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Turbulências olímpicas no horizonte

A luta pelo poder no COB, marcada pela proposta de um terceiro mandato para o presidente, expõe fragilidades na governança do esporte.

1/10/2024

Os Jogos Olímpicos acabaram, mas não os jogos de poder envolvendo a eleição para presidente do Comitê Olímpico Brasileiro que ocorrerá no próximo dia 3 de outubro.

Não é de hoje que o estamento esportivo tenta perpetuar-se na gestão das organizações que desenvolvem o desporto de alto rendimento, mas a atual eleição tem um componente capaz de paralisar todo o funcionamento da máquina desportiva, colocando em risco a própria higidez do sistema.

Antes de adentrar um pouco na temática, é importante explicar para aqueles que desconhecem o sistema de financiamento do desporto de alto rendimento como ele funciona, sem grandes pretensões, contudo, de fazer-se um estudo aprofundado do tema, o que já fiz por ocasião da apresentação de dissertação de mestrado em que escrevi sobre autonomia constitucional das organizações desportivas e sua relação com o Estado . 

Observou-se durante a pesquisa acadêmica que o Comitê Olímpico do Brasil, bem como os demais comitês contemplados com recursos públicos advindos das loterias, funciona como se fosse uma agência privada de fomento público. Explico: com a evolução da autonomia desportiva, quer na carta olímpica, quer na Constituição Federal de 1988, as funções de fomento antes desenvolvidas diretamente pelo Estado, passaram para as mãos de organizações desportivas privadas dotadas de autonomia constitucional, mas que gerem recursos públicos, distribuindo muitos milhões de reais às organizações de administração de desporto, como as confederações olímpicas. Apenas a título de informação, somente o Comitê Olímpico do Brasil recebeu no ano de 2023, o valor aproximado de R$ 400.000.000,00  (quatrocentos milhões de reais), excluindo-se patrocínios de bancos públicos e empresas privadas, o que demonstra o tamanho do problema.

Contudo, a partir da Lei 12.868/2013, o Estado passou a exigir uma série de contrapartidas relacionadas à governança da gestão como condição para que estas entidades continuassem recebendo repasses da administração direta ou indireta, impondo uma única recondução e mandatos de quatro anos.

Neste contexto, a possibilidade de permanência do atual Presidente do COB e as consequências de um terceiro mandato tornou-se uma questão nodal. Advoga o atual Mandatário seu direito de concorrer a uma segunda recondução, considerando que fora eleito pela primeira vez apenas em 2020, fazendo jus a uma recondução de mais 04 anos, apesar de ter ascendido à posição de dirigente máximo do Comitê no ano de 2017, após a renúncia do então Presidente Carlos Nuzman.

Argumenta que seu direito seria violado à medida em que somente fora eleito em 2020, não se podendo considerar sua gestão “tampão” como um mandato. Todavia, ponderamos que não se trata apenas de possibilitar-se uma nova recondução, mas de violar-se, a limitação temporal que um gestor pode permanecer na presidência de uma organização desportiva.   

A norma insculpida no art. 18-A, inciso I da Lei Pelé é de certa forma repetida com outra redação no art. 36, X, inciso “e” na nova Lei Geral do Esporte, e ambas impõem no máximo dois mandatos consecutivos, com prazo máximo de 04 anos. Logo, há duas prescrições na norma que não podem ser ignoradas. Uma diz respeito ao número de mandatos e a outra sobre a extensão destes mandatos, limitando-se o período de permanência a 08 anos.

Assim, ainda que se entenda que é possível uma nova recondução, é inegável que o atual Presidente, se eleito, extrapolará o prazo de permanência no posto de dirigente máximo da organização.

Mas podemos seguir com outras considerações jurídicas que colocam em dúvida se a decisão do Comissão Eleitoral endossando a candidatura do atual Presidente encontra-se, efetivamente, em acordo à intenção da norma e ao próprio estatuto da organização.

É importante lembrar que a própria Lei 12.868/2013, ao alterar a Lei Pelé, dispôs em seu art. 18-A, §3º, inciso I, que estavam preservados o direito adquirido dos gestores que se encontravam no exercício dos cargos de dirigente máximo da organização quando da edição da alteração legislativa, resguardando seus mandatos e constituindo-se em uma verdadeira regra de transição. Logo, com o término destes mandatos, os efeitos de referido artigo foram exauridos, não sendo o caso de ultratividade da norma para atender situação fática posterior.

Assim, ao assumir o posto de vice-presidente em 2016, as normas que previam a limitação de mandato e sua extensão já encontravam-se produzindo seus efeitos, não se mostrando, salvo melhor juízo, legal uma nova recondução. Embora o COB tenha alterado seu estatuto em 2017, repetindo a limitação de mandatos, é inquestionável que a restrição decorre da lei, atingindo a organização independentemente da alteração de suas normas, já que optasse por não acolher a mudança legislativa em seu estatuto se veria privada dos recursos públicos.

Com o devido respeito às opiniões contrárias, dentro de uma ponderação de princípios, nos parece que se deva privilegiar àqueles que buscam uma melhoria da gestão do desporto em detrimento aos interesses individuais, sendo a nova lei geral do desporto expressa em elencar como princípio fundamental de esporte a gestão democrática, sendo a ela inerente a própria alternância de poder. Logo, a própria normatividade contida no princípio serve como parâmetro interpretativo para limitar-se a pretendida recondução do atual presidente para seu terceiro mandato.

Sopesa-se, ainda, que ao contrário do que se possa sustentar, não se pode presumir haja uma lacuna na lei sobre a validade ou não de um “mandato tampão” para fins de recondução a um novo mandato. Isso porque é intuitivo que um vice-presidente possa se tornar presidente ou dirigente máximo da organização a qualquer momento, seja por morte, renúncia ou afastamento compulsório decorrente de uma decisão de colegiada interna ou mesmo judicial, fazendo incidir sobre seu mandato herdado as vedações que atingiam seu antecessor.

O Consultoria Jurídica do extinto Ministério da Cidadania, ao manifestar-se sobre consulta formulada pela Secretaria Especial de Esporte sobre temática similar foi cirúrgica no parecer 00052/2021/CONJUR-MC/CGU/AGU, sustentando que como o vice-presidente de uma organização desportiva, em face da vacância definitiva do titular, assumiu de forma definitiva e efetiva o cargo de presidente, esse mandato deve ser computado como o primeiro, sendo possível apenas que dispute um único período subsequente. Segue argumentando que, dessa forma, não poderá, caso seja eleito para o mandato subsequente, disputar sua própria reeleição, já que, se fosse vitorioso, estaria exercendo o seu terceiro mandato, o que é vedado.

Nota-se que a Advocacia Geral da União, além de restringir sua manifestação ao princípio da legalidade estrita, já que não há previsão na Lei Pelé que permita um terceiro mandato, se limitou a cumprir os ditames do inciso XIII do art. 2º da lei 9.784/98, que regula o processo administrativo no âmbito federal, segundo o qual deve-se interpretar a norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, que neste caso é a preservação dos princípios da melhor governança com a garantia da limitação de mandatos e alternância de poder.

Logo, a eleição do atual presidente do Comitê Olímpico do Brasil para um terceiro mandato poderá cair como um meteoro no sistema desportivo nacional, o qual se verá privado do recebimento dos recursos públicos ante a ausência de cumprimento dos requisitos do art. 18 e 18-A, da Lei Pelé.  

Para desviar-se da observância das regras do art. 18 e 18-A da Lei Pelé, reiterados no art. 36 da Lei 14.597/2023, também conhecida como nova Lei Geral do Esporte, observa-se a utilização reiterada de um argumento, já há muito superado pelo Tribunal de Contas da União, como por exemplo no acórdão em plenário 422/2020, de que os recursos provenientes dos concursos de prognósticos seriam próprios das organizações desportivas e, portanto, privados.

Utiliza-se a extraorçamentalidade dos recursos arrecadados com os concursos de prognósticos pela Caixa Econômica Federal e a transferência compulsória desses valores por força da lei 13.756/18, para organizações desportivas como um recurso retórico para se negar a origem pública do recurso e, por consequência, esquivar-se do cumprimento dos requisitos exigidos em lei para a percepção de tais recursos.

Não obstante, nos parece incontestável que sendo a Caixa Econômica Federal uma empresa pública de propriedade da União, as rendas auferidas são igualmente públicas, ainda que não integrem o orçamento da União. É o que se extrai do próprio decreto lei 200/1967, que inclui as empresas públicas no rol de entidades da administração indireta. Não por outra razão, além do desporto, a lei 13.756/18, destina parte dos recursos dos concursos de prognósticos ao desenvolvimento de outras políticas públicas como segurança e sistema prisional. Portanto, nos parece sofisma o argumento de que tais recursos são privados.

É bom rememorar que o Comitê Olímpico do Brasil já esteve ameaçado anteriormente de ter seus repasses de recursos públicos suspensos após o Ministério Público Federal no Distrito Federal ter constatado o descumprimento de outras condições previstas no mesmo art. 18 e 18-A, provocando a ausência de certificação do Ministério, orientando a administração pública, por meio da recomendação ministerial 41/2020, a cessar os repasses até a regularização da entidade junto ao Ministério da Cidadania sob pena do ajuizamento de ação civil pública.

Feitas estas considerações não é possível excluir-se do conceito de repasses de recursos públicos federais da administração direta e indireta mencionado no art. 18 da Lei Pelé, os repasses das loterias da Caixa cujo início ocorreu há mais de duas décadas com a edição da Lei Agnelo Piva. 

Conclui-se, ao fim, que ao confirmar-se a candidatura e eventual vitória do atual Presidente num terceiro mandato e, mantendo-se o posicionamento já externado pela Advocacia da União anteriormente, apontando para um reconhecimento de violação do inciso I, do art. 18-A da Lei Pelé e art. 36, X, inciso i, da Lei Geral do Esporte e,  havendo consequentemente, o descumprimento das condições previstas para o repasse dos recursos públicos das loterias, o desporto de alto rendimento corre o risco de ver secar sua principal fonte de custeio e investimento, já que a suspensão dos repasses do COB atinge indistintamente todo sistema olímpico, jogando-o para o centro de um furacão que sem dúvida atrairá a atenção dos órgãos de controle que terão seus entendimentos construídos ao longo de anos colocados à prova.

É aguardar para ver, mas nuvens de tempestade se avizinham e possivelmente o sistema olímpico passará por turbulências em breve. A indesejável judicialização quer nos tribunais, quer nas cortes arbitrais é fato que não se pode desconsiderar. 

Mas, independentemente de quem vença o escrutínio, uma coisa é certa, já temos dois grandes perdedores: O esporte e a democracia desportiva.

Raimundo da Costa Santos Neto
Subprocurador-Geral do Distrito Federal, advogado e mestre em Direito Econômico.

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