam as desigualdades e coloquem os agentes sociais de mãos dadas e em clima de entendimento. É a posição dos autores deste ensaio.
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1 “Woke” é um termo políticode origem afro-americana, refere-se a uma percepção e consciência das questões relativas à justiça social e racial. Ele deriva da expressão "stay woke" (esteja acordado)que se refere a uma consciência contínua das injustiças sociais.
2 Essa falsa adesão à diversidade foi constatada pela pesquisa da Consultoria Korn Ferry em que 85% das empresas brasileiras declararam ter acelerado suas iniciativas de diversidade, mas somente 14% acreditam que esses esforços são inefetivos. Citado em “Como a onda “anti-woke” interfere nas políticas de diversidade”, Reset-UOL, 31/07/2024.
3 Sobre critérios de seleção que premiam grupos específicos ver, por exemplo, Akira Galvão, “Elaborando Processos Seletivos Inclusivos para Pessoas LGBTQIAP+, São Paulo: Site GENERAS, 09/06/2023.
4 Várias análises dos movimentos identitários de cunho políticosão apesentadas por Antonio Risério, A crise da política identitária, Rio de Janeiro: Topbooks, 2022.
5 Thomas Sowell apresenta análises objetivas sobre os grupos que se consideram superiores em relação aos demais cidadãos, cuja maioria, é considerada de “opressora”. Ver Thomas Sowell, Os Ungidos, São Paulo: LVM Editora, 2022.
6 “Cis” é a pessoa que se identifica com o gêneroatribuído ao nascimento
7 Akira Galvão, “Curiosidade ou Transfobia”?, Site GENERAS, 17/05/2023
8 Amy Chua, “How America's identity politics went from inclusion to exclusion”, site How America's identity politics went from inclusion to division | US politics | The Guardian
9 Pedro Franco apresenta um rol de estudos empíricos que mostra o empobrecimento do pensamento e da ação no caso do sufocamento das ideias. Ver “O identitarismo e o mundo real: as implicações práticas de uma teoria”, In Antonio Risério, A crise da política indentitária, op. cit., p. 348. Ver também, Francis Fukuyama, "Against identity politics: the newtribalism and the crisis of democracy", Foreign Affairs, vol. 97, no. 5, 2018; Marco Aurélio Nogueira, “Identitarismo como avanço e como problema”, Estadão, 27/05/2023.
10 Ver Abdul Noury e Gerard Roland,“Identity politics and populism in Europe”, Annual Review of Political Science, vol. 23, nº 3, 2020; Ronald F. Inglehart e Pippa Norris, “2016: Trump, Brexit, and the rise of populism: economic have-nots and cultural backlash”, https://www.hks.harvard.edu/publications/trump-brexit-and-rise-populism- economic-have-nots-and-cultural-backlash; Dingping Guo e Shujia Hu “Identity politics and democratic crisis in Western Europe”, Chinese Political Science Review, vol. 4, 2019.
11 Aldo Rebelo, “As muitas faces do identitarismo”, in Madeleine Lacsko, Cancelando o cancelamento: como o identitarismo da militância tabajara ameaça a democracia, São Paulo: LVM Editora, 2023. Outros textos apresentam os riscos para a própria democracia. Ver Antonio Risério, “Diversidade em alta, democracia em risco”, in Antonio Risério, A crise da política identitária, op. cit., 2022; Fernando Schuler, “Democracia, identidades e a ilusão do grande consenso”, Revista de cultura,artes e ideias, 15/03/2019.
12 Steven Levitsky e Daniel Ziblat, Como as democracias morrem, Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
13 Fernando José Coscioni, “Universidade, identitarismo e o espírito do nosso tempo”, in Antonio Risério, A crise da politica identitária, op. cit., p.137
14 Sobre a penetração do “wokerismo” no campo da educação, ver. James Lindsay, Race Marxism, Orlando:New Discourses Ed., 2022; James Lindsay, Themarxification of education, Orlando: New Discourses, 2023
15 Resolução 59/2021 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
16 Heather Mac Donald, Whenrace trumps merit, Nashville: DW Books, 2023.
17 “America is become less woek”, The Economist, 19/09/2024.
18 Ver Abdul Noury e GerardRoland, “Identity politicsand populism in Europe”, Annual Review of Political Science, vol. 23, nº 3, 2020; Mitchell Dean e Daniel Zamora, Le dernier homme et la fin de la révolution, Lux, Futur proche, 2019;
Chloé Morin, “Identitarisme : ce péril qui menace notre démocratie”, L'Express, 21/06/2023; Jean-François Bayart: “L’identitarisme annule toute aspiration à l’émancipation”, L'Humanité, 16/12/ 2022.
19 “Em meio a protestos e denúncias, França vive sua própria guerra cultural”, Isto é, 07/02/2024;
20 Béligh Nabli, Le Republique identitaire, Paris: CERF, 2016
21 Michel Onfray, “Décoloniser les provinces”, L'observatoire Eds De 2017
22 “After peak woek, what is next?”, The Economist, 19/09/2024
23 Gabriela del Carmen, “Diversidade nas empresas: a discussão esfriou?”, Start-UP, 21/09/2024.
24 “Diversidade e inclusão em xeque”, Estadão, 08/09/2024.
25 “Diversidade e inclusão perdem força nas prioridades das empresas”, São Paulo: CNN Business, 13/06/2022