Migalhas de Peso

Formalidades – um mal?

Efeitos psicológicos e indiretos da forma.

25/9/2024

Vivemos em uma época em que a simplificação das formas parece ser a cura para todos os males. Verdadeira panaceia defendida por simplificadores radicais, alguns por convicção, outros por interesses não declarados. "Esse movimento tem gerado reações igualmente radicais, com efeitos quase tão prejudiciais quanto os da simplificação ilimitada''. 

Como quase sempre, a correção está no meio do caminho. Se é certo que algumas formalidades não mais possuem cabimento no mundo atual, sobretudo devido às evoluções tecnológicas, também é certo que muitas, com adequações pertinentes, "essenciais para a manutenção de um ambiente social e negocial saudável, sobretudo na dos "hipossuficientes e diante de eventual desequilíbrio informacional.

As formas nos atos jurídicos, ou seja, as formalidades exigidas para a validação de determinados negócios ou atos, têm objetivos fundamentais que visam garantir a segurança e a estabilidade das relações jurídicas. Entre esses objetivos, destacam-se:

  1. Segurança jurídica: As formas garantem clareza, precisão e publicidade nos atos jurídicos, evitando ambiguidades e incertezas. Elas permitem que as intenções das partes sejam devidamente expressas, documentadas e respeitadas, diminuindo o risco de litígios futuros.
  2. Proteção das partes envolvidas: Ao exigir certos requisitos, o direito protege as partes contra possíveis fraudes, erros ou coações, assegurando que todos os envolvidos compreendam e consintam com os termos do negócio ou ato realizado.
  3. Previsibilidade e estabilidade: A observância dos critérios estabelece padrões claros sobre como os atos jurídicos devem ser praticados, o que confere previsibilidade ao sistema legal. Isso cria confiança entre os cidadãos e as instituições, pois garante que atos jurídicos realizados de acordo com o processo prescrito terão validade e eficácia.
  4.  Controle e fiscalização: A forma facilita o controle estatal e a fiscalização dos atos jurídicos, garantindo que eles respeitem as normas legais e a ordem pública. Isso é especialmente importante em negócios que envolvem interesses mais amplos, como contratos públicos ou atos que afetam terceiros.
  5. Solenidade e seriedade: Em certos casos, o procedimento contribui para reforçar o caráter solene e a seriedade do ato jurídico, principalmente quando envolve questões de grande relevância, como a celebração de casamentos, a outorga de testamentos ou a transferência de propriedades.

Esses objetivos evidenciam que as formas não são meros detalhes burocráticos, mas instrumentos essenciais para garantir a validade, eficácia e legitimidade dos atos jurídicos.

Pois bem, boa parte desses objetivos já foi exaustivamente explorada. Bem por isso, vamos focar agora em um objetivo/efeito pouco explorado pelos estudiosos e, por conseguinte, pouco conhecido pela população: estou falando dos efeitos psicológicos e indiretos das formas e solenidades.

As formalidades legais, como a exigência de uma escritura pública na compra de um imóvel ou a celebração formal de um casamento, desempenham um papel crucial na forma como as pessoas percebem e se comprometem com os atos que estão realizando. Esses procedimentos legais não são apenas burocracias a serem cumpridas; são ferramentas que amplificam a seriedade e a importância das decisões e compromissos assumidos.

  1. Reflexão e consciência: Quando um ato, como a compra de uma propriedade ou o casamento, exige formalidades específicas, ele força os indivíduos a refletir profundamente sobre a decisão que estão tomando. O processo de cumprimento das exigências legais, como a leitura e assinatura de uma escritura pública ou a preparação de um casamento civil, requer atenção detalhada e, muitas vezes, o aconselhamento de profissionais, como advogados ou notários. Isso cria um momento de pausa e reflexão, em que as partes envolvidas podem avaliar as implicações a longo prazo de suas decisões. "Essa necessidade de preparação e verificação reforça a ideia de que o ato não é trivial, mas sim um compromisso sério e de longo prazo. Em reforço a isso. Quando chamadas a cumprir formalidades, as pessoas tendem a ser mais cautelosas e a refletir mais profundamente sobre suas decisões." Isso leva a uma maior conscientização dos riscos e das implicações legais, o que, por sua vez, pode prevenir comportamentos impulsivos ou negligentes que poderiam resultar em litígios.
  2. Compromisso e responsabilidade: A formalização de um ato legalmente vinculante também reforça o senso de compromisso e responsabilidade. Quando as pessoas são chamadas a participar de um processo formal, seja assinando documentos ou participando de cerimônias oficiais, isso não apenas legaliza o ato, mas também carrega um peso simbólico. Por exemplo, a assinatura de um contrato de compra de imóvel ou de um registro de casamento não é apenas um ato jurídico; é uma afirmação pública de responsabilidade e compromisso. Esse processo ajuda a consolidar o entendimento de que as decisões não podem ser tomadas de forma leviana e que há consequências jurídicas e sociais para as ações realizadas. A formalidade, portanto, serve para destacar a seriedade do ato, levando as pessoas envolvidas a se sentirem mais comprometidas e responsáveis. Conforme mencionado anteriormente, a formalidade aumenta a percepção de seriedade e responsabilidade em relação aos atos realizados. A consciência de que um ato está formalmente lavrado e tem consequências legais concretas motiva as partes a agirem com maior responsabilidade.
  3. Validação e reconhecimento social: Outro aspecto importante é o reconhecimento social que as formalidades conferem aos atos realizados. Uma escritura pública, por exemplo, não apenas documenta a transferência de propriedade; ela valida essa transferência aos olhos da lei e da sociedade. O mesmo se aplica à celebração de um casamento, que não apenas une duas pessoas, mas o faz de forma reconhecida e respeitada socialmente. Esse reconhecimento público faz com que os indivíduos levem o ato mais a sério, pois sabem que estão realizando algo que será oficialmente e socialmente reconhecido. Essa validação externa reforça o valor do ato e aumenta a conscientização sobre a seriedade da decisão tomada.
  4. Clareza e prevenção de ambiguidades: A exigência de formalidades legais, como a escritura pública em transações imobiliárias ou em acordos comerciais, promove clareza e reduz ambiguidades. Esses documentos formalizados delineiam explicitamente os termos e condições do acordo, minimizando o risco de interpretações divergentes ou de mal-entendidos entre as partes. Quando as obrigações e expectativas são claramente definidas, as chances de desentendimentos que possam evoluir para litígios processuais são significativamente reduzidas.
  5. Documentação e evidências: Formalidades legais, como a assinatura de contratos e a celebração de atos solenes, fornecem documentação oficial que pode servir como evidência em caso de disputas. Essa evidência é essencial para a prevenção de litígios, pois estabelece um registro claro e verificável do que foi acordado entre as partes. Em situações de conflito, a existência de documentos formalmente reconhecidos pode facilitar e incentivar a resolução extrajudicial de disputas, uma vez que ambas as partes têm acesso às mesmas informações e podem basear suas negociações em fatos concretos.
  6. Resolução extrajudicial de conflitos: A formalidade também pode contribuir para a resolução extrajudicial de conflitos, uma vez que a existência de documentação formalizada oferece uma base clara para negociações. Quando as partes envolvidas sabem que há registros oficiais do que foi acordado, é mais provável que busquem resolver disputas de maneira amigável, sem recorrer ao judiciário. A observância de normas, assim, atua como um dissuasor de litígios, incentivando soluções mais rápidas e menos dispendiosas.
  7. Fortalecimento da confiança interpessoal: Um estudo da PLOS ONE - Public Library of Science aborda a relação entre a confiança institucional e a confiança interpessoal, mostrando como as instituições formais podem reduzir a incerteza social e, assim, promover maior confiança entre as pessoas. De acordo com essa pesquisa, instituições que estabelecem normas e expectativas claras podem fornecer uma sensação de segurança, o que contribui para que os indivíduos confiem mais uns nos outros durante interações sociais e transações. Em outras palavras, fontes acadêmicas indicam que o uso de sistemas e procedimentos formais pode reduzir a incerteza e aumentar a confiança entre indivíduos. Essa conclusão está relacionada à forma como as as normas e instituições oferecem segurança e previsibilidade, permitindo que as partes se sintam mais protegidas e, consequentemente, confiantes nas transações.

Portanto, as formalidades legais afetam profundamente a psicologia dos indivíduos envolvidos em transações ou atos jurídicos. Ao exigir procedimentos formais, como a leitura e assinatura de escrituras ou a realização de cerimônias oficiais, reforça-se nos indivíduos a seriedade e o compromisso com as decisões tomadas.

As formalidades legais são mais do que mera burocracia; elas são essenciais para a integridade e eficácia das relações jurídicas e sociais. Elas não só promovem a seriedade e a reflexão nas decisões, como também são fundamentais para a prevenção de litígios, proporcionando a clareza e a segurança necessárias para evitar disputas judiciais. A implementação e observância dessas formalidades são, portanto, cruciais para a estabilidade jurídica e a harmonia social.

Após essa conclusão, voltemos ao início deste artigo. As formalidades estão longe de serem o mal que os radicais da ampla simplificação apontam. As formalidades atuais também estão longe de atender a algumas situações da vida moderna e não devem permanecer imutáveis, como gritam os formalistas radicais. É a hora de se fazer um debate sério e qualificado, com base em evidências, com a pluralidade de perspectivas, com respeito, ética, objetividade e clareza, mas sobretudo, com a assunção pública dos interesses por parte daqueles que os defendem até o momento de forma não declarada.

Afinal, a virtude está no meio.

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