Em 2008, o STF julgou a ADIn 3.887, que tinha como objeto a declaração de inconstitucionalidade dos incisos II e III do art. 7°, da lei do estado de SP 11.331/02, que tem a seguinte redação:
“Artigo 7º - O valor da base de cálculo a ser considerado para fins de enquadramento nas tabelas de que trata o artigo 4º, relativamente aos atos classificados na alínea "b" do inciso III do artigo 5º, ambos desta lei, será determinado pelos parâmetros a seguir, prevalecendo o que for maior:
I - preço ou valor econômico da transação ou do negócio jurídico declarado pelas partes;
II - valor tributário do imóvel, estabelecido no último lançamento efetuado pela Prefeitura Municipal, para efeito de cobrança de imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana, ou o valor da avaliação do imóvel rural aceito pelo órgão federal competente, considerando o valor da terra nua, as acessões e as benfeitorias;
III - base de cálculo utilizada para o recolhimento do imposto de transmissão "inter vivos" de bens imóveis.
Parágrafo único - Nos casos em que, por força de lei, devam ser utilizados valores decorrentes de avaliação judicial ou fiscal, estes serão os valores considerados para os fins do disposto na alínea "b" do inciso III do artigo 5º desta lei.”
Como se pode observar, a norma paulista se vale das cobranças de IPTU ou ITBI para determinar a taxa de emolumentos cartorários.
Dito isto, a OAB entendeu que estar-se-ia diante de uma inconstitucionalidade, devido à previsão constitucional de que taxas não podem ter base de cálculo de impostos, conforme o art. 145, §2° da CRFB/88.
O STF entendeu pela improcedência da ação, afirmando a constitucionalidade da norma supracitada.
Este artigo pretende chamar a atenção para a inconstitucionalidade de um trecho de normas estaduais que passou desapercebido na ocasião do julgamento da citada ADIn. Tal trecho é: “prevalecendo o que for maior”. Este trecho decorre das faixas que estabelecem valores mínimos e máximos para enquadramento de valores do negócio jurídico celebrado para fixação das taxas de emolumentos.
Como se pode observar, os emolumentos cartorários são referidos como taxas neste artigo, tendo em vista a sua natureza tributária, reconhecida, inclusive, pelo STF.
A jurisprudência do supremo é pacífica no sentido da natureza tributária dos emolumentos cartorários, qualificando-os como taxas remuneratórias de serviços públicos. Precedentes: Ações Diretas de Inconstitucionalidade 3.694, relator ministro Sepúlveda Pertence, acórdão publicado em 6 de novembro de 2006, e 1.444, relator ministro Sydney Sanches, acórdão veiculado no Diário da Justiça de 11 de abril de 2003.
Com o estabelecimento de que os emolumentos cartorários são taxas, eles devem seguir a natureza jurídica respectiva.
A lei que estabelece normas gerais para a fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro é a lei 10.169/00.
As normas estaduais que fixam faixas de valores encontram o seu fundamento de validade no art. 2°, °, III, “b”, da citada lei. Veja-se:
Art. 2°, III, “b”:
b) atos relativos a situações jurídicas, com conteúdo financeiro, cujos emolumentos serão fixados mediante a observância de faixas que estabeleçam valores mínimos e máximos, nas quais enquadrar-se-á o valor constante do documento apresentado aos serviços notariais e de registro.”
Evidentemente, tal previsão padece de validade constitucional, o que torna todas as normas que retiram o seu fundamento de validade dela inconstitucionais. Ainda assim, como o STF já entendeu que tais faixas são constitucionais, irei explorar a adoção, pelos Estados, do maior valor do negócio jurídico para enquadramento nas faixas, portanto, a presente discussão difere-se do julgado pelo STF na ADIn 3.887. Explico.
Uma das diferenças entre as espécies tributárias, impostos e taxas, é a base de cálculo. Nas palavras de Hugo de Brito Machado Segundo, “daí a remissão meramente didática, do art. 145, §2°, da CF/88, segundo o qual as taxas não podem ter base de cálculo própria de impostos. Afinal, se uma taxa tiver base de cálculo de imposto, também seu fato gerador será típico de imposto. Como é o fato gerador o elemento que diferencia essas duas espécies, em uma situação assim estar-se-ia diante de um imposto disfarçado.”
A lei 15.424/04, do estado de MG, tem redação similar à do estado de SP citada acima. Veja-se:
“Art. 10. Os atos específicos de cada serviço notarial ou de registro, para cobrança de valores, nos termos das tabelas constantes no anexo desta Lei, são classificados em:
§ 3º Para fins de enquadramento nas tabelas, relativamente aos atos classificados no inciso II do caput deste artigo, serão considerados como parâmetros os seguintes valores, prevalecendo o que for maior, observado o disposto no § 4º deste artigo:”
(no original não há destaque)
Conforme o art. 77 do CTN, taxas são tributos que têm como fato gerador o exercício regular do poder de polícia, ou a utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição.
Por óbvio, a taxa deve guardar relação com o custo do exercício regular do poder de polícia, ou a utilização do serviço público específico e divisível, caso contrário, não haveria nem a necessidade de se individualizar a prestação do serviço público.
Portanto, há um custo médio na prestação do serviço público que é repartido entre os beneficiários deste serviço. Este é, ou deveria ser, o quantum debeatur da taxa. Naturalmente, não é possível mensurar o custo exato do serviço público, fato gerador da taxa. Por isso, é razoável que se adote um custo médio ou uma proporção razoável.
Este raciocínio é corroborado, inclusive, pela previsão do parágrafo único do art. 1°, da lei 10.169/00. Veja-se:
“Art. 1o Os Estados e o Distrito Federal fixarão o valor dos emolumentos relativos aos atos praticados pelos respectivos serviços notariais e de registro, observadas as normas desta Lei.
Parágrafo único. O valor fixado para os emolumentos deverá corresponder ao efetivo custo e à adequada e suficiente remuneração dos serviços prestados.
(no original não há destaque)
Quando as normas estaduais adotam o maior valor dentre os estabelecidos como parâmetro para cobrar as taxas, há uma subversão da composição do critério quantitativo da regra-matriz de incidência.
Para que haja correspondência da materialidade da hipótese de incidência, com o valor razoavelmente dispendido para a prestação do serviço, que confirma a espécie taxa nos emolumentos cartorários, é evidente que o quantum debeatur deve corresponder às atividades envolvidas pelo cartório no exercício da prestação daquele serviço público, não ao preço do negócio jurídico.
Geraldo Ataliba explica a importância da base de cálculo com “o que permite confirmar estar-se ou não em presença desta ou daquela espécie tributária. Destarte, se a essência da materialidade da hipótese de incidência consiste só numa ação estatal (taxa), esta não pode ser medida por atributos a ela (ação estatal) alheios.”
Admitir esta prática prevista nas legislações estaduais é admitir que os emolumentos têm natureza tributária de imposto, pois o que se está a considerar para fins de tributação é a capacidade contributiva e não a prestação do serviço público.
Adotando exemplos do quão absurda é esta prática, poderemos considerar constitucional a seguinte situação hipotética: um cidadão brasileiro irá emitir passaporte para viajar pelo mundo. A Polícia Federal poderá cobrar a taxa de emissão de passaporte baseada em qualquer atributo alheio ao custo da prestação do serviço público, como o destino do cidadão. Ou ainda, a taxa de reconhecimento de firma será cobrada baseada no valor do negócio jurídico que está sendo celebrado. Ou a taxa de vistoria de um veículo poderá ser cobrada baseada em seu valor de mercado, ou valor de custo.
Tais exemplos apenas demonstram o quão absurda é a adoção do critério de maior valor do negócio jurídico para o enquadramento em determinada faixa para cobrança de emolumentos cartorários.
Portanto, o que se pode observar, ainda que o STF tenha julgado a citada ADIn, é que as normas estaduais padecem de constitucionalidade, tendo em vista que permitem aos cartórios adotarem medida alheia ao custo razoável da prestação do serviço para enquadramento em faixas para cobrarem os emolumentos cartorários. O trabalho e o custo para o registro ou lavratura da escritura de um imóvel não estão necessariamente ligados ao seu valor. Isto fica claro quando as leis criam possibilidades de enquadramento em faixas. O que difere o trabalho e o custo para o registro ou lavratura da escritura de um imóvel quando se adota “valor do imóvel estabelecido no último lançamento efetuado pelo Município, para efeito de cobrança de imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana” ou “preço ou valor econômico do negócio jurídico declarado pelas partes”? Respondo: nada! Apenas que o cartório saberá que poderá enquadrar o imóvel em faixa superior para cobrar mais emolumentos cartorários.
A correspondência razoável entre o valor da taxa e a prestação do serviço público está prevista na constituição, na expressão “em razão”, prevista no art. 145, II. Assim, há evidente violação constitucional e subversão da natureza tributária das taxas, especificamente os emolumentos cartorários sobre escritura e registro de imóveis.