Na última terça, 10/9, as autoridades fiscais inglesas publicaram nova orientação tratando de melhores práticas para que contribuintes estabeleçam e documentem suas políticas de transfer pricing.1
Além de reiterar a necessidade de que transações intercompany reflitam operações “comercialmente racionais”, a orientação trouxe a recomendação de que sejam fornecidos contratos escritos e assinados, contemporaneamente às transações, para as evidenciar.
Parecem dois lados da mesma moeda: se por um lado, uma transação intercompany que esteja devidamente documentada por acordo assinado, mas que não respeite o Arm’s Lenght, pode ser ajustada ou desconsiderada para fins de preços de transferência, por outro, uma operação em Arm’s Lenght que não esteja devidamente documentada também poderia ser questionada. Mas poderia mesmo? Até que ponto a ausência de documento escrito formalizando uma operação pode levar a uma desconsideração da operação que respeite o ALP?
A análise de decisões europeias, especialmente no contexto atual, em que o Brasil acabou de renovar sua legislação de preços de transferência para se adequar aos padrões da OCDE, é importante por revelar tendências que podem ser adotadas pelo fisco brasileiro. Analisemos, então, de que forma tal orientação conversa com as normas brasileiras.
Primeiramente, no Brasil, o “teste da racionalidade comercial” aparece no artigo 8º da lei 14.596/23:
Art. 8º Para fins do disposto nesta Lei, quando se concluir que partes não relacionadas, agindo em circunstâncias comparáveis e comportando-se de maneira comercialmente racional, consideradas as opções realisticamente disponíveis para cada uma das partes, não teriam realizado a transação controlada conforme havia sido delineada, tendo em vista a operação em sua totalidade, a transação ou a série de transações controladas poderá ser desconsiderada ou substituída por uma transação alternativa, com o objetivo de determinar os termos e as condições que seriam estabelecidos por partes não relacionadas em circunstâncias comparáveis e agindo de maneira comercialmente racional.
E, na regulamentação, o teste da racionalidade comercial aparece no art. 19 da IN RFB nº 2161/2023:
Art. 19. Para fins do disposto nesta Instrução Normativa, quando?se concluir que partes não relacionadas, agindo em circunstâncias comparáveis e comportando-se de maneira comercialmente racional, considerando as opções realisticamente disponíveis para cada uma partes, não teriam realizado?a transação controlada conforme delineada, tendo em vista a operação em sua totalidade, a transação ou a série de transações controladas poderá ser desconsiderada ou substituída por uma transação alternativa com o objetivo de determinar os termos e as condições que seriam estabelecidos por partes não relacionadas em circunstâncias comparáveis e agindo de maneira comercialmente racional.
Desde a publicação da nova Lei de TP, o art. 8º suscitou grandes discussões por parecer, nadar e grasnar como uma norma geral antielisiva – as quais não são admitidas pelo sistema tributário brasileiro, a teor do que foi decidido pelo STF no julgamento da ADI 2446 sobre a constitucionalidade do parágrafo único do art. 116 do CTN.
Mesmo desconsiderando o contexto jurisprudencial, a utilização do art. 8º como uma norma geral antielisiva não seria aceitável: impera, para fins de análises de preços de transferência, o princípio “as-structured”: deve-se prestigiar a transação controlada tal como foi estruturada.
Dessa forma, a melhor interpretação da norma é a que consagra a orientação da OCDE constante no Par. 1.142 das Guidelines: “a consideração de preços de transferência não deve se confundir com a consideração de problemas de fraude fiscal ou elisão fiscal, mesmo que políticas de preços de transferência possam ser utilizadas para tais finalidades”. Assim, se a transação atende ao princípio Arm’s Lenght, mesmo que gere economia tributária, não poderia ser questionada com fulcro na legislação de preços de transferência.
É dizer: o “teste da racionalidade comercial” é uma excepcionalidade prevista na lei para permitir e justificar a realização de ajuste estrutural.
No que tange à necessidade de acordos escritos para que transações intercompany sejam consideradas válidas, reitera-se a pergunta feita acima: até que ponto a falta de um documento formal por escrito pode resultar na invalidação de uma operação intercompany que esteja em conformidade com o princípio Arm’s Lenght? Não deveria, afinal, prevalecer a substância sobre a forma?
A tendência de exigir contratos escritos para que operações intragrupo sejam consideradas válidas já existe entre as autoridades fiscais brasileiras: é ver, por exemplo, autuações envolvendo contratos de mútuo intragrupo. As autoridades exigem não somente contrato escrito, como também que seu registro em cartório à época do negócio.
Mas aqui também há espaço para otimismo. Ainda tomando por base a jurisprudência sobre mútuo intercompany, é possível notar que a jurisprudência administrativa reconhece que é possível comprovar a realização do negócio jurídico por meio de registros que demonstrem que ele foi efetivamente realizado.
É ver, exemplificativamente, o recente julgado do CARF, em que se reconhece a necessidade de comprovar o mútuo ou pelo contrato registrado ou por comprovação da efetiva realização de empréstimo:
MÚTUO. REQUISITOS PARA COMPROVAÇÃO. IMPROCEDÊNCIA. O negócio jurídico de mútuo deve ser comprovado por contrato registrado em cartório à época do negócio, ou por meio de registros que demonstrem que a quantia foi efetivamente emprestada e que posteriormente foi retornado o mesmo montante, ou acrescida de juros e/ou correção monetária. O contrato particular de mútuo, por si só, não tem condições absolutas de comprovar a efetividade da operação, devendo estar lastreado por elementos que comprovem a sua existência material. OMISSÃO DE RENDIMENTOS. SIMULAÇÃO. CONTRATO DE MÚTUO. Ausentes os requisitos para a validade do contrato de mútuo e evidenciada a fraude e a simulação por parte do Contribuinte e de sua empresa, os valores podem ser considerados como rendimentos definitivos e estão sujeitos à tributação, sob pena de omissão de rendimentos. (CARF, Acórdão nº 2401-011.540 de 2024)
Também no acórdão 106-12197 de 2001, o CARF reconheceu que “Cabe ao Fisco desconstituir a veracidade do contrato por instrumento particular, válido até prova em contrário, uma vez que não é da substância do ato a sua lavratura por instrumento público e seu registro em Cartório, uma vez retratando operação de mútuo entre as partes e que, não pode ser desconsiderado com base em meros argumentos subjetivos baseado na concepção da autoridade fiscalizadora, sem fundamento em fatos comprovados no caso.” Consagrou-se justamente a substância da operação sobre a formalidade exigida na autuação.
De forma ainda mais clara no acórdão 2102-000.446 de 2009: “a ausência de registro de contratos de mútuos perante o Cartório de Títulos e Documentos, por si só, não é meio hábil para arrostar o negócio jurídico que se quer provar, quando houver outros documentos que demonstrem de forma insofismável a ocorrência da avença, situação que autoriza o fisco a considerar tal negócio jurídico.”
Assim, percebe-se que a recomendação inglesa conversa quase integralmente com o cenário brasileiro – o que é tanto um reflexo da adoção dos padrões internacionais pelo Brasil como um indicativo de como serão as discussões por aqui. Embora o ideal seja o atendimento integral das melhores práticas, o preciosismo com seu cumprimento deve levar em consideração a praticabilidade tributária a fim de evitar uma sobrecarga dos contribuintes. Disseram bem as autoridades do Reino Unido: “O risco ao Reino Unido leva à adoção de melhores abordagens, que são diretamente influenciadas pela dimensão e complexidade do negócio e pelo nível de risco inerente nas abordagens de preços de transferência. (…)”.
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1 https://www.gov.uk/government/publications/help-with-common-risks-in-transfer-pricing-approaches-gfc7