A teoria da perda do tempo útil vem ganhando destaque no cenário jurídico brasileiro como um desdobramento da tutela dos direitos do consumidor, especialmente no que concerne à dignidade da pessoa humana e à eficiência na prestação dos serviços. Esta teoria se fundamenta no reconhecimento de que o tempo, como bem jurídico, é insuscetível de reposição, sendo seu desperdício uma violação aos direitos dos consumidores, passível de reparação. O presente artigo objetiva uma análise aprofundada dessa teoria, com base em princípios constitucionais, legislações pertinentes, doutrinas e jurisprudência consolidada, além de propor novos argumentos para o aprimoramento dessa construção jurídica.
1. Fundamentação Constitucional e Princípios Aplicáveis
A CF/88 consagra em seu art. 5º, inciso X, o direito à indenização por danos morais, sendo este conceito ampliado pela doutrina e jurisprudência para abarcar situações onde a dignidade da pessoa humana, princípio fundante do Estado Democrático de Direito (art. 1º, III), é lesada em sua integridade, como ocorre nos casos de perda de tempo útil.
O princípio da dignidade da pessoa humana permeia a relação de consumo, sendo também expresso no CDC (lei 8.078/90) no art. 6º, incisos IV e VI, que garantem a reparação de danos morais e materiais e a prevenção de danos patrimoniais e extrapatrimoniais. Nessa linha, o tempo é cada vez mais visto como um bem econômico e social, de tal forma que o seu desperdício em decorrência da má prestação de serviços ou de abusos contratuais configura violação desses direitos.
2. A Perda do Tempo Útil como Dano Moral Autônomo
A teoria da perda do tempo útil sustenta que o tempo, em uma sociedade cada vez mais acelerada e competitiva, deve ser tratado como um bem jurídico de valor intrínseco. Nesse sentido, não se trata meramente de uma insatisfação subjetiva do consumidor, mas de um verdadeiro dano moral autônomo, decorrente da lesão ao tempo pessoal, familiar ou profissional, que poderia ser empregado de maneira produtiva ou de lazer.
Doutrinadores como Cláudia Lima Marques defendem que a perda do tempo útil deve ser entendida como uma nova categoria de dano moral, pois, ao privar o indivíduo de um bem irrecuperável, afeta diretamente sua dignidade. A partir da aplicação do princípio da confiança e da boa-fé objetiva (art. 422 do Código Civil), impõe-se ao fornecedor o dever de não abusar da posição contratual, causando ao consumidor desperdício de seu tempo em tentativas frustradas de resolver problemas criados pela própria má prestação de serviços.
3. Jurisprudência Recente e a Consolidação da Teoria
Nos últimos anos, a jurisprudência dos Tribunais Superiores tem sido essencial para a consolidação da teoria da perda do tempo útil. O STJ, em diversas decisões, tem reconhecido o direito à reparação por perda de tempo útil, especialmente em casos envolvendo consumidores submetidos a desgastes excessivos para resolver problemas causados por prestadores de serviços ou fornecedores de produtos defeituosos.
A título de exemplo, no REsp 1.634.851/SP, o STJ entendeu que a exigência de um consumidor passar por diversos atendimentos telefônicos para cancelar um serviço, sem sucesso, configurava uma ofensa à dignidade e ao direito ao tempo livre, ensejando reparação por danos morais. Nesta decisão, o ministro relator destacou que a reparação não se funda apenas na má prestação do serviço, mas no tempo injustamente perdido pelo consumidor.
Ainda no REsp 1.737.412/SP, o Tribunal reafirmou que o tempo despendido pelo consumidor na tentativa de solucionar problemas de consumo, muitas vezes sem sucesso, é passível de indenização, configurando verdadeiro dano moral. Nessa decisão, o ministro também sublinhou que a perda do tempo útil não deve ser tratada como uma ofensa meramente subjetiva, mas como um dano mensurável e reparável.
4. Novos Argumentos para Ampliação e Refinamento da Teoria
A teoria da perda do tempo útil, embora já consagrada no campo das relações de consumo, ainda enfrenta desafios no reconhecimento de sua aplicabilidade em outras áreas do direito. Um campo que merece destaque é o Direito Trabalhista, onde o tempo do trabalhador, muitas vezes desperdiçado por procedimentos ineficientes ou abusivos da empresa, poderia ser reparado com base nos mesmos fundamentos utilizados na tutela do consumidor.
Ademais, a introdução de uma metodologia mais objetiva para a quantificação desse tempo perdido seria uma contribuição significativa para o aprimoramento da teoria. A aplicação de critérios de razoabilidade e proporcionalidade, aliada à fixação de parâmetros mínimos de indenização, poderia garantir maior segurança jurídica e uniformidade nas decisões. Aqui, propõe-se que a jurisprudência adote, além do critério da extensão do tempo perdido, a análise do impacto sobre a vida do consumidor, considerando fatores como a perda de compromissos profissionais ou pessoais importantes.
5. Súmulas e Precedentes Vinculantes: O Papel do STJ e do STF
Embora a teoria da perda do tempo útil ainda não tenha sido objeto de súmula vinculante, o STJ já caminha na direção de estabelecer precedentes que possam uniformizar o entendimento dos Tribunais Estaduais. A adoção de uma súmula sobre o tema seria um passo crucial para conferir maior previsibilidade e coerência às decisões judiciais, especialmente no campo do direito do consumidor, onde há uma multiplicidade de casos semelhantes envolvendo perda de tempo em razão de falhas na prestação de serviços.
O STF, por sua vez, ainda não foi provocado a se manifestar diretamente sobre a constitucionalidade da teoria da perda do tempo útil. No entanto, tendo em vista o reconhecimento da dignidade da pessoa humana e do direito ao tempo livre como bens constitucionais, há espaço para que a Corte Suprema reconheça essa teoria como uma extensão dos direitos fundamentais.
6. Diversidade Doutrinária e Aplicabilidade no Código de Defesa do Consumidor (CDC)
A perda do tempo útil, como categoria autônoma de dano moral, é amplamente debatida por diversos doutrinadores. Flávio Tartuce explora a dimensão subjetiva e objetiva do tempo, destacando que a má prestação de serviços e a espera excessiva configuram violação aos direitos da personalidade. Segundo Tartuce, o tempo, tal como a honra e a imagem, é um bem imaterial vinculado à dignidade da pessoa humana, sendo a sua lesão passível de reparação. Nelson Rosenvald, por sua vez, adota uma perspectiva mais pragmática ao defender que a perda do tempo útil não deve ser tratada apenas como uma ofensa à dignidade, mas também como um dano patrimonial reflexo, em razão do impacto econômico que o desperdício de tempo gera, especialmente em sociedades urbanas e dinâmicas. Carlos Alberto Bittar complementa essa linha de pensamento ao destacar que o tempo, sendo um recurso escasso, possui valor intrínseco em uma economia moderna, justificando sua tutela jurídica. Esses autores convergem na ideia de que o desperdício de tempo, em razão de falhas na prestação de serviços, agrava a relação de consumo, devendo ser tratado de maneira específica e autônoma dentro do sistema de responsabilidade civil.
7. Aplicabilidade no Código de Defesa do Consumidor (CDC)
A teoria da perda do tempo útil se insere perfeitamente no âmbito das relações de consumo, sendo uma extensão do princípio da vulnerabilidade do consumidor, consagrado no art. 4º, inciso I, do CDC. A doutrina majoritária, como bem exposto por Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin, defende que o CDC deve ser interpretado de forma a garantir o máximo de proteção ao consumidor, considerando que este se encontra em posição de desvantagem técnica, jurídica e econômica em relação ao fornecedor. Nessa perspectiva, o tempo despendido pelo consumidor em tentativas frustradas de resolver problemas decorrentes de vícios ou defeitos na prestação de serviços constitui uma violação da boa-fé objetiva e da função social do contrato (art. 51, IV, CDC), gerando, portanto, o direito à reparação por dano moral.
Além disso, o art. 6º, inciso VI, do CDC, garante ao consumidor a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais e coletivos. A doutrina de Leonardo Roscoe Bessa ressalta que a interpretação dessa norma deve abranger a perda do tempo útil, uma vez que o desgaste causado ao consumidor na solução de problemas que deveriam ser resolvidos com eficiência pelo fornecedor representa uma afronta ao direito à dignidade e ao respeito previstos no mesmo dispositivo legal (art. 6º, inciso IV, CDC).
Essa aplicação ganha respaldo na jurisprudência do STJ, que reiteradamente tem reconhecido que o tempo perdido pelo consumidor em interações repetitivas e ineficazes com prestadores de serviços ou fornecedores é uma ofensa à dignidade e à confiança depositada no serviço contratado, ensejando reparação civil. Tal entendimento reforça a proteção do consumidor como parte hipossuficiente, ampliando o rol de danos indenizáveis e reafirmando a importância da teoria da perda do tempo útil no campo do direito do consumidor.
8. Conclusão
A teoria da perda do tempo útil, apesar de recente, já está consolidada no cenário jurídico brasileiro, especialmente no campo das relações de consumo. Com base em princípios constitucionais, como a dignidade da pessoa humana, e em normas de boa-fé objetiva, o reconhecimento do tempo como um bem jurídico a ser protegido impõe ao fornecedor o dever de eficiência e de respeito ao consumidor.
A doutrina e a jurisprudência, especialmente as decisões do STJ, têm avançado no sentido de reconhecer a perda do tempo útil como um dano moral autônomo, suscetível de reparação. Todavia, ainda há desafios a serem superados, como a ampliação da aplicabilidade da teoria para outras áreas do direito e a criação de critérios objetivos para a mensuração do tempo perdido.
Portanto, a evolução da teoria demanda uma atuação mais ativa dos Tribunais Superiores, com a possível criação de uma súmula vinculante sobre o tema, além do desenvolvimento de parâmetros para quantificação desse tipo de dano. Esse caminho permitirá maior segurança jurídica e uma tutela mais efetiva dos direitos dos consumidores e cidadãos.
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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Código de Defesa do Consumidor. Lei n.º 8.078, de 11 de setembro de 1990.
BRASIL. Código Civil. Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). REsp 1.634.851/SP. Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, julgado em 22/08/2017.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). REsp 1.737.412/SP. Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 13/06/2019.