Desde a criação das contribuições sociais ao PIS e Cofins, esses tributos se tornaram protagonistas incontestáveis no contencioso tributário brasileiro, verdadeiras inimigas do fim.
As discussões jurídicas em torno dessas contribuições sociais são intermináveis, uma vez que a complexidade de sua legislação contribui diretamente para o crescimento exponencial dos litígios no país, resultando em um ambiente de constante insegurança jurídica.
Foi justamente essa falta de uniformidade, somada às inúmeras distorções presentes no sistema tributário, que impulsionou a aprovação da emenda constitucional 132/23 (Reforma Tributária), marcando o início do fim desses tributos em nosso sistema tributário.
Enquanto aguardamos a concretização dessas mudanças, o PIS e a Cofins continuam como os protagonistas teimosos do contencioso tributário. E, mais uma vez, a velha questão do que pode ser considerado insumo para fins de creditamento das referidas contribuições rouba a cena.
Relembramos que o art. 3º das leis 10.637/02 e 10.833/03 permite o aproveitamento de créditos das contribuições sobre custos e despesas vinculados à atividade econômica. O inciso II inclui bens e serviços usados como insumos na prestação de serviços e na produção de bens para venda. No entanto, as leis não definem o conceito de insumo, gerando controvérsias entre contribuintes e o Fisco Federal.
Foi justamente em razão disso que, ao longo dos anos, a Receita Federal, por meio de diversas soluções de consulta, sustentou que o conceito de insumos para fins de creditamento de PIS e Cofins, no regime de não cumulatividade, deveria ser rigorosamente alinhado com o conceito utilizado na legislação do IPI, sendo que essa interpretação restritiva culminou na edição das instruções normativas 247/02 e 404/04, já revogadas, que adotaram uma visão extremamente limitada sobre o que poderia ser considerado insumo.
Por outro lado, os contribuintes passaram a adotar uma interpretação mais ampla do conceito de insumos, entendendo que insumos deveriam abranger todos os custos e despesas relacionados à atividade empresarial, alinhando-se ao conceito de despesa utilizado para fins de apuração do IRPJ.
Essa briga entre o fisco e os contribuintes percorreu um longo caminho no âmbito do judiciário.
Os tribunais começaram a se deparar com uma enxurrada de litígios sobre o que deveria ser considerado insumo. Buscando resolver essa controvérsia, o STJ, ao julgar o REsp 1.221.170/PR sob a sistemática dos recursos repetitivos, firmou a tese de que o conceito de insumo para fins de apuração de créditos de PIS e Cofins deve ser definido com base nos critérios de essencialidade e relevância, ou seja, levando em conta a importância do bem ou serviço para o desenvolvimento da atividade econômica do contribuinte.
Embora esse entendimento tenha representado um avanço significativo na uniformização da jurisprudência, os critérios de essencialidade e relevância das despesas para fins de creditamento do PIS e da Cofins ainda continuam a ser objeto de intensos debates. A falta de parâmetros claros para a aplicação desses conceitos faz com que a interpretação continue a gerar controvérsias entre os contribuintes e o Fisco.
Um exemplo evidente dessa controvérsia pode ser observado no setor varejista. A jurisprudência majoritária dos Tribunais Regionais Federais tem adotado o entendimento de que as empresas desse segmento não têm direito ao creditamento de PIS e Cofins, com base no argumento de que suas atividades não envolvem um processo de fabricação ou produção.
O fato é que essa questão não foi devidamente esclarecida no julgamento do recurso repetitivo pelo STJ. O entendimento predominante nos tribunais regionais é uma interpretação que surgiu a partir das lacunas deixadas na decisão do STJ. Para agravar ainda mais a situação, esses casos raramente chegam à Corte Superior, uma vez que a Súmula 7 do STJ, que impede o reexame de fatos e provas, é frequentemente aplicada para barrar os recursos que discutem essa matéria.
Identificando essa discrepância, o vice-presidente do TRF da 2ª Região selecionou e submeteu alguns recursos ao STJ para que seja definido, sob a sistemática de recursos repetitivos, qual deve ser a interpretação jurídica a ser atribuída aos conceitos de “essencialidade” ou “relevância” dos insumos para autorizar o creditamento de despesas no cômputo das contribuições sociais.
Tal medida tem amparo no artigo 1.036, §1º1, do CPC, que autoriza o presidente ou o vice-presidente de tribunal de justiça ou de tribunal regional federal selecionar dois ou mais recursos representativos de controvérsia e enviá-los aos tribunais superiores quando identificar a multiplicidade de recursos especiais e extraordinários com fundamento em idêntica questão de direito.
Ao receber essa sugestão, o presidente da comissão gestora de precedentes e de ações coletivas do STJ, ministro Rogerio Schietti Cruz, reconheceu que, embora a Corte Superior tenha definido o conceito de insumos quando do julgamento do REsp 1.221.170/PR, há inúmeras decisões da Primeira e da Segunda Turma no sentido de pontuar que a definição do conceito de insumos dentro dos critérios de essencialidade e relevância demandaria o reexame de fatos e provas, o que é inviável em sede de recurso especial por conta da súmula 7 dessa Corte.
Por isso, o ministro concluiu pela admissão da proposta de afetação de alguns recursos especiais como representativos da controvérsia que envolvem empresas de variados setores empresariais2. Os referidos recursos foram distribuídos para a 2ª turma do STJ, sob relatoria do ministro Mauro Campbell, que possivelmente irá se manifestar em breve sobre a proposta de afetação em razão de os recursos terem sido remetidos à conclusão no início de agosto de 2024.
Dentre esses recursos especiais, identificamos que pelo menos três se referem a empresas que atuam no ramo de comércio varejista: REsp 2.121.094/ES (comércio varejista de produtos alimentícios), REsp 2.122.155 (comércio atacadista de máquinas e equipamentos) e REsp 2.122.146/RJ (comércio varejista de brinquedos e artigos recreativos).
A leitura da proposta de afetação permite perceber que o ponto central é de natureza processual. Como mencionado pela decisão do vice-presidente do TRF da 2ª região, “a conceituação jurídica de essencialidade e relevância de determinada despesa não acarreta, em si, revolvimento de matéria exclusivamente fática, fazendo-se necessário que essa divergência jurídica seja assentada pela Jurisprudência do STJ, sem prejuízo e em estrita consonância com os critérios genéricos estabelecidos pela mencionada tese firmada no tema 779/STJ.”
Concordando com esse posicionamento o ministro Rogerio Schietti Cruz destacou que a afetação ao rito dos repetitivos pode ser cabível, mesmo em situações que discutem a própria admissibilidade do recurso especial, fundamentando-se no parágrafo único do art. 928 do CPC3.
Embora o cerne da questão seja de natureza processual e não trate diretamente do creditamento de PIS e Cofins para o setor varejista, entendemos que essa movimentação pode representar uma luz no fim do túnel para o setor comercial.
Caso a proposta seja acolhida, o STJ terá que decidir se a súmula 7 deve ser aplicada a todos os casos que envolvem essa matéria ou se ainda há pontos pendentes a serem resolvidos, especialmente em razão das lacunas deixadas pelo julgamento do REsp 1.221.170/PR (recurso repetitivo).
Tal definição poderá, finalmente, abrir caminho para que a controvérsia envolvendo o varejo seja enfrentada. O que o mercado varejista aguarda é uma resposta objetiva a seguinte questão: Afinal, STJ, o inciso II do art. 3º da lei 10.637/02 veda a tomada de crédito a título de insumo para varejistas? Porque, convenhamos, essa é uma questão estritamente de direito que não exige qualquer análise de fatos ou provas que justificaria a aplicação da súmula 7.
Agora, cabe apenas acompanhar o desenrolar dos próximos capítulos, na esperança de que a barreira da súmula 7, tantas vezes considerada intransponível, seja finalmente superada. Caso contrário, a palavra final sobre o tema continuará nas mãos dos TRF, contrariando a lógica do nosso sistema.
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1 Art. 1.036. Sempre que houver multiplicidade de recursos extraordinários ou especiais com fundamento em idêntica questão de direito, haverá afetação para julgamento de acordo com as disposições desta Subseção, observado o disposto no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal e no do Superior Tribunal de Justiça.
§ 1º O presidente ou o vice-presidente de tribunal de justiça ou de tribunal regional federal selecionará 2 (dois) ou mais recursos representativos da controvérsia, que serão encaminhados ao Supremo Tribunal Federal ou ao Superior Tribunal de Justiça para fins de afetação, determinando a suspensão do trâmite de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que tramitem no Estado ou na região, conforme o caso.
2 REsp 2.121.094/ES, REsp 2.121.123/ES, REsp 2.122.146/RJ, REsp 2.122.155/ES, REsp 2.122.208/RJ, REsp 2.126.483/RJ, REsp 2.141.336/RJ, REsp 2.142.053/ES e REsp 2.162.241/RJ
3 Art. 928. Para os fins deste Código, considera-se julgamento de casos repetitivos a decisão proferida em:
[...]
Parágrafo único. O julgamento de casos repetitivos tem por objeto questão de direito material ou processual.