Eu permitiria que a cidade crescesse até o ponto em que isso fosse compatível com a unidade; mas não a deixaria passar daí.
Platão, A República, Livro IV
1. Em linha geral, o urbanismo significa o processo - plural - de ordenação do espaço urbano a partir de princípios democráticos, em que o interesse coletivo prevalece sobre o individual. Dentro do território de cada Município brasileiro, o macrozoneamento – conteúdo fundamental do plano diretor1 - define as zonas urbanas (corretamente tomadas no plural) e a zona rural (por exclusão, a remanescente), critério que estabelece uma classificação importante do solo municipal. Esta classificação básica, como mostramos no livro Disciplina jurídica da organização do espaço (cap. 3 – “Ainda a distinção entre imóvel urbano e rural”), gera muitos efeitos jurídicos e não está absolutamente superada tal como querem alguns. Porém o ponto de discussão, agora, é outro: é refinar, aprimorar, verticalizar aquele conceito técnico de zona com destino urbano, tendo em vista que o Direito Urbanístico estuda as normas reguladoras dos processos de ordenação do território urbano.
Temos, no Direito Urbanístico, três conceitos que são próximos porém distintos, todos derivados do imperativo do planejamento do espaço urbano, que é tarefa municipal por expresso comando constitucional (art. 30/VIII). Veja-se que o texto constitucional é impositivo: compete aos Municípios “promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano”. Não é uma mera autorização para o ente local instituir o planejamento do solo urbano, vinculando as propriedades, mas uma imposição, ainda que os meios e fins sejam deixados para a autonomia municipal decidir. A razão de tal determinação constitucional é clara: “O urbanismo é uma política pública. Disto procede a convicção de que o jogo livre das iniciativas privadas é, num certo nível, fonte de incoerências, desperdícios e desordens na utilização do solo urbano” (Auby et al, Droit de l’urbanisme, n. 100). Daí a atuação necessária do Poder Público em ordenar os espaços, garantindo o “direito à cidade”.
2. Dentro do macrozoneamento, o primeiro conceito (até historicamente) será o de zona urbana, tal como definido pelo plano diretor de cada Município, zona que é delimitada pelo chamado perímetro urbano. O perímetro é a linha que delimita uma figura geométrica. É, no caso, a linha de contorno da zona urbana, ligando pontos apropriados do território, de acordo com o método das linhas retas em função dos muitos recortes apresentados por quaisquer “franjas” urbanas. Para evitar litígios e contendas, deve-se seguir, em princípio, o limite das propriedades imobiliárias para que não sejam estas cortadas ao meio, muito embora Jean-Bernard Auby et al. digam que “o zoneamento não tem de seguir o limite das propriedades” simplesmente porque os limites das propriedade podem ser alterados depois da aprovação do plano (Droit de l’urbanisme, n. 438)2.
Portanto, a zona urbana é o conteúdo do espaço delimitado pela linha do perímetro urbano que deve ser fixado em lei local - notadamente o plano diretor - com normas e cartas geográficas apropriadas. E daí várias consequências como, na forma do art. 3º da Lei nº 6766/79, não ser permitida a aprovação de loteamentos para fins urbanos fora de zona urbana, ou seja, por exclusão, na zona rural. Isto se dá em razão da necessidade que o uso da infraestrutura urbana seja otimizado e, logo, a zona urbana seja concentrada e não se permitindo, pois, que a ocupação do solo se espalhe pelo território municipal, o que causará sério impacto para as finanças públicas locais. Nem estrangulamento e nem esgarçamento. Entretanto, Sérgio Buarque fala do “desleixo” da cidade colonial portuguesa em razão da cidade espanhola (Raízes do Brasil, 1936) – como se vê até hoje, mesmo após o art. 42-B do Estatuto da Cidade estabelecer regras nacionais para ampliação do perímetro urbano.
3. O segundo conceito, que também está no art. 3º da Lei nª 6766/79, é o de zona de expansão urbana, espacialmente maior que a anterior. Ele se difere do primeiro porque será a zona que definirá a expansão futura da mancha urbana, “incentivando-a”, por exemplo, a avançar para o norte e não para sul onde, por hipótese haja um manancial. Lembre-se que o art. 182/§ 1º da CF estabelece que “o plano diretor (...) é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana”. Enfim, a função da zona de expansão urbana – que sempre será maior territorialmente que a zona urbana para não “estrangulá-la” e provocar a verticalização – será a de planejamento da expansão horizontal da cidade, “conduzindo-a” a sítios adequados e impedindo a ocupação de sítios inadequados como são aqueles com algum tipo de fragilidade ambiental. Assim, a zona de expansão urbana pode ser chamada de “zona urbanizável” porque relacionada ao futuro desenvolvimento da cidade: ao movimento de urbanização. É o Poder Público determinando para quais direções a cidade irá - e para quais não irá.
Se o loteamento consiste na urbanização primária, a ocupação do lote será a urbanização secundária e, em muitas áreas, elas podem ter ocorrido ou não, a depender de iniciativas imobiliárias de agentes privados (ou eventualmente públicos). Todavia, em qualquer caso, a urbanização do solo só se completará quando a urbanização primária (a produção do lote) se encontrar com a urbanização secundária (a ocupação do lote), devendo-se ressaltar que ambos os processos podem ser feitos pela mesma pessoa (caso dos conjuntos habitacionais, por exemplo, ou dos condomínios novos de casas prontas) ou por pessoas distintas, como é mais comum (uma pessoa produz o lote e outra constrói a casa).
4. Tudo isto é bem conhecido e, talvez, estudado. Mas há uma terceira zona, intermediária entre as duas que, embora não conste expressamente nas leis locais, precisa ser definida cartograficamente – e na Cartografia estará um dos pontos mais importantes e maltratados do plano diretor (v., nosso, capítulo 7 – “Notas sobre a baixa efetividade do plano diretor”). Falamos da zona urbanizada e este é o ponto principal a tratar. E o que se entende por tal zona? É a área onde há ocupação presente, de pedra e cal, como em séculos passados se dizia3, ou “brick and mortar zone”. Em suma, é onde há “casas” levantadas, que Teixeira de Freitas definia, genericamente, como “edifícios destinados para nossa habitação e quaisquer estabelecimentos de indústria, comércio ou de simples depósito” (Vocabulário jurídico, 1883)4. Juridicamente, “casas” são acessões artificiais dos lotes, bens móveis (os materiais de construção) a imóveis, imobilizando-os (art. 1248/V do CC).
Necessitando ser levantada ou delimitada, em cada caso, a função desta zona urbanizada é a de identificar os espaços já ocupados atualmente para evitar que novos loteamentos “esgarcem” sobremaneira o tecido urbano, criando vazios dentro da zona urbana e. com isso, “incoerências, desperdícios e desordens”. A zona urbanizada será menor, sempre menor, que a zona urbana porque, em especial nas franjas desta, haverá glebas ainda não loteadas, ou loteamentos ainda não implantados - e lembre-se que o loteador tem até 8 anos para fazê-lo, tal como define o art. 18/V, prazo que foi ampliado em 2021 - ou mesmo, em loteamentos com infraestrutura implantada, haverá loteamentos em que, por motivos vários, a ocupação do solo ainda não se iniciou. Assim, zona urbana não coincide com zona urbanizada, tendo ambas sentido diverso: uma (a primeira) é legal e outra (a segunda) é factual; esta é um fenômeno empírico e não normativo - devendo ser feito, neste caso, um recorte particular do solo urbano já ocupado, em grande escala (o que pode inclusive detectar extrusões da zona urbana ou, de outra parte, invasões da zona rural).
5. Na maior parte dos Municípios, a cidade é composta por zona urbanizada (a cidade, sede do Município) onde gravitam expansões pequenas e impróprias delas (porque “desurbanizadoras”), muitas vezes com apenas uma via única de acesso. Forma-se, por assim dizer, um “sistema de bolhas” desconectadas a demonstrar que o tecido urbano se descompacta, com muitas decorrências negativas (“bolhas-satélites”). Afinal, não importa onda resida o cidadão – se perto do centro ou se longe -, a ele será assegurado todos os direitos fundamentais que a Constituição prevê. A solução, por exemplo, para a falta de escolas – nas referidas “bolhas-satélites” – será o transporte escolar gratuito oferecido pelo Município. A falta de instalações de saúde a mesma coisa. Tudo certamente derivado ou resultado de uma má leitura técnica da cidade e sempre lembrando que o Município é quem, pela lei, tem por atribuição legal a aprovação de parcelamentos do solo (art. 12 da Lei nº 6766/79), aprovação veiculada, do ponto de vista do ato administrativo, por autorização (não é licença) porque não pressupõe direito subjetivo. Dos aproveitamentos do solo, de acordo com o texto constitucional (v. supra), apenas uso e ocupação pressupõem direito: o parcelamento (para fins urbanos) é transformação dele e, portanto, imperar o interesse público sobre o privado - e daí a autorização.
Sérgio Buarque falará, no famoso capítulo 4 de sua obra, antes citada (capítulo chamado O semeador e o ladrilhador), que os portugueses “foram semeadores de cidades irregulares, nascidas e crescidas ao deus-dará, rebeldes à norma abstrata. Esse tipo de espaço urbano “não chega a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça na linha da paisagem”. Ainda hoje não temos algo muito diferente dos tempos coloniais em razão de o interesse privado prevalecer, não poucas vezes, sobre o público, além da ausência quase total de planejamento público consistente, de visão de futuro em nossas cidades. Faz-se gestão do presente mas não planejamento do futuro desejável. O Poder Público não desenvolve planejamento e os empreendedores privados se aproveitam disso gerando “desurbanismo”, o inverso do urbanismo, ou seja, uma “estratégia de destruição” – como alguém chamou - das cidades.
Veja-se, ainda, que quando se fala em conurbação5, para efeito de se definir uma aglomeração urbana (art. 25/§ 3º da CF), fala-se em zonas urbanizadas (ou “malhas” para enfatizar um sentido estrutural contínuo) de Municípios diversos, que se aproximam e se conectam. Não importa a dita zona urbana, evidentemente, mas a justificativa para um planejamento das funções públicas de interesse comum será o da continuidade, concreta, efetiva, da zona urbanizada abrangendo, no entanto, limites municipais diversos. Os limites municipais coincidem com o do perímetro urbano - e a ocupação do solo desconsidera tais abstrações jurídicas. Assim, os poderes locais autônomos se enfraquecem diante da realidade da urbanização secundária, próxima e intensa. Com mais de 20 milhões de habitantes, a Região Metropolitana de São Paulo envolve 39 Municípios ou já conurbados (com malhas urbanas que se encontram) ou em processo de forte conurbação.
6. A partir da leitura técnica da cidade, o plano diretor deve conter, minimamente, tanto o macrozoneamento do território municipal quanto, por diferenciação, o microzoneamento do solo urbano, o que abrange as chamadas zonas funcionais para controle público do uso e da ocupação. Portanto, pode-se, enfim, fazer um quadro conclusivo a respeito dessa importante distinção entre as várias zonas com destino urbano, distinção esta muitas vezes incorretamente compreendida e mesmo confundida e sobreposta.
Quadro das diferentes zonas com destino urbano
Sentido | Função | |
Zona de expansão urbana (maior) | Planejamento territorial | Direcionar o futuro da mancha urbana |
Zona urbana (intermediária) | Definir o perímetro urbano (solo urbano) | Impedir a ocupação urbana de solo rural, concentrando a cidade |
Zona urbanizada (menor) | Estabelecer a ocupação presente ou atual do solo | Evitar que o tecido urbano se “esgarce”, formando vazios urbanos que desorganizam o sistema urbano |
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1 Esta afirmação pode ser extraída, com alguma facilidade, do art. 42 do Estatuto da Cidade.
2 Esta é uma questão tratada tecnicamente pela Engenharia Cartográfica e de Agrimensura, que estuda o tema.
3 É a alvenaria. Aluísio Azevedo usa a expressão em O cortiço (1890), dizendo que as “casinhas” pareciam “uma serpente de pedra e cal” (cap. 1).
4 Numa perspectiva histórica, o mesmo Teixeira de Freitas, na Consolidação das Leis Civis (1876) define como prédio urbano, por oposição a prédio rústico, “todos os que servem para habitação, comodidade e recreio, dos moradores das cidades, vilas e povoações, como casas, cocheiras, cavalariças, senzalas, barracas, telheiros, trapiches, armazéns, lojas, e quaisquer outros edifícios de qualquer forma e denominação que sejam, e de quaisquer materiais, que sejam construídos e cobertos, uma vez que sejam imóveis, isto é, fixados no solo e de maneira que se não possam tirar e transferir do lugar em que se acharem se destruírem” (art. 50).
5 Para muitos, a realidade da “conurbação” é o fim da cidade – tal como a entendíamos - e a emergência do “fenômeno urbano”, conceitualmente diverso. A propósito, v. F. Choay, “Le règne de l’urbain et la mort de la ville” em “La ville – art et architecture em Europe” (1994).
6 AUBY, Jean-Bernard et al. Droit de l’urbanisme et de la construction. 9ª ed. Paris: Montchrestien, 2012.
7 CASTILHO, José Roberto Fernandes. Disciplina jurídica da organização do espaço – temas e problemas. São Paulo: Pillares, 2024.
8 FREITAS, Augusto Teixeira. Vocabulário Jurídico. São Paulo: Saraiva 1983.
9 _____. Consolidação das leis civis. Brasília: Senado Federal, 2003.
10 HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.