Migalhas de Peso

Direitos autorais na da inteligência artificial: Desafios e a necessidade de adequação legislativa

A revolução digital e o uso da IA desafiam profundamente as leis atuais de direitos autorais, exigindo uma urgente adaptação legislativa, tendo em vista o aumento de problemas como violações de direitos autorais nas plataformas digitais e a criação de obras por sistemas de IA.

9/10/2024

Vivemos em uma era de profundas transformações tecnológicas. Os aparelhos digitais e a IA - Inteligência Artificial revolucionaram a forma como consumimos, criamos e distribuímos conteúdos, o que tem suscitado debates urgentes e necessários sobre a adequação das leis de direitos autorais. O modelo tradicional de proteção autoral, concebido para uma realidade analógica, tem sido constantemente desafiado pela rápida evolução dos meios digitais e pelas novas possibilidades trazidas pela IA, levantando questões relevantes sobre a reprodução e distribuição de obras na internet.

Um dos principais dilemas envolve a facilidade com que obras protegidas por direitos autorais, como livros, músicas, filmes e imagens, podem ser replicadas e distribuídas livremente na rede global de computadores. Plataformas digitais permitem que conteúdos circulem de maneira praticamente instantânea e sem fronteiras, muitas vezes sem o devido consentimento dos autores ou o pagamento dos devidos direitos.

A pirataria, assim, um problema endêmico na era digital, coloca em xeque a capacidade de controle e fiscalização das autoridades, ao mesmo tempo em que afeta significativamente os rendimentos de criadores e da indústria cultural, gerando prejuízos econômicos de grande monta às empresas produtoras de conteúdo.

As plataformas digitais hoje, assim como em relação ao direito de liberdade de expressão de seus usuários, devem se atentar às violações autorais que terceiros realizam em sua esfera, de forma que o uso de uma marca ou da imagem de uma pessoa famosa de forma indevida pode gerar descredibilidade dessa empresa perante a sociedade, ou até mesmo difamação em casos extremos, sendo que a marca ou a celebridade nem mesmo se relaciona com o autor da postagem, violador do direito autoral e imagem.

Assim, uma empresa ou usuário que compartilhar um conteúdo em redes sociais em geral, mesmo que usando ferramentas de repostagem ou citando o responsável atribuindo-lhe os créditos não o exime de solicitar a devida autorização à marca ou celebridade. 

Hoje, há ferramentas e diretrizes nas plataformas digitais para proteção dos direitos autorais das empresas e personalidades, mas ainda existe uma grande preocupação pelos escritórios das big techs na reprodução de imagens, músicas e vídeos sem a devida autorização daqueles que de fato possuem os direitos autorais das obras e marcas. 

No entanto, o desafio vai além da pirataria ou reprodução indevida tradicional.

Com o avanço da IA, surgem questões ainda mais complexas. Hoje, sistemas de IA são capazes de criar músicas, pinturas, textos e outros conteúdos que se assemelham, ou até mesmo imitam, obras de autores reais. Isso nos leva a questionar: quem é o verdadeiro titular dos direitos autorais sobre uma obra gerada por IA? Como diferenciar uma criação humana de uma criação algorítmica? E, mais importante, como as legislações de direitos autorais devem se adaptar a essa nova realidade?

Marcelo Frullani Lopes1, em recente publicação de sua dissertação de mestrado, enfatiza que a IA vem sendo utilizada cada vez mais para produção de obras artísticas, dos mais variados tipos e setores, o que desafia a definição do conceito jurídico de autoria por essas novas tecnologias, gerando caminhos para as novas definições.

A legislação atual, em sua maioria, ainda presume a existência de um ser humano como autor de uma obra protegida. Contudo, o uso de IA na criação de conteúdo já desafia essa premissa, ao mesmo tempo em que o avanço no aprendizado de máquina pode gerar obras tão complexas quanto as criadas por humanos. A simples utilização de algoritmos para transformar dados e informações em produtos criativos levanta dúvidas sobre a originalidade da obra e a titularidade dos direitos, um campo ainda nebuloso no contexto das normas vigentes.

Bianca Mollicone2 lembra:

“Com o avanço das IAs generativas, questões difíceis sobre a autoria de obras têm levado a debate sobre se, como e quando as leis de direitos autorais devem evoluir, e se podem realmente evoluir dentro dos limites constitucionais postos, para abarcar a criação por autores artificialmente inteligentes”.

Certo é que a tendência é o Direito se atualizar e se reinventar para dar uma resposta ao novo contexto que vivemos diante da adoção massiva de sistemas de IA por usuários, profissionais e estudantes em suas atividades. Enquanto tal mudança mais formal não ocorre, os usuários devem se atentar, adotar maiores cautelas, mitigar os riscos e se prevenir no uso dessas novas tecnologias.3

Outro ponto de fricção está relacionado à reprodução de obras já existentes. Modelos de IA, como os usados em motores de busca e plataformas de recomendação, frequentemente utilizam grandes quantidades de conteúdo protegido por direitos autorais para treinar seus algoritmos. Isso é feito, em muitos casos, sem a devida autorização dos titulares, com base em exceções legais como o “fair use”4 nos EUA, ou por meio de lacunas regulatórias em outras jurisdições. No entanto, há um crescente clamor por reformas legislativas que garantam maior proteção aos autores, sem, contudo, sufocar a inovação tecnológica e o desenvolvimento de novas ferramentas criativas, diante de riscos, inclusive à privacidade dos artistas e produtores de obras.

Bianca Mollicone5 exemplifica:

“A queixa dos artistas vai além do risco de perder renda pela utilização de imagens geradas por Inteligência Artificial, com base em material protegido por direitos autorais. Eles argumentam que, como a arte está intimamente ligada a uma pessoa, essa utilização pela IA pode trazer também problemas ligados à proteção de dados e à privacidade.”

Por sua vez, o ambiente digital desafia a maneira como entendemos os direitos de reprodução, distribuição e exibição de obras. No mundo físico, a cópia de um livro, por exemplo, exige processos físicos de impressão e distribuição. Na internet, um único clique pode replicar uma obra milhões de vezes, em múltiplos formatos, em segundos, para o mundo todo. A facilidade de compartilhamento nas redes sociais e plataformas digitais demanda, portanto, um ajuste nas normas que regulam os direitos de distribuição e reprodução.

O desafio central é encontrar um equilíbrio entre, de um lado, a proteção dos direitos autorais e, de outro, o estímulo à inovação e à livre circulação de ideias e informações, com o fomento, inclusive, da democratização da informação. A proteção excessiva dos direitos autorais pode inibir o desenvolvimento de novas tecnologias e ferramentas, enquanto a falta de proteção pode desestimular criadores e empresas ao reduzir suas compensações financeiras e de crescimento nessas plataformas.

Nesse contexto, há uma necessidade premente de que as leis de direitos autorais sejam revisadas para contemplar as mudanças trazidas pela era digital e pelo uso da Inteligência Artificial. Iniciativas como a reforma da diretiva de Direitos Autorais da União Europeia, que introduziu mecanismos de responsabilidade para plataformas digitais, mostram que a regulação está caminhando para abarcar essas novas realidades. No entanto, é essencial que o debate legislativo envolva todos os atores afetados – criadores, usuários, empresas, plataformas e desenvolvedores de IA – para que as normas reflitam de forma justa os interesses de todos.

Em suma, as transformações trazidas pela era digital e pela IA desafiam os conceitos, princípios e regras das leis de direitos autorais mundo afora. Há uma clara necessidade de adaptação legislativa que reconheça as novas formas de criação e distribuição de obras, sem comprometer o estímulo à inovação e à democratização da informação. O equilíbrio entre a proteção dos direitos dos criadores e o acesso à cultura e ao conhecimento será o grande desafio jurídico nos próximos anos, demandando soluções criativas e colaborativas para um futuro mais inclusivo e justo no âmbito dos direitos autorais.

__________

1 LOPES, Marcelo. Obras geradas por inteligência artificial. São Paulo: Dialética, 2023.

2 MOLLICONE, Bianca. IA e propriedade intelectual - o desafio da regulação. In: MARANHÃO, Juliano (Org.). facetas Jurídicas da Inteligência Artificial Generativa. São Paulo: Legal Grounds Institute, 2023. pg. 104. 

3 ALENCAR, Ana Catarina. IAs generativas e direitos autorais. In: MARANHÃO, Juliano (Org.). facetas Jurídicas da Inteligência Artificial Generativa. São Paulo: Legal Grounds Institute, 2023. pg. 113.

4 O fair use é um conceito jurídico norte-americano que permite o uso de material protegido por direitos autorais sem a necessidade de autorização ou pagamento financeiro ao autor. O termo significa, numa tradução livre, "uso honesto" ou "uso aceitável".

O fair use é uma doutrina que abrange as ciências, as técnicas e as artes de forma geral. Tal princípio permite que os bens intelectuais não sejam um privilégio absoluto dos seus criadores, garantindo certos direitos de uso por todos os usuários ou interessados.

Para determinar se um uso é considerado honesto ou aceitável, os tribunais norte-americanos avaliam quatro fatores:

  • Finalidade do uso
  • Natureza do trabalho protegido por direitos autorais
  • Proporção da obra utilizada perante a sociedade
  • Efeito que terá sobre o mercado potencial ou valor do trabalho

O fair use, assim, é um conceito complexo, e é responsabilidade do usuário entender a legislação em questão e se ela protege o uso pretendido. Se a intenção é usar material com direitos autorais que o usuário não tenha criado, é recomendado seguir aconselhamento jurídico.

5 MOLLICONE, Bianca. IA e propriedade intelectual - o desafio da regulação. In: MARANHÃO, Juliano (Org.). facetas Jurídicas da Inteligência Artificial Generativa. São Paulo: Legal Grounds Institute, 2023. pg. 105. 

ALENCAR, Ana Catarina. IAs generativas e direitos autorais. In: MARANHÃO, Juliano (Org.). facetas Jurídicas da Inteligência Artificial Generativa. São Paulo: Legal Grounds Institute, 2023.

LOPES, Marcelo. Obras geradas por inteligência artificial. São Paulo: Dialética, 2023.

MOLLICONE, Bianca. IA e propriedade intelectual - o desafio da regulação. IN: MARANHÃO, Juliano (Org.). facetas Jurídicas da Inteligência Artificial Generativa. São Paulo: Legal Grounds Institute, 2023. 

Sílvio Tadeu de Campos
Advogado formado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e especialista em Direito Administrativo e Licitações pela FGV Direito SP, em Regulatory Compliance pela University of Pennsylvania, Cloud Computing Law pela Queen Mary University of London e em AI & Law pela Lund University.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Quais são as coisas que os agentes consulares não querem ver durante uma entrevista de visto para os EUA?

8/10/2024

ITCMD e holdings familiares: Reduzindo impostos em doações e herança

7/10/2024

Advogados não podem errar? Um olhar sobre as exigências e a exposição da advocacia brasileira

8/10/2024

Reconhecimento da validade de assinaturas eletrônicas em plataformas não certificadas pela ICP-Brasil

9/10/2024

Um é pouco, dois é bom, três é demais? Para se requerer exame de um pedido de patente, três anos é muito melhor

7/10/2024