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A exigência de escritura pública para cessão de precatórios: Críticas ao provimento 2.753/24

O provimento CSM 2.753/24 do TJ/SP, ao exigir escritura pública para cessão de precatórios, torna o mercado mais burocrático e menos acessível, prejudicando a liquidez e favorecendo grandes players.

17/9/2024

O mercado de precatórios no Brasil desempenha um papel vital na economia, permitindo que credores e devedores alcancem soluções financeiras rápidas e flexíveis por meio da cessão de créditos judiciais. Esse mecanismo proporciona não apenas uma solução eficiente para aqueles que precisam de recursos financeiros com urgência, mas também desafoga o próprio Judiciário, que lida com um histórico de lentidão na quitação desses débitos. Contudo, garantir essa liquidez ainda é um grande desafio, uma vez que o mercado de precatórios enfrenta obstáculos estruturais e legais que dificultam a fluidez dessas operações.

Os players que lidam com a antecipação de créditos judiciais agora se deparam com um novo obstáculo: o provimento CSM 2.753/24, emitido pelo TJ/SP. Essa regulamentação introduz uma série de requisitos burocráticos, em especial a exigência de escritura pública para a cessão de créditos, o que promete alterar drasticamente a dinâmica desse mercado.

É preciso reconhecer que o provimento traz uma série de melhorias, como a padronização dos procedimentos relacionados à cessão de crédito, sucessão e penhora, bem como o desconto de tributos de forma mais transparente e eficaz. Outra medida relevante é a possibilidade de realizar acordos com o estado, por meio da câmara de conciliação de precatórios, que permitirá a negociação de deságios de até 40%, fomentando a resolução consensual, acelerando os pagamentos e possibilitando que o credor possa antecipar a liquidação de seus créditos.

Por outro lado, a imposição da escritura pública, especificamente no art. 11 do referido provimento, como condição para a cessão de créditos, é um dos aspectos mais controversos deste ato administrativo, já que adiciona custos e complexidade desnecessários a um processo que, até então, era regido por contratos particulares, amplamente aceitos e juridicamente seguros.1 Ao exigir essa formalidade, o provimento não apenas inviabiliza operações de menor porte, mas também desestimula a liquidez do mercado de precatórios, crucial para manter a economia em movimento.

Este artigo busca analisar criticamente os efeitos negativos dessa exigência, argumentando que o provimento CSM 2.753/24 não só desestimula o livre comércio e a fluidez do capital no setor de precatórios, mas também cria barreiras que beneficiam apenas grandes players, em detrimento de pequenos investidores e credores. Além disso, o artigo discutirá como a burocratização excessiva contraria o princípio da eficiência que deveria nortear o sistema jurídico, propondo alternativas viáveis para tornar o mercado mais acessível, eficiente e seguro.

A gestão de precatórios no Brasil sempre foi um desafio para o Judiciário, em grande parte devido aos atrasos crônicos nos pagamentos e à complexidade administrativa envolvida. A situação foi agravada por políticas governamentais muitas vezes confusas e contraditórias, que falharam em estabelecer uma solução eficaz e duradoura para o problema. Os precatórios, que são ordens de pagamento expedidas pelo Judiciário contra entes públicos, tornaram-se uma questão crítica ao longo dos anos, com o aumento constante do volume de dívidas e o acúmulo de precatórios em atraso. A PEC - proposta de emenda constitucional dos precatórios, aprovada em 2021, foi uma tentativa recente de lidar com essa crise, mas suas medidas de parcelamento e adiamento de pagamentos foram amplamente criticadas por desrespeitarem direitos adquiridos e minarem a confiança no cumprimento das obrigações estatais.

Além disso, a decisão do STF, que determinou o pagamento integral de precatórios atrasados, reforçou a pressão sobre o governo para honrar essas dívidas, mas a falta de coordenação entre as diferentes esferas de governo continua a dificultar a implementação dessas medidas.Nesse cenário de incertezas, o CNJ buscou padronizar a gestão de precatórios com a resolução 303, de 19, visando promover maior eficiência e transparência nos pagamentos. A resolução estabeleceu regras claras sobre a ordem cronológica dos pagamentos, assim como procedimentos operacionais uniformes que deveriam ser seguidos por todos os tribunais do país. Apesar de ser um avanço importante, a resolução sozinha não foi suficiente para resolver os desafios estruturais de liquidez e regularidade no pagamento de precatórios, os quais ainda dependem de uma política governamental coerente e bem implementada.

Antes da resolução 303, havia uma fragmentação nas normas de gestão de precatórios, com diferentes tribunais adotando regras próprias, o que gerava inconsistências e dificuldades na coordenação dos pagamentos. A resolução 303 introduziu um sistema mais coeso, permitindo a centralização das informações e o controle mais rigoroso dos débitos públicos. No entanto, mesmo com essas melhorias, a liquidez no mercado de precatórios ainda era limitada, e a cessão de créditos tornou-se uma ferramenta importante para aliviar essa situação, possibilitando que credores pudessem negociar seus créditos no mercado privado enquanto aguardavam o pagamento pelos entes públicos.

A liquidez no mercado de precatórios é essencial para o bom funcionamento do sistema, permitindo que os credores obtenham capital imediato ao negociar seus créditos com terceiros, ao invés de esperar pela longa fila de pagamento pelos entes devedores. O livre comércio de precatórios se desenvolveu como uma solução prática para esse problema, criando um ambiente em que investidores privados podiam adquirir esses créditos, frequentemente com deságio, oferecendo ao credor a possibilidade de antecipar o recebimento do valor. Essa prática conferiu ao mercado uma maior agilidade e acessibilidade, uma vez que a cessão de créditos era tradicionalmente realizada por meio de contratos particulares, sem a necessidade de formalidades complexas ou custos elevados.

O provimento CSM 2.753/24 introduz uma burocracia desnecessária ao processo de cessão de créditos, ao exigir que tais transações sejam formalizadas por escritura pública, o que torna as operações mais lentas e onerosas. Ao invés de simplificar o ambiente econômico e promover um mercado de precatórios mais dinâmico, essa medida contraria o princípio da desburocratização, essencial para a competitividade. Essa exigência impõe custos desproporcionais às transações de pequeno porte, tornando-as inviáveis e afastando pequenos e médios empresários. Embora o provimento busque garantir segurança jurídica, existem formas mais modernas e eficientes de se alcançar esse objetivo sem sacrificar a flexibilidade do mercado.

Ferramentas jurídicas e tecnológicas já amplamente aceitas, como a utilização de contratos particulares validados judicialmente e assinaturas eletrônicas qualificadas, são capazes de conferir a mesma segurança sem os altos custos e a rigidez impostos pelo provimento. Soluções tecnológicas, como a implementação de plataformas eletrônicas para registro e validação de cessões, podem proporcionar rastreabilidade, transparência e proteção contra fraudes, tudo isso sem burocratizar o processo. Essas ferramentas têm o potencial de garantir que as transações sejam seguras, juridicamente válidas e eficientes, preservando a agilidade que o mercado de precatórios exige.

Ao exigir a escritura pública para todas as cessões de crédito, o provimento ignora as possibilidades oferecidas por essas alternativas modernas e eficazes, engessando o mercado. A digitalização de processos, com a utilização de blockchain ou sistemas de registro eletrônico de precatórios, poderia cumprir as mesmas funções de segurança jurídica, garantindo autenticidade, integridade e validade dos documentos, sem onerar as partes envolvidas. Além disso, o próprio controle jurisdicional, através da homologação judicial dos contratos de cessão, pode garantir que as transações sejam realizadas de forma correta e transparente, sem os altos custos associados ao procedimento cartorial.

O provimento concentra o mercado de precatórios nas mãos de poucos players, enfraquecendo a competitividade e limitando a diversidade de participantes. Além disso, a medida agrava as desigualdades regionais, já que em áreas mais remotas, onde o acesso a cartórios é limitado, as transações se tornam ainda mais difíceis de realizar.

A justificativa do provimento de que a exigência de escritura pública aumentaria a segurança jurídica é, em grande parte, um mito. A segurança jurídica não está vinculada necessariamente a formalidades cartoriais, mas sim à transparência e validade das transações, que podem ser garantidas por outros meios mais eficientes e menos custosos.

Além disso, o provimento falha em diferenciar transações de grande vulto das cessões de pequeno valor, criando uma rigidez legal desnecessária. Essa falta de distinção corre o risco de engessar o mercado, tornando-o inacessível para pequenos credores e investidores. Em vez de aumentar a segurança jurídica, o provimento impõe barreiras que comprometem a previsibilidade e a simplicidade necessárias para a realização de negócios no setor de precatórios.

A segurança jurídica nas cessões de crédito pode ser garantida sem a burocratização imposta pelo provimento CSM 2.753/24. A utilização de tecnologias modernas, como assinaturas eletrônicas e registros digitais, pode substituir a exigência de escritura pública, garantindo a segurança das transações sem onerar os envolvidos. Ao engessar o mercado de precatórios com formalidades desnecessárias, o provimento prejudica a liquidez e a competitividade, favorecendo grandes players e limitando o acesso de pequenos investidores. Para promover um mercado mais dinâmico, acessível e seguro, é essencial adotar soluções que priorizem a eficiência e a simplicidade, sem comprometer a segurança jurídica

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1 Art. 11. A partir da data da entrada em vigor deste Provimento, será obrigatória a escritura pública como condição de eficácia da cessão de crédito para fins de alteração da titularidade do precatório junto à DEPRE

2 O Supremo Tribunal Federal reconheceu a constitucionalidade parcial da limitação ao pagamento de precatórios imposta em 2021, com a possibilidade de o governo regularizar R$ 95 bilhões do estoque de sentenças judiciais sem esbarrar em regras fiscais, autorizando o pagamento dos débitos em desfavor da União, que poderão ser pagos até o final de 2026. O entendimento foi firmado por maioria no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 7.064 e 7.047, em sessões extraordinárias ocorridas nos dias (27 e 30 de novembro de 2023).

Victória Vitti de Laurentiz
Advogada, doutora em Direito, diretora jurídica da LTZ Capital e da Laurentiz Sociedade de Advogados.

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