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In dubio pro societate e "nemo tenetur se detegere" face ao reconhecimento de pessoas no rito do júri

Paradigma entre o reconhecimento pessoal e In dubio pro societate e nemo tenetur se detegere.

2/10/2024

O (não) princípio do in dubio pro societate submete ao crivo de julgadores leigos causas cuja fragilidade levaria o próprio juiz togado a absolver o réu.

Nesse sentido, entendemos mais acertada a corrente que defende que nossa ordem jurídica não recepcionou tal princípio de que a dúvida deve ser interpretada contra o réu, entre eles Aury Lopes Júnior 1 e Guilherme de Souza Nucci2.

Não é benéfico para a sociedade a punição ou a assunção do risco de punir pessoas inocentes e da qual a dúvida razoável não restou satisfatoriamente afastada no caso concreto.

Não é viável acreditarmos e afirmamos que a CF/88 pode ao mesmo tempo prever a presunção de inocência e que a ausência de provas deve favorecer o réu e em contrapartida se contradizer favorecendo a acusação quando duvidosa a autoria.

O in dubio pro reo é o verdadeiro princípio constitucional, ligado a presunção de inocência incidindo igualmente em todas as fases do processo do júri. Nesse sentido, mesmo que não se exija para a pronúncia a certeza quanto a autoria, os indícios na primeira fase de pronúncia precisam ser fortemente corroborados, com alto grau de probabilidade, por provas claras e convincentes de autoria, o que entendemos que o reconhecimento de pessoas isolado não atende, principalmente se feito de forma irregular.

Para se ter uma ideia, o receptor, no caso o julgador, recebe a informação de terceira pessoa, vítima ou testemunha, que determinado suspeito foi o autor do fato, sendo impossível analisar a mente e memória do reconhecedor para ter certeza que aquilo de fato corresponde à verdade.

O julgador é levado a cena do fato delituoso e a sua autoria somente pela mente e lembranças de interposta pessoa, e, nesse caso, se não houver nenhum outro elemento externo a mente humana do reconhecedor é praticamente impossível ter um controle efetivo para minimizar os riscos de potenciais falhas e injustiças.

Não é possível garantir a credibilidade, confiabilidade e qualidade da prova isoladamente para subsidiar uma decisão, exceto no reconhecimento ilegal onde a falta de qualidade e credibilidade é objetiva e evidente sequer podendo ser valorada.

Face as facetas e fragilidades da memória humana e o risco de erros e injustiças graves, o reconhecimento de pessoas mesmo que legitimamente efetuado deve ser corroborado por outros elementos de prova de autoria, não sendo suficiente por si só para embasar a pronúncia (primeira fase) e submeter o réu ao conselho de sentença (segunda fase).

Nesse caso, se isolado, entendemos que não poderia ser utilizada nem mesmo para fundamentar a denúncia do acusado, e se ofertada pelo Estado-acusador o Estado-juiz deveria impronunciar o acusado se até a instrução não surgissem outros elementos com qualidade de subsidiar aquele reconhecimento pessoal, o que não inviabilizaria por exemplo, enquanto não ocorresse a extinção da punibilidade (pela prescrição), nova denúncia, desde que surgissem provas novas e aptas a corroborar o reconhecimento, conforme dispõe o parágrafo único do art. 414 do CPP pelo fato da impronuncia não fazer coisa julgada material.

Afastando-se assim, o famigerado e inconstitucional princípio do In dubio pro societate, criação jurisprudencial que não encontra guarida em um Estado Democrático de Direito, onde a presunção de inocência deve prevalecer filtrando e evitando a perpetuação e cometimento de injustiças.

Nem mesmo a previsão de pronuncia da guarida a dúvida ser deduzida contra o réu, na medida que o artigo 413 do CPP determina expressamente que para alguém ser submetido a julgamento popular é necessário a existência de materialidade (conjunto de elementos objetivos que demonstra que a ação criminosa ocorreu) e a existência de indícios suficientes de autoria (provas que indicam que o réu foi o autor ou partícipe do delito). Isto é, deve haver segurança que o acusado possa de fato ter sido o autor do crime.

Muito menos a soberania dos vereditos ampara que a dúvida favorece os interesses da sociedade para que alguém seja julgado pelo conselho de sentença e quem sabe punido, isso porque o interesse público é que toda decisão judicial seja segura e confiável e não carregada de dúvidas e incertezas e sem possibilidade de controle.

Nesse sentido cabe ao magistrado da primeira fase filtrar a acusação, não pode ele submeter ao conselho de sentença um julgamento em que ele mesmo não consegue garantir o mínimo de certeza de que o crime existiu ou que o acusado possa ser o autor do fato, lavando suas mãos como fez Pôncio Pilatos colocando a vida de Jesus nas mãos do povo para que esse decidisse com base em seus achismos, crenças pessoais e influencias externas se houvera crime e se o acusado era seu autor (Mateus 27:24-25 ARC), o que mancha a credibilidade, confiabilidade e segurança jurídica insculpida no art. 5º, XXXVI da CRFB.

Em outras palavras, uma decisão judicial condenatória ou de pronuncia ela tem que ter uma carga nem que seja mínima de segurança, e isso se passa quando é possível a qualquer do povo ao averiguar um caso concreto, usando o raciocínio nos elementos e narrativas ali existentes verificar que era possível chegar aquela conclusão que o julgador chegou se estivesse em seu lugar sem qualquer espaço para a incerteza (duvida razoável).

Segurança inexistente em uma decisão lastreada no “in dubio pro societate” onde não é possível efetuar qualquer raciocínio e chegar à qualquer conclusão minimamente objetiva e segura de autoria ou materialidade, ficando esse juízo de valor ao alvedrio subjetivo e imaginação de cada um.

No que tange o tema (reconhecimento), se isolado, seria apenas a palavra do reconhecedor contra a do acusado em caso de negativa de autoria, como nosso sistema jurídico não admite prova tarifada, em regra o jogo ficaria no zero a zero, pois em regra todas tem o mesmo valor, não havendo superioridade hierárquica entre umas e outras, e, nesse cenário a regra que deve prevalecer é a da presunção de inocência, qualquer decisão tomada em sentido diverso estaria lastreada de dúvidas e incertezas.

A jurisprudência tem tido um relativo avanço com as atuais decisões do STJ sobre o tema, reconhecendo a sua falta de amparo jurídico, cita se aqui o seguinte julgado, que pedimos licença para transcrever alguns trechos:

RECURSO ESPECIAL. HOMICÍDIO SIMPLES. DECISÃO DE PRONÚNCIA. IN DUBIO PRO SOCIETATE. NÃO APLICAÇÃO. STANDARD PROBATÓRIO. ELEVADA PROBABILIDADE. NÃO ATINGIMENTO. AUSÊNCIA DE INDÍCIOS SUFICIENTES DE AUTORIA OU PARTICIPAÇÃO. DESPRONÚNCIA. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.

(...).

2. Assim, tem essa fase inicial do procedimento bifásico do Tribunal do Júri o objetivo de avaliar a suficiência ou não de razões para levar o acusado ao seu juízo natural. O juízo da acusação (judicium accusationis) funciona como um importante filtro pelo qual devem passar somente as acusações fundadas, viáveis, plausíveis e idôneas a serem objeto de decisão pelo juízo da causa (judicium causae). A pronúncia consubstancia, dessa forma, um juízo de admissibilidade da acusação, razão pela qual o Juiz precisa estar “convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação” (art. 413, caput, do CPP).

(...).

4. A desnecessidade de prova cabal da autoria para a pronúncia levou parte da doutrina – acolhida durante tempo considerável pela jurisprudência – a defender a existência do in dubio pro societate, princípio que alegadamente se aplicaria a essa fase processual. Todavia, o fato de não se exigir um juízo de certeza quanto à autoria nessa fase não significa legitimar a aplicação da máxima in dubio pro societate – que não tem amparo no ordenamento jurídico brasileiro – e admitir que toda e qualquer dúvida autorize uma pronúncia. Aliás, o próprio nome do suposto princípio parte de premissa equivocada, uma vez que nenhuma sociedade democrática se favorece pela possível condenação duvidosa e injusta de inocentes. (REsp 2.091.647-DF, rel. ministro Rogerio Schietti Cruz, 6ª turma, por unanimidade, julgado em 26/9/23, DJe 3/10/23; Informativo nº 791 do STJ)

Ocorre, que na prática os juízes de piso tendem a ignorar esses parâmetros e seguem aplicando e submetendo réus ao conselho de sentença sem indícios, nem que sejam mínimos e convincentes de autoria, na primeira fase do tribunal do júri.

O princípio da não autoincriminação é um meio de defesa e sua principal função é limitar o autoritarismo e poder do Estado que já se valeu durante muito tempo de meios cruéis e de tortura como meio de obtenção de provas para alcançar a verdade real e exercer o jus puniende.

Em nosso ordenamento jurídico o réu possui o direito constitucional de não produzir provas contra si mesmo (art. 5º, LXIII da CRFB), então não poderia ser obrigado a participar do reconhecimento de pessoas, sendo que não há sequer obrigatoriedade de participar de audiência ou interrogatório policial e ser conduzido de forma coercitiva (ADPFs 395 e 444) quiçá produzir prova que pode ser prejudicial a sua pessoa.

O réu não pode ser tratado como um objeto do processo ou de produção de provas, com a atual Constituição vigente e tratados de direitos humanos do qual o Brasil faz parte ele é um sujeito de direitos e como tal deve ter todas as suas garantias fundamentais preservadas no processo legal constitucional, tal como o “nemo tenetur se deterege”.

Tais normas e formalidades legais funcionam como garantia do acusado contra abusos do poder punitivo e cometimentos de arbitrariedades por parte do Estado juiz, um Estado sem regras e sem limites se torna uma ferramenta de autoritarismo e massacre dos direitos humanos.

O nosso ordenamento jurídico proíbe a tortura e penas cruéis (art. 5º, III e XLVII da CRFB), o que seria então o reconhecimento forçado a não ser uma modalidade de tortura velada? Em que o acusado é obrigado sob pena de condução coercitiva (contra sua vontade), inclusive mediante o uso de força a oferecerem seus próprios corpos para que o Estado acusador e juiz angarie provas aptas a satisfazer seu interesse punitivo?

Aury Lopes Jr. destaca em artigo que: "O artigo 260 do CPP, no tocante à autorização da condução coercitiva do acusado para fins de reconhecimento, viola as garantias constitucionais da presunção de inocência e do direito ao silêncio, pois a presença do réu no processo é um direito, não um dever” 3.

Face a presunção de inocência como destaca o autor e professor universitário, a “carga probatória no processo penal é do acusador”, é dele (MP nas ações penais públicas ou do querelante nas ações penais privadas) a “carga da (in)existência dos elementos do delito ..., o que inviabiliza a condução coercitiva do acusado para fins de reconhecimento caso este se recuse a comparecer ao ato”. Não é nesse sentido legítimo o sacrifício ou relativização dos direitos fundamentais do réu preso ou em liberdade, “cabendo ao acusador ir atrás, diante da negativa, de outros elementos que possam sustentar sua tese acusatória”.

Embora a praxe policial e judiciária não respeite esse direito no que tange o reconhecimento de pessoas, entendemos que o réu não é obrigado a fornecer uma fotografia sua para que o Ministério Público providencie o ato de reconhecimento, e igualmente não pode ser coagido a integrar presencialmente um perfilamento.

Em respeito a esse direito e garantia fundamental, a autoridade policial deveria comprovar a voluntariedade e ausência de coação do acusado no reconhecimento feito em delegacia, e se não o fizesse a prova deveria ser nula.

Se no direito civil, onde os direitos são disponíveis, considera-se a voluntariedade do agente, onde sua ausência conduz a nulidade das relações civis, quiçá no direito penal, onde os direitos são indisponíveis pois se referem e dizem respeito a seus direitos e garantias fundamentais inegociáveis. 

Já o juiz na fase judicial, ao permitir a violação desse direito contrariando o desejo do réu em não ser objeto de reconhecimento pessoal, a defesa deve pugnar para que seja colocado em ata, pois tal situação ao nosso ver independente de qual seja o entendimento majoritário, conduz a nulidade do ato e da prova que não poderá ser admitida.

Devemos mencionar ainda que no rito do tribunal do júri, além das garantias acima mencionadas ainda temos a plenitude de defesa, que nesse rito tem uma especial relevância devido o acusado estar submetido a julgamento por seus pares, devendo ser garantido que sua defesa no processo seja além de ampla, eficaz e abrangente, com todos os meios e recursos necessários para a proteção de seus direitos.

Nesse rito, onde os jurados julgam com base em sua intima convicção, sem a necessidade de fundamentar suas conclusões, podendo apoiar sua convicção em determinado meio de prova em detrimento de outro, um reconhecimento mal feito, equivocado ou falho pode ser fatal, o que torna primordial a garantia plena e integral de proteção aos direitos individuais dos acusados, entre eles o direito a não produzir provas contra si mesmo, tendo em vista a potencial falibilidade desse meio de prova e risco de condenações injustas, assim mantendo a confiança do público no sistema de justiça.

A decisão do júri em regra é final e irrecorrível e uma condenação injusta com base em um reconhecimento de pessoas a depender do caso pode ser imutável, tornando ainda mais importante que todas as garantias processuais sejam rigorosamente respeitadas para reduzir esse risco.

________

1 Lopes Jr., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 8. ed. Rio de Janeiro: Lumen, 2011. p. 528.

2 Nucci, Guilherme de Souza. Tribunal do júri. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 87.

3 O réu é obrigado a participar do reconhecimento pessoal? Acesso em: 20/07/2024.

Flávio Viana
Advogado Criminalista. Sócio do Escritório VLB Advogados Associados. Pós Graduado em Direito e Processo Penal. Especialista em Tribunal do Júri e Execução Penal. Escritor e Palestrante.

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