Migalhas de Peso

"Uberizado'', o novo trabalhador avulso

O STF reconheceu a repercussão geral sobre o vínculo empregatício de motoristas de aplicativo, impactando o mercado de trabalho plataformizado no Brasil.

23/9/2024

O STF reconheceu a repercussão geral em relação à existência de vínculo empregatício entre o motorista de aplicativo e a empresa que gere algoritmicamente a mão de obra desses trabalhadores. A matéria é tratada no RE - Recurso Extraordinário 1446336 (tema 1291), e tem grande impacto no mundo do trabalho, uma vez que a decisão tende a gerar reflexos em todo o mercado de trabalho plataformizado.

O trabalho via plataforma soma, segundo o IBGE (2023), mais de 2,1 milhões de trabalhadores no Brasil, representando cerca de 2% da população economicamente ativa, que é de 101 milhões, segundo dados do IPEA (2024).

O fato é que a relação existente entre o trabalhador em plataforma e a empresa de tecnologia que faz a gestão algoritmizada da força de trabalho humana está muito longe de uma relação jurídica civilista, na qual se predomina o "pacta sunt servanda". Principalmente se considerarmos que o ingresso na plataforma de trabalho se dá com base em critérios unilaterais muito similares a um contrato de adesão ou ao próprio contrato de emprego, onde fica evidenciada a flagrante hipossuficiência do trabalhador frente às poucas plataformas que monopolizam todo o mercado mundial.

Não podemos negar o caráter disruptivo que o trabalho via plataforma gerou na sociedade moderna, representando um marco não só em mobilidade urbana, como também nos serviços de entregas, mas, infelizmente, veio junto com a precarização e desproteção trabalhista e previdenciária do trabalhador plataformado.

Por mais que a questão tenha chegado ao STF, a matéria em foco tem nítido caráter infraconstitucional, visto que não existe na constituição norma sobre a caracterização ou não do vínculo de emprego. As normas que ditam o que é ou não relação de emprego têm hierarquia infraconstitucional, e as empresas podem livremente empreender e criar novas formas de ocupação sem violar a legislação infraconstitucional que estabelece o que é ou não vínculo de emprego. Não obstante, sob o foco da competência (justiça do trabalho ou comum), essa matéria possa ser apreciada.

Noutro ponto, não há dúvidas de que o trabalho líquido em plataforma possui algumas liberdades e autonomia, que o diferencia do trabalho tradicional com vínculo de emprego, quando há jornadas pré-estabelecidas e um empregador real, ao contrário da plataforma onde o trabalhador lida diretamente com os algoritmos que gerem sua mão de obra. É inquestionável que essa nova forma de trabalho carece de normatização, principalmente se o STF entender que a relação jurídica existente é cível e não trabalhista.

Não se pode esquecer que o inciso XXXIV do art. 7º da CF/88 garante aos trabalhadores urbanos e rurais “igualdade de direitos entre o trabalhador com vínculo empregatício permanente e o trabalhador avulso”. Assim, mesmo não reconhecendo o vínculo empregatício, grande parte dos direitos garantidos ao empregado deve ser assegurada ao trabalhador plataformado se este for reconhecido como uma nova forma de trabalho avulso. Exemplos incluem férias, décimo terceiro salário, FGTS, repouso semanal remunerado, recolhimento do INSS e outros.

Não podendo esquecer que as legislações do trabalhador avulso também estabelece uma série de obrigações para o ente gestor da mão de obra, inclusive em relação aos cuidados com o meio ambiente de trabalho.  

É certo que as disruptivas modificações no modelo de trabalho decorrentes da gestão algorítmica de mão de obra necessitam de igual acompanhamento legislativo. Contudo, a velocidade das modificações sociais impostas pela digitalização do trabalho não tem igualdade de velocidade nas políticas públicas governamentais.

Nesse passo, a modalidade de pactuação de trabalho humano plataformizado, não sendo um contrato cível nem um contrato de emprego, encontra-se em um campo de lacuna do ordenamento jurídico. Pelo princípio da plenitude do ordenamento jurídico, que indica, segundo Carnelutti apud Delgado (2023), que “a ordem jurídica sempre terá, necessariamente, uma resposta normativa para qualquer caso concreto posto a exame do operador do direito”, não pode o judiciário deixar de prestar a tutela jurisdicional e dar um adequado enquadramento no ordenamento jurídico vigente.

A lei de Introdução ao CCB dispõe em seu art. 4º que: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. O art. 8º da CLT dispõe de forma similar ao citado dispositivo.

Seguindo tal raciocínio, considerando a necessidade de preenchimento da lacuna normativa verificada no presente caso concreto, faz-se necessária a integração jurídica, que no caso deve se dar pela autointegração.

É sabido que a analogia jurídica se vale de norma existente no ordenamento jurídico, que originalmente não incide sobre o fato concreto, mas que é utilizada supletivamente sobre o caso concreto para suprir a lacuna.

Nesse diapasão, leciona Delgado (2023) sobre o trabalhador avulso:

“O obreiro chamado avulso corresponde à modalidade de trabalhador eventual, que oferta sua força de trabalho, por curtos períodos de tempo entrecortados, a distintos tomadores, sem se fixar especificamente a qualquer deles. A principal distinção percebida entre o trabalhador avulso e o trabalhador eventual, entretanto, é a circunstância de sua força de trabalho ser ofertada, no mercado específico em que atua, por meio de uma entidade intermediária. Esse ente intermediador é que realiza a interposição da força de trabalho avulsa em face dos distintos tomadores de serviço; essa entidade intermediária é que arrecada dos tomadores o montante correspondente à prestação de serviços e perfaz o respectivo pagamento ao trabalhador envolvido.”

Traduzindo para o trabalho plataformizado, o trabalhador nessa modalidade tem sua força de trabalho ofertada a diversos tomadores (passageiros), sem se fixar especificamente a nenhum deles, por meio de uma empresa intermediária. Notem que, nessa linha de raciocínio, a empresa de plataforma personifica o órgão gestor de Mão de obra na iniciativa privada por meio da tecnologia, fazendo a GAMO - Gestão Algorítmica de Mão de Obra.

Não obstante as leis 12.023/09, 9.719/98 e 12.815/13 não versem especificamente sobre a intermediação privada de mão de obra avulsa por empresas de tecnologia, os modelos legislativos aplicados aos setores portuários e de movimentação de mercadorias, por meio da analogia, são perfeitamente aplicáveis ao presente caso concreto, na hipótese de não reconhecimento da relação de emprego, visto que a natureza jurídica da relação contratual e os papéis dos envolvidos possuem singular equivalência. Vejamos:

 

Leis nº. 9.719/1988 e 12.815/2013

Lei 12.023/2009

Trabalho em plataforma

Prestador dos serviços sem vínculo de emprego

Trabalhadores Portuários

Trabalhador que movimenta mercadoria

Motorista de aplicativo Uber

Intermediador

Órgão Gestor de Mão de Obra - OGMO

Sindicato da Categoria

Empresa de plataforma

Tomador

Operadores Portuários

Tomadores do serviço avulso

Consumidor (ex.:passageiro)

A lei 12.023/09 define o trabalhador avulso como aquele que, sindicalizado ou não, presta serviços de natureza urbana ou rural a diversas empresas, sem vínculo empregatício, com a intermediação obrigatória do sindicato da categoria ou do órgão gestor de mão de obra.

Os motoristas de Uber, por sua vez, são caracterizados pela prestação de serviços de transporte individual de passageiros por meio de uma plataforma digital que gamifica o trabalho, sem vínculo empregatício formal com a empresa. Eles operam de forma autônoma, escolhendo seus horários e itinerários, e atendendo a múltiplos passageiros, o que pode ser comparado à prestação de serviços a diversas empresas ou clientes tomadores.

Nesse caminho, uma das semelhanças entre os trabalhadores avulsos e os ubers, por exemplo, é que, em ambos os casos, os trabalhadores não têm um empregador único e fixo, mas sim uma série de tomadores de serviço.

Além disso, tanto os trabalhadores avulsos (já previstos por lei) quanto os motoristas de Uber desfrutam de autonomia significativa na execução de suas atividades. Os trabalhadores avulsos podem escolher quando e para quais empresas trabalhar, conforme a demanda e sua disponibilidade. Da mesma forma, os motoristas de Uber têm a liberdade de decidir seus horários de trabalho, os trajetos que querem percorrer e até mesmo recusar determinadas corridas. Essa autonomia operacional é uma característica marcante nas categorias avulsas.

Embora a natureza da intermediação seja diferente, ambos os tipos de trabalhadores dependem de um intermediário para conectar-se aos tomadores de serviço. No caso dos trabalhadores avulsos (portuários e não portuários), essa intermediação é feita por sindicatos ou órgãos gestores de mão de obra, enquanto para os motoristas de Uber, a intermediação é realizada por uma plataforma digital, gamificadora do trabalho.

Por fim, tanto os trabalhadores avulsos quanto os motoristas de Uber operam em um contexto econômico que valoriza a flexibilidade, não obstante a grande proximidade com o tipo contratual de emprego. Os trabalhadores avulsos frequentemente atuam em setores como portuário e movimentação de mercadorias, onde a demanda por trabalho pode variar significativamente. Da mesma forma, os motoristas de Uber, por exemplo, respondem a uma demanda flutuante por transporte, ajustando suas atividades conforme a necessidade dos passageiros.

Dada a inovação trazida pelo trabalho em plataforma, que ainda não possui regulamentação própria específica como os trabalhadores avulsos já reconhecidos por lei, há uma lacuna jurídica que precisa ser preenchida. A aplicação da analogia, utilizando as normas de trabalho avulso, é permite o preenchimento da lacuna legal até que haja uma regulamentação específica para os motoristas de aplicativos, garantindo igualdade de direitos dos empregado aos trabalhadores via plataforma, sem, necessariamente, ter o vínculo de emprego reconhecido, visto que o trabalhador uberizado/plataformizado possui singular semelhança com o trabalhador avulso.

__________

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA - IPEA. Carta conjunta - Maio de 2024.Disponível em: . 

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2016]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituiçao.htm.

BRASIL. Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Diário Oficial da União:, Brasília, DF, 17 jun. 1943.

BRASIL. Lei nº 9.719, de 27 de novembro de 1998.  Dispõe sobre normas e condições gerais de proteção ao trabalho portuário, institui multas pela inobservância de seus preceitos, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 30 nov. 1998.

BRASIL. Lei nº 12.023, de 27 de agosto de 2009. Dispõe sobre as atividades de movimentação de mercadorias em geral e sobre o trabalho avulso.. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 28 ago. 2009.

BRASIL. Lei nº 12.815, de 5 de junho de 2013. Dispõe sobre a exploração direta e indireta pela União de portos e instalações portuárias e sobre as atividades desempenhadas pelos operadores portuários; altera as Leis nºs 5.025, de 10 de junho de 1966, 10.233, de 5 de junho de 2001, 10.683, de 28 de maio de 2003, 9.719, de 27 de novembro de 1998, e 8.213, de 24 de julho de 1991; revoga as Leis nºs 8.630, de 25 de fevereiro de 1993, e 11.610, de 12 de dezembro de 2007, e dispositivos das Leis nºs 11.314, de 3 de julho de 2006, e 11.518, de 5 de setembro de 2007; e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 jun. 2013.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Notícias. Disponível em: . 

BRASIL, Cristina Índio do. IBGE: país tem 2,1 milhões de trabalhadores de plataformas digitais. agenciaBrasil, Rio de Janeiro, 25 de out. de 2023. Disponível em: . .

Delgado, Maurício José Godinho. Curso de Direito do Trabalho - 20ª Ed. Rev., atual. e ampl. - São Paulo: JusPodivm, 2023, pág. 398.

Bruno Milhorato
Pesquisador no Grupo de Pesquisa em Meio Ambiente do Trabalho na USP, pós-graduado em Direito do Trabalho pela FDV, advogado trabalhista e sócio fundador da Fabretti & Milhorato Advogados.

Amanda Moulin Macatrozzo
Advogada. Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV) e pós-graduada em Direito do Trabalho pela mesma instituição de ensino

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