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Tesouro histórico soterrado

A Campanha “Doe Ouro para o Bem de São Paulo” é um episódio relevante da História do Brasil. Mas ficou sempre relegada a segundo plano pela historiografia, a notas de rodapé, ao limbo. Há, sem exagero, várias centenas de livros escritos sobre a Revolução Constitucionalista de 1932. Sobretudo relatos do front, dos chamados heróis de guerra. Já sobre a Campanha do Ouro, nada, ou quase nada. É, no mínimo, intrigante...

6/7/2007


Tesouro histórico soterrado

Cássio Schubsky*

A Campanha "Doe Ouro para o Bem de São Paulo" é um episódio relevante da História do Brasil. Mas ficou sempre relegada a segundo plano pela historiografia, a notas de rodapé, ao limbo.

Há, sem exagero, várias centenas de livros escritos sobre a Revolução Constitucionalista de 1932. Sobretudo relatos do front, dos chamados heróis de guerra. Já sobre a Campanha do Ouro, nada, ou quase nada. É, no mínimo, intrigante... Afinal, trata-se de uma mobilização cívica que, durante várias semanas, envolveu dezenas de milhares de participantes, com organização extremamente sofisticada e com expressivos resultados numéricos (seja em quantidade de doadores, ou em volume de recursos arrecadados).

Há emoção nisso tudo. Lances pitorescos de sobra. Crime, inclusive – como se verá adiante. Um verdadeiro tesouro histórico. Soterrado pelo esquecimento.

Bem, comecemos nossa história pelo princípio. Quando resolvi mudar a Editora Lettera.doc para o centro da cidade, em fins de 2005, encantou-me, desde logo, o edifício Ouro para o Bem de São Paulo, localizado no Largo da Misericórdia, a duas quadras do Páteo do Colégio. A placa afixada no hall de entrada chama a atenção pelos dizeres: "Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo – este prédio foi construído com o ouro angariado para o bem de São Paulo em 1932".

Engenhada pelo escritório de arquitetura Severo e Villares, sucessor de Ramos de Azevedo, a fachada do prédio, com suas formas recurvadas, reproduz a bandeira paulista tremulando.

Farejei: "Aí tem história". E, já com a Editora Lettera.doc instalada no prédio, pus-me a pesquisar. Eu já ouvira falar na Campanha do Ouro de 32 e sabia da confusão que reinava entre ela e sua congênere, a campanha "Doe Ouro para o Bem do Brasil", organizada por Assis Chateubriand e seus Diários Associados em prol do golpe civil-militar de 1º de abril de 1964. Era tudo que eu sabia.

Clica em sites de busca na Internet daqui; consulta bibliotecas e livrarias dali; enfim, concluí, depois de algumas semanas de pesquisa, que o assunto era muito maltratado pela historiografia.

Já estava desistindo de encontrar qualquer livro específico, quando, por obra do destino, deparei, em um sebo, exemplar, em dois grossos volumes, com detalhadas informações sobre a Campanha do Ouro de 1932. Quis o livreiro vultosa quantia. Negociante, ele já se acostumara com minha presença de curioso, pois eu vivia a importuná-lo, de tempos em tempos, em busca do ouro perdido... Ele ameaçou: "Compre logo, ou ficará sem. Chegou hoje. Trata-se de uma raridade, vou vender rápido". Agradeci, "comovido", e resolvi dar uma busca extra <_st13a_personname productid="em bibliotecas. Acabei" w:st="on">em bibliotecas. Acabei por encontrar um exemplar da raridade na Mário de Andrade, que, como mostram os registros de consulta, mofava esquecido há décadas.

Larguei, sem pestanejar, qualquer preocupação comezinha de editor e empresário, dedicando-me a ler, ávido, o achado, dias seguidos, com ganas de historiador. E os olhos foram se arregalando a cada descoberta.

A edição deste Relatório das Comissões de Direção e Executiva da Campanha do Ouro e da Comissão da Campanha do Ouro da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo data de 1940 e foi publicada em livro pela Editora Revista dos Tribunais. (Curiosamente, nas minhas primeiras consultas, há cerca de um ano, a obra estava alocada na seção geral da biblioteca; em recente busca pelo livro, para checar informações para a redação do presente artigo, fui encontrá-lo, depois de um bom périplo na Mário de Andrade, na seção de livros raros).

Assina o relatório Synesio Rangel Pestana, um dos três representantes nomeados pela Associação Comercial de São Paulo para integrar a Comissão Executiva da Campanha do Ouro e produzir o inventário dos episódios relativos a ela. Os outros dois membros eram João Maurício de Sampaio Vianna (que faleceu no decorrer dos trabalhos) e José Carlos de Macedo Soares (que se ausentou de suas tarefas).

Chama a atenção, desde logo, que se passaram cerca de oito anos entre o fim da Campanha do Ouro e a publicação do relatório. O próprio autor, Rangel Pestana, esclarece as dificuldades encontradas para relatar, a contento, as atividades da Campanha. De todo modo, o relatório é um mapa da mina, que oferece pistas valiosas sobre a história do movimento de arrecadação de recursos para a Revolução de 1932 e seus desdobramentos.

Na introdução, fica explicado que a Campanha do Ouro foi iniciada a partir de reunião realizada na sede da Associação Comercial de São Paulo, em 8 de agosto de 1932. Já em 12 de agosto, começam os trabalhos de arrecadação de recursos, que se alongam até setembro. Cerca de 450 kg de ouro foram destinados ao Tesouro do Estado de São Paulo para a compra de artefatos militares e suporte à luta revolucionária. Percebendo a supremacia das tropas federais no circo das operações de guerra, consuma-se, em 23 de setembro, a doação do montante excedente arrecadado para entidades filantrópicas, com destaque para a Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Temia-se que, além da guerra, os paulistas também perdessem o ouro e o dinheiro arrecadados.

Com justeza, alerta o autor que, antes da Associação Comercial de São Paulo, a sua congênere de Santos tivera a idéia de iniciar uma campanha de arrecadação de recursos. Centralizada a Campanha do Ouro na capital paulista, foram organizadas duas comissões: a Diretiva (comandada por José Maria Whitacker, da Associação Comercial de São Paulo) e a Executiva (presidida por Antonio Prado Jr.). Esta, por sua vez, organizou dois departamentos: Direção Artística e Direção de Publicidade.

A Direção Artística – capitaneada pelo artista J. Watsch – cuidou de projetar cartazes de propaganda e modelos de diplomas, medalhas e anéis comemorativos. A Direção de Publicidade – a cargo do jornalista Francisco Pati – elaborava releases diários para a imprensa sobre novidades da Campanha do Ouro.

Um concurso organizado pela Direção Artística estimulou a produção de cartazes comemorativos e de propaganda, e os três primeiros colocados receberam prêmios <_st13a_personname productid="em dinheiro. Houve" w:st="on">em dinheiro. Houve exposição dos cartazes concorrentes, na rua Libero Badaró – "visitadíssima", segundo o relatório.

Foi montada uma sofisticada estrutura logística para arrecadação, avaliação e fundição do ouro, envolvendo uma rede espalhada pelo Estado inteiro. Jóias e objetos de arte, além de dinheiro, também foram fartamente doados. No total, foram realizadas cerca de 70 mil doações, incluindo – número assombroso! – exatas 56.283 alianças de casamento, que foram trocadas por anéis de latão com a inscrição "doei ouro para o bem de São Paulo".

O valor total arrecadado com a Campanha, segundo dados da Santa Casa, foi de 6.648:499$010 (seis mil e seiscentos e quarenta e oito contos, quatrocentos e noventa e nove mil e dez réis). A relação completa de doadores, com as cifras doadas por cada um, integra uma boa parte do primeiro volume (doadores da capital paulista) e o segundo volume inteiro do relatório (com os donativos do interior do Estado de São Paulo e de outros estados da Federação).

Depois que os recursos foram repassados pela Associação Comercial para a Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, assinala Synesio Rangel Pestana, sobrevém um fato insólito. Transcrevo o trecho inteiro (página 9 do relatório):

“A Campanha do Ouro para o Bem de São Paulo, tão brilhantemente iniciada pelas comissões da Associação Comercial de São Paulo e levada a termo por elas com tanta felicidade, foi continuada pela comissão da Santa Casa com o mesmo êxito até quase o final. Infelizmente, já no fim de sua tarefa, uma lamentável ocorrência veio empanar o brilho de sua gestão.

Um funcionário desonesto, iludindo a confiança dos membros da Comissão do Ouro, que nele confiaram porque lhes foi apresentado por honrado cavalheiro, porque vinha servindo à Comissão Executiva da Associação Comercial desde o início da Campanha e porque o nome tradicional de sua família, que ele tão mal usou, era para nós um penhor de probidade, apropriou-se, indebitamente, de uma parcela da quantia obtida, correspondente mais ou menos a um décimo da cifra apurada na segunda fase da Campanha.

A Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, como era do seu dever, propôs ação civil e criminal contra o criminoso, tendo obtido sentenças favoráveis, com a condenação do réu, que cumpriu a pena imposta, não ressarcindo porém o prejuízo material causado, apesar de compelido por sentença passada em julgado, porque não teve recursos para restituir a quantia desviada”.

Rangel Pestana não declina o nome do larápio e nenhum detalhe adicional sobre o delito e o cumprimento da pena de reclusão. Seja como for, com o dinheiro restante da Campanha, ergueu-se o edifício Ouro para o Bem de São Paulo, ainda hoje patrimônio da Santa Casa de São Paulo, e beneficiaram-se dezenas de outras entidades beneficentes paulistas.

Enfim, há muito história para se contar sobre a Campanha do Ouro para o Bem de São Paulo. É justamente isso o que pretendemos fazer, como resultado da pesquisa que deverá ser publicada pela Editora Lettera.doc, na forma de um livro recheado com documentos, ilustrações e fotos. O tesouro histórico merece ser revelado. E relembrado.

Nota do autor: A Santa Casa de Misericórdia de São Paulo mantém, em sua sede, um museu com objetos, livros e documentos sobre a Revolução de 1932 e a Campanha do Ouro; a Associação Comercial de São Paulo possui ampla biblioteca, com milhares de volumes. Em nenhum dos dois locais, encontrei exemplar do relatório de Synesio Rangel Pestana.

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*Diretor Editorial da Editora Lettera.doc


 

 

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