A falência, no ordenamento jurídico brasileiro, é considerada uma forma de extinção regular da pessoa jurídica, pautada em um processo judicial controlado e transparente, com a condução do Poder Judiciário e a participação dos agentes interessados. Assim, o procedimento tem como objetivo principal promover a liquidação ordenada do patrimônio da massa falida, assegurando que os credores sejam pagos conforme a ordem de preferências estabelecida pela lei (vide artigos 83 e 84 da lei 11.101/05).
Durante esse processo, são preservados os princípios da par conditio creditorum (igualdade entre os credores) e a equidade. Ao final, com a realização do ativo e o pagamento proporcional aos credores, o procedimento atinge sua finalidade legal, resultando no encerramento formal da empresa. Esse desfecho respeita integralmente os trâmites legais e os direitos das partes envolvidas, promovendo uma dissolução organizada e justa da pessoa jurídica.
Por óbvio, para assegurar a eficiência do processo falimentar e correta distribuição dos recursos da universalidade de credores, a legislação estabelece a competência centralizada do juízo falimentar para julgar as questões relativas ao patrimônio da empresa em situação de insolvência (art. 76 da lei 11.101/05).
Dentro desse contexto e considerando-se as particularidades de um procedimento falimentar, a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), durante o julgamento do Conflito de Competência 200775 - SP (23/0386109-4), discorreu acerca da interpretação do art. 82-A da lei 11.101/05 para a definição da competência para instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica de empresa falida.
Adentrando ao cerne da questão, o parágrafo único do art. 82-A traz a seguinte orientação: “a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade falida, para fins de responsabilização de terceiros, grupo, sócio ou administrador por obrigação desta, somente pode ser decretada pelo juízo falimentar com a observância do art. 50 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil) e dos arts. 133, 134, 135, 136 e 137 da lei 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), não aplicada a suspensão de que trata o § 3º do art. 134 da lei 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil)”.
Analisando a norma sob uma perspectiva gramatical, a frase descreve uma ação (decretar a desconsideração da personalidade jurídica) que está vinculada a uma finalidade específica (responsabilizar terceiros) e a uma condição legal (observância do art. 50), e que deve ser realizada por um agente determinado (o juízo falimentar).
Nessa esfera, em sessão realizada em 7 de março de 2024, a ministra Nancy Andrighi proferiu voto no referido conflito de competência declarando que o juízo da 2ª Vara Cível de Catanduva/SP é competente para deliberar sobre o pedido de desconsideração da personalidade jurídica da sociedade Maralog Distribuição S/A. Essa conclusão foi embasada no entendimento de que o art. 81-A, parágrafo único, da lei 11.101/05, acrescentado pela lei 14.112/20, confere exclusivamente ao Juízo falimentar a competência para tratar desse tema em relação a sociedades falidas.
Em 28 de agosto de 2024, o cenário jurídico recebeu uma nova perspectiva com o voto-vista do ministro Antônio Carlos Ferreira. Segundo o ministro, a intenção desse dispositivo é, primeiramente, (i) separar claramente os conceitos de desconsideração da personalidade jurídica e a extensão da falência a terceiros, e, em segundo lugar, (ii) uniformizar o procedimento e os requisitos materiais para a desconsideração dentro do processo falimentar.
Ou seja, o dispositivo não confere ao juízo da falência uma competência exclusiva para decidir sobre a desconsideração, mas estabelece que a desconsideração da personalidade jurídica de uma empresa falida deve seguir os requisitos previstos no art. 50 do Código Civil e nos arts. 133 e seguintes do CPC.
Além disso, refutando qualquer alegação de violação ao princípio da paridade entre os credores, o ministro esclareceu que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica tem um escopo restrito. Ele se limita a decidir se um terceiro deve ser incluído na demanda como devedor. O incidente não aborda questões como a forma de pagamento, o destinatário dos pagamentos, ou a extinção da execução. Em resumo, a desconsideração da personalidade jurídica não afeta o princípio da par conditio creditorum.
Para fundamentar sua interpretação da ratio legis, o ministro fez referência ao entendimento do Ministro Roberto Barroso no julgamento do conflito de competência 8.318 BA. O Ministro Barroso explicou que o art. 82-A, adicionado pela lei 14.112/2020, proíbe a extensão dos efeitos da falência aos sócios de responsabilidade limitada e estabelece que a forma adequada de alcançar o patrimônio dos sócios é por meio da desconsideração da personalidade jurídica. Em sua visão, o objetivo do dispositivo não é atribuir ao juízo da falência uma competência exclusiva para determinar a desconsideração, mas deixar claro que essa providência deve ser realizada pelo juízo falimentar em conformidade com os requisitos do art. 50 do Código Civil e dos arts. 133 e seguintes do CPC (STF - CC: 8318 BA, Relator: ROBERTO BARROSO, Data de Julgamento: 13/07/23, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 13/07/23 PUBLIC 14/07/23).
À luz desses importantes precedentes, essencialmente, compreende-se que a desconsideração da personalidade jurídica tem uma função específica: combater desvios de finalidade e abusos dentro da estrutura da pessoa jurídica. Em vez de ser um instrumento para destruir o conceito de pessoa jurídica, a desconsideração visa, de forma limitada e no caso concreto, tratar abusos que justifiquem essa medida (REQUIÃO,021). Portanto, deve sempre ser vista como uma exceção à regra geral, e não como a norma padrão.
Além disso, é válido ressaltar que o procedimento de desconsideração da personalidade jurídica é tratado como um incidente processual, e não como uma ação autônoma. Acerca dos seus efeitos processuais, utiliza-se da lição de Lenio Luiz Streck, Dierle Nunes e Leonardo Carneiro da Cunha2:
Lembremos que a aplicação do instituto da desconsideração deve se dar em caráter episódico, para atos certos e determinados, o que significa delimitação no tempo. Acolhido o pedido de desconsideração formulado por dado credor em relação a certo caso, a declaração não projeta seus efeitos para futuros litígios entre o requerente e o requerido. Para futuras contendas, o interessado deverá apresentar novos requerimentos, com nova demonstração do preenchimento dos requisitos específicos para cada caso, não podendo se valer de decisão “emprestada” anterior. Com efeito, não podemos esquecer que o instituto da desconsideração é uma exceção ao princípio da autonomia patrimonial da sociedade empresária, e como tal deve ser tratado. O atendimento dos pressupostos da desconsideração é relacional, incidindo apenas para dada relação jurídica delimitada singularmente no tempo e no espaço. Embora nada impeça que a decisão beneficie mais de uma relação jurídica, elas devem estar devidamente individualizadas na petição inicial da demanda principal, no requerimento do incidente e na decisão que o acolhe. É imprescindível, assim, a demonstração concreta que houve o atendimento dos pressupostos, em caráter específico, no âmbito de dada relação jurídica, ainda que credor e devedor possuam outras relações em que tais papéis sociais se repitam (grifou-se).
Isso posto, conclui-se que a desconsideração da personalidade jurídica opera dentro de limites claramente definidos, tanto no tempo quanto no espaço. Em outros termos, os efeitos da desconsideração se restringem exclusivamente ao contexto jurídico específico para o qual foi inicialmente requerida e avaliada. Caso surjam novos conflitos ou questões legais posteriormente, será necessário submeter um novo pedido de desconsideração, apresentando a devida comprovação dos requisitos pertinentes a cada nova situação. Essa abordagem garante que a desconsideração seja aplicada de forma precisa e justa, respeitando a singularidade de cada caso jurídico.
Nesse contexto, à luz do entendimento processualista cível, emerge uma perspectiva que corrobora o recente posicionamento da Segunda Turma do STJ ao afastar a competência exclusiva do juízo falimentar para a instauração do referido incidente. A desconsideração da personalidade jurídica, ao operar dentro de limites bem definidos e cumprimento das diretrizes legais, reflete uma compreensão mais ampla da aplicação da lei, permitindo que outros juízes também possam deliberar sobre a matéria, sob a perspectiva daquele caso concreto.
Cabe, por sua vez, a máxima atenção da normativa do parágrafo único do art. 76 da lei 11.101/05, estabelecendo-se o prosseguimento dessas ações com o administrador judicial, que deverá ser intimado para representar a massa falida, sob pena de nulidade do processo. Por meio da participação ativo do auxiliar judicial, restará delimitada as diretrizes falimentares, mitigando-se, assim, eventuais riscos de violação do princípio da paridade e o descumprimento da ordem legal de preferência para pagamento dos credores extraconcursais e concursais identificados no procedimento.
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1 REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. Revista dos Tribunais, São Paulo, v.91, n.803, p. 751-764, set. 2002. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/mod/resource/view.php?id=3089903. Acesso em: 2 ago. 2022.
2 Comentários ao Código de Processo Civil / organizadores Lenio Luiz Streck, Dierle Nunes, Leonardo Carneiro da Cunha; coordenador executivo Alexandre Freire. – 2. ed. – São Paulo: Saraiva, 2017.