Como se sabe, a nova lei de licitações, embora não seja considerada disruptiva, introduz diversas inovações com relação à legislação anterior, assim como consolida regras que antes se encontravam esparsas, a exemplo daquelas previstas na “lei do pregão” (lei federal 10.520/02), no “Regime Diferenciado de Contratações” (lei federal 12.462/11) e na jurisprudência do controle. Nesse artigo, são lançadas algumas considerações sobre como a nova lei formulou a exigência de carta de solidariedade e sobre o (ainda) omisso limite dessa solidariedade.
Conceitualmente, a carta de solidariedade é um documento em formato de declaração, assinado pelo fabricante de um bem em favor de quem, como licitante, queira realizar o fornecimento de seu produto à Administração Pública1. Do seu conceito, extrai-se que a carta de solidariedade é adotada em certames voltados a compras públicas, e busca estabelecer algum compartilhamento de responsabilidades pelo fornecimento realizado ao Poder Público.
Embora não tenha sido possível identificar exatamente onde e quando teria surgido essa exigência, fato é que a carta de solidariedade era exigida em diversas licitações muito antes de alguma regulamentação. Com frequência, os tribunais de contas deparavam-se com análises de editais nos quais a carta de solidariedade era apresentada como uma exigência de caráter restritivo, formando-se, em razão disso, um entendimento de que, além de excepcional, esse tipo de solicitação deveria se ater apenas ao vencedor do certame, não configurando, assim, um requisito de habilitação2.
Com a edição da lei federal 12.462/11, que instituía o RDC - Regime Diferenciado de Contratações Públicas, a exigência de carta de solidariedade foi positivada, sendo autorizado ao gestor, nas licitações para aquisições de bens, “solicitar, motivadamente, carta de solidariedade emitida pelo fabricante, que assegure a execução do contrato, no caso de licitante revendedor ou distribuidor” (art. 7º, inciso IV, da lei 12.462/11).
Como se denota, um aspecto importante apresentado na regulamentação e que incorporava a orientação da jurisprudência dos tribunais de contas era a explícita determinação de motivação dessa exigência, demonstrando que a solicitação de carta de solidariedade, nos editais de licitação, não poderia ser tratada como um requisito corriqueiro, cabendo ao gestor a incumbência de justificar a necessidade dessa providência.
A Lei Federal nº 14.133/2021 (NLLC - “nova lei de licitações”) seguiu similar redação, estabelecendo, em seu art. 41, inciso IV que, de forma excepcional, poderá a Administração Pública, nas compras realizadas, “solicitar, motivadamente, carta de solidariedade emitida pelo fabricante, que assegure a execução do contrato, no caso de licitante revendedor ou distribuidor”.
Portanto, na linha das práticas administrativas já consolidadas antes da edição da norma, a NLLC reforçou a excepcionalidade da carta da solidariedade, autorizando sua exigência, de forma motivada, com o fim de assegurar a execução do contrato nas hipóteses em que quem atue como licitante não seja o fabricante direto daquele bem, mas seu revendedor ou distribuidor.
Contudo, um ponto que não fica esclarecido na legislação e que gera uma série de dúvidas práticas diz respeito ao limite da responsabilidade estabelecida por esse documento, seguindo-se, sobretudo, a máxima legal de que “a solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes” (art. 265, do Código Civil). Nesse sentido, sendo a carta de solidariedade uma exigência imposta ao licitante — involuntária, portanto — e não tendo a lei fixado os limites dessa responsabilidade, entender o seu alcance parece relevante para a proteção dos licitantes (administração e contratado), sobretudo para os casos de inadimplemento contratual.
Ao que nos parece, por parte da Administração Pública, o interesse nesse tipo de exigência é o de justamente estabelecer uma solidariedade entre fabricante e licitante pela execução do contrato, de modo que não haja qualquer tipo de escusa por desabastecimento do produto sob a alegação de que esse seria um problema da fabricação, não atribuído ao revendedor ou distribuidor. Por outro lado, na prática, a redação das cartas de solidariedade é bastante simplória e não costuma atribuir tamanha extensão a essa solidariedade, salvo se os modelos do edital forem redigidos com essa abertura.
Mas se a carta de solidariedade não assegura uma responsabilidade ampla, qual seria, então, o seu alcance? Em nossa visão, há duas vertentes para essa solidariedade. Uma primeira, atinente à garantia de qualidade dos produtos ofertados ao Poder Público, evitando a perda dos principais atributos do produto de interesse da Administração quando faz a aquisição; e a segunda, relativa ao reforço do compromisso do fabricante quanto à observância de sua relação contratual com revendedores e distribuidores, que não o vincula à contratação pública.
Sobre o primeiro aspecto, há espécie de extensão da solidariedade já existente entre fabricante e fornecedores no âmbito civil, por força das disposições do CDC - Código de Defesa do Consumidor, para que se alcance, também, à Administração Pública. Como aponta Rafael Oliveira, o Estado, como regra, não é considerado um consumidor e, por isso, não estaria naturalmente protegido dos defeitos ou vícios do produto adquirido, de forma que a carta de solidariedade supre a previsão dos arts. 12, 18, 19 e 25 do CDC3. Nesses termos, a solidariedade entre fabricante e revendedor/distribuidor face a administração se direciona à garantia de qualidade do produto vendido4.
Com relação ao segundo aspecto, entende-se adequado o posicionamento esposado pelo tribunal de contas do estado de SP no sentido de que “a carta de solidariedade não significa que o fabricante se torna coobrigado pelo adimplemento da obrigação”, funcionando, em verdade, como uma declaração do fabricante de “que tem conhecimento do certame e se compromete a executar o que lhe incumbe para que o licitante tenha condições de cumprir a obrigação contratual”5. Portanto, o fabricante se compromete com o cumprimento do contrato que celebrou com seu distribuidor ou revendedor, este, sim, responsável perante a administração contratante.
Assim, o limite da responsabilidade assumida pela carta de solidariedade estará definido pelas condições acordadas entre fabricante e distribuidor / revendedor, não sendo razoável que, por uma mera declaração, sejam ampliadas as obrigações de um contrato previamente estabelecido6, principalmente porque isso abrangeria quase que trazer um terceiro — a Administração Pública — para a relação, caso viesse a se entender que, descumprido o contrato pelo licitante, o fabricante restaria responsabilizado por esse objeto (fornecimento).
Diante dos pontos abordados, acredita-se que a exigência de carta de solidariedade, para além dos requisitos legais estabelecidos, deve representar um equilíbrio entre a necessidade de assegurar a qualidade e quantidade dos produtos adquiridos pela Administração Pública e a proteção dos direitos dos licitantes, não sendo razoável a ampliação de responsabilidades não expressamente assumidas, tampouco a vinculação de terceiros a relações das quais não participa diretamente, o que nada reduz as garantias do Poder Público, que ainda terá à sua disposição uma variada gama de ferramentas para o compelir o contratado a responder
_____
1 ROST, Maria Augusta. As exigências de amostra e de carta de solidariedade. In JUSTEN FILHO, Marçal; PEREIRA, Cesar A. Guimarães (Coord.). O Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC): comentários à Lei nº 12.462 e ao Decreto nº 7.581. 2ª Ed. rev., amp. e atual. Belo Horizonte: Fórum, 2013.
2 De forma exemplificativa: “9.1. com fundamento nos artigos 235 e 237, inciso VII e parágrafo único, do Regimento Interno/TCU, conhecer da presente Representação, para, no mérito, considerá-la parcialmente procedente: 9.2. determinar à Agência de Promoção de Exportações e Investimentos - Apex-Brasil que, nas próximas licitações: (...) 9.2.4. abstenha-se de exigir, nas licitações realizadas na modalidade pregão, certificados da série ISO 9000 e carta de solidariedade do fabricante, por falta de amparo legal, uma vez que esses expedientes não compõem o rol dos documentos habilitatórios contidos no Capítulo V do seu Regulamento de Licitações e Contratos” (TCU. Acórdão nº 539/2007-Plenário. Relator Min. Marcos Bemquerer. Sessão de 04/04/2007).
3 OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Licitações e contratos administrativos: teoria e prática. 12ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023.
4 Nesse sentido: “Com efeito, a exigência da carta de solidariedade concretiza uma das pedras angulares do direito público: o princípio da supremacia do interesse público. É irrelevante o fato de existir solidariedade na responsabilidade civil por vícios no(s) produto(s) ou serviço(s), decorrente de legislação consumerista, uma vez que a confiança do fabricante na empresa licitante garante, de um ponto de vista pragmático, maior efetividade no fornecimento do produto ou serviço licitado, já que, muito provavelmente, não existirão batalhas judiciais para se apurar a responsabilidade por eventuais defeitos em tal fornecimento”. (TRF4, Apelação Cível nº 5018007-26.2012.404.7100/RS, Rel. Des. Federal Fernando Quadros da Silva, j. em 10.12.2014).
5 Cf. comentários à NLLC, disponível em: https://www.tce.sp.gov.br/legislacao-comentada/lei-14133-1o-abril-2021/41. Acesso em 20/09/2024.
6 Ainda que entendendo que a solidariedade exigida seria pela qualidade do produto, o TCU já se posicionou pela possibilidade de ampliação da solidariedade em razão das disposições específicas do edital: “Nota-se que a solidariedade exigida está além da obrigação exigida do fabricante pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC), prevista no art. 18, c/c o art. 2º (...). Embora se possa cogitar que não possa (ou não deva) a Administração Pública exigir solidariedade de terceiros em obrigações contratuais, da maneira como foi exigida nessa carta, além de não ter ferido nenhum princípio aplicável às licitações públicas, no caso em tela, se justifica por estar relacionado a equipamentos e software que serão utilizados em atividades investigatórias da Polícia Federal, as quais, pelo sigilo exigido e pela necessidade de funcionamento constante, requer cuidados excepcionais como o ora solicitado” (TCU. Acórdão nº 1.670/2003-P. Relator Min. Lincoln Magalhães da Rocha. Sessão de 05/11/2003).