Migalhas de Peso

Lei de cotas: 33 anos de conquistas e desafios

A lei de cotas completa 33 anos com inúmeros avanços. Porém há ainda diversos desafios a serem superados em busca do atingimento da ODS 8 da Agenda 2030 da ONU, por meio de mecanismos para fomento de qualificação e acesso da população com deficiência, observando ainda os meios legais para diminuição da discriminação a que está exposta esta parcela da população.

24/9/2024

Neste ano a Lei de Cotas comemora 33 anos e um de seus maiores desafios continua a ser sua plena efetividade para que atinja a finalidade que se propõe, a integração das pessoas com deficiência no tão competitivo e cada vez mais restrito mercado de trabalho.

Instituída no ordenamento jurídico por meio da Lei 8.213/1991, promulgada ainda sob os auspícios e promessas da então jovial Carta cidadã, buscou e em muitas medidas conseguiu atingir o objetivo de inclusão dessa parte da população e diminuição da discriminação.

Segundo dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais) 2021, 91,74% de pessoas com deficiência inseridas no mercado formal de trabalho laboram em empresas com 100 empregados ou mais.

A previsão legal contida no artigo 93 de aludida Norma, prevê que empresas com mais de 100 (cem) empregados estão obrigadas a preencher seus cargos entre 2% a 5% com beneficiários reabilitados ou pessoas com deficiência. Tal previsão legal é repetida no artigo 36 do Decreto Lei nº 3.298/1999 que dispõe sobre a Política Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência.

O legislador brasileiro tem se debruçado sobre a matéria e demonstrado certo grau de preocupação ante a edição de diversos diplomas legais com o fito de proteger, incluir e coibir discriminações em relação às pessoas com deficiência, como ao exemplo do Estatuto da Pessoa com Deficiência promulgado pela Lei 13.146/2015.

Contudo, em que pese o cenário legislativo favorável, a realidade ainda padece de mecanismos de fomento à inclusão da população com deficiência ao mercado de trabalho.

Dados do Pnad Contínua 2022 informa que a população com deficiência no Brasil foi estimada em 18,6 milhões de pessoas, mas apenas 29,2% das pessoas com deficiência representavam aqueles insertos na força de trabalho. Um forte indicativo pode ser a baixa escolarização, evidentemente por falta de cumprimento dos mecanismos legais, eis que a mesma pesquisa informa a taxa de escolarização entre jovens dos 18 aos 24 anos que cursavam ensino superior representava menos de 15% desta específica população.

E quando se passa a analisar o índice de atraso escolar a desigualdade aumenta, como ao exemplo da população jovem de 15 a 17 anos que frequentava o ensino médio que representava 54,5% contra 70,3% da mesma faixa etária sem portadores de deficiência.

Tais fatos demonstram uma falha estatal no cumprimento do artigo 36 do Estatuto da Pessoa com Deficiência, que prevê o dever do poder público em implementar serviços e programas completos de habilitação e reabilitação profissional com o fito que essa pessoa possa ingressar, continuar ou retornar ao campo de trabalho, observados sempre sua livre escolha, vocação e interesse.

Contudo, a realidade se apresenta diferente, pois, mesmo dentre aqueles portadores com deficiência, também é possível se verificar uma certa “discriminação” entre eles, havendo nítida preferência dos empregadores em relação àqueles que possuem deficiência física em detrimento dos demais tipos de deficiência, piorando ainda mais o cenário, quando analisado em relação às pessoas com deficiência mental/intelectual:

Tais dados denotam a falha estatal no atingimento da ODS 8 da agenda 2030 da ONU, mais especificamente no que concerne à meta 8.5 que objetiva a igualdade e dignidade de todas as pessoas, incluídas, as pessoas com deficiência “até 2030, alcançar o emprego pleno e produtivo e trabalho decente todas as mulheres e homens, inclusive para os jovens e as pessoas com deficiência, e remuneração igual para trabalho de igual valor”.

Além dos problemas atinentes ao ingresso e sobretudo à qualificação das pessoas com deficiência, após seu ingresso no mercado de trabalho os desafios continuam, eis que, segundo os dados do Pnad Contínua (2022), estamos muito longe de atingir a ODS 8 em sua meta 8.5, em relação a remuneração de igual valor, haja vista, que tal pesquisa identificou que as pessoas com deficiência têm rendimento 30% menor que a média brasileira.

A média real habitual dessas pessoas foi de R$ 1.860,00 o que equivale a 70% do rendimento médio para o total do Brasil (R$ 2.652,00) e que homens com deficiência recebem em média 27% a menos que aqueles sem deficiência (R$ 2.157 e R$ 2.941, respectivamente), enquanto as mulheres possuem um abismo ainda maior de diferença salarial quando comparadas entre as que tem algum tipo de deficiência e as que não possuem (R$ 1.553,00 x R$ 2.347,00), verificando-se aqui também a diferença salarial entre homens e mulheres e a discriminação também neste sentido, embora, no contexto analisado haja ainda, uma maior precarização e discriminação em razão da aglutinação de causas que levam à segregação.

Embora a legislação brasileira possua diversos mecanismos para coibir quaisquer tipos de discriminação, como o princípio constitucional da igualdade e da dignidade da pessoa humana, a função social do trabalho (art. 170 CF) e a lei 9.029/1995  e ainda a ressonância do plano internacional por meio da Convenção 111 da OIT, fato é que ainda subsiste e persiste discriminação tanto para acesso, quanto para promoção em cargos, como na remuneração destinada às pessoas com deficiência.

A Convenção 111 da OIT, vigente em nosso ordenamento jurídico, é expressa ao se referir a toda e qualquer discriminação, trazendo em seu item “b” do artigo 1º cláusula de “numerus apertus” justamente, pois, seria impossível prever todo tipo de discriminação existente, sobretudo, considerando a data de edição e promulgação no ordenamento brasileiro de tal convenção (1958 e 1968 respectivamente), haja vista, que quando de sua publicação, não havia estudos avançados e pouco ou quase nada se falava por exemplo de Transtorno do Espectro Autista (TEA), como diversas outras formas de deficiência que hoje se identifica em razão do avanço da medicina e pesquisas na área.

ARTIGO 1º

1.     Para fins da presente convenção, o têrmo "discriminação" compreende:
a) Tôda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, côr, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento em matéria de emprêgo ou profissão;
b) Qualquer outra distinção, exclusão ou preferência que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou tratamento em matéria de emprêgo ou profissão, que poderá ser especificada pelo Membro Interessado depois de consultadas as organizações representativas de empregadores e trabalhadores, quando estas existam, e outros organismos adequados.

Vale por fim lembrar os interessantes mecanismos instituídos pela Lei 9.025/1999, no caso de discriminação tais como aplicação de multa de dez vezes o maior salário pago pelo empregador e elevado em cinquenta por cento no caso de reincidência e ainda a proibição de obter empréstimo ou financiamento junto às instituições financeiras oficiais.

Desta forma, em que pese o intuito do legislador em promover mecanismos para fomento à qualificação e inclusão da população com deficiência no mercado formal de trabalho, os dados do Pnad Contínua (2022) e da Relação Anual de Informações Sociais (Rais) 2021, nos mostram que ainda há imensos desafios no avanço da inclusão da população com deficiência.

O direito de acesso ao mercado de trabalho em condição de igualdade é um direito fundamental de todo ser humano, no escopo de sua evolução e todos os mecanismos legislativos de fomento à inclusão e acesso, que tenham por objetivo colocar em igualdade de oportunidades as pessoas com deficiência devem cada vez mais ser aprimorados e utilizados.

_______

Agenda 2030. ONU https://brasil.un.org/pt-br/sdgs/8. Acesso em 19.09.2024

Brasil. Decreto Legislativo Nº104, https://www.trt2.jus.br/geral/tribunal2/LEGIS/CLT/OIT/OIT_111.html. Acesso em 20.09.2024

Brasil. Decreto nº3298/1999 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3298.htm. Acesso em 20.09.2024

Pnad Contínua.https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/37317-pessoas-com-deficiencia-tem-menor-acesso-a-educacao-ao-trabalho-e-a-renda#:~:text=Dos%2099%2C3%20milh%C3%B5es%20de,participa%C3%A7%C3%A3o%20(4%2C0%25). Acesso em 19.09.2024

Portal da Inspeção do Trabalho. Radar SIT. https://sit.trabalho.gov.br/radar/. Acesso em 20.09.2024. 

Felipe Meleiro Fernandes
Advogado, Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela USP. Pesquisador Núcleo Pesquisa o Trabalho além do Direito do Trabalho NTADT-USP. Mestrando em International Law pela Must University. Diretor de Formação Sindical do Sindicato dos Advogados de São Paulo-SASP. Membro da Escola da Associação Brasileira dos Advogados Trabalhistas-ABRAT.

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