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Desnecessidade de carta rogatória: Instrumentalidade das formas em matéria de homologação de sentença estrangeira em novo paradigma pelo STJ

STJ homologou sentença estrangeira sem citação por carta rogatória, considerando ciência do processo. Decisão inédita amplia a aplicação da instrumentalidade das formas e reflete a evolução digital no direito, com processos agora predominantemente eletrônicos e virtuais.

18/9/2024

Em recentíssimo julgado, o STJ homologou sentença estrangeira proferida à revelia de parte domiciliada no Brasil, sem a sua citação por carta rogatória. A corte considerou elementos que provavam que a requerida teve ciência do processo que lhe era movido. Trata-se de decisão inédita no âmbito de processo desta natureza, em que são discutidas relações comerciais de caráter patrimonial. Apesar de a exigência de citação por carta rogatória já ter sido flexibilizada em outras oportunidades, até então, a flexibilização havia se restringido a processos que tratavam sobre direito de família, da personalidade, interesses de incapazes, entre outras matérias, sem cunho patrimonial.

Trata-se de um novo marco para a aplicação da instrumentalidade das formas, que vem ganhando cada vez mais espaço na busca por um processo de resolução de conflitos eficiente.

Os meios de comunicação evoluíram de forma acentuada nas últimas décadas, trazendo mudanças que impactaram de forma drástica o dia a dia dos profissionais do direito. Se em um passado não tão distante já foi comum a rotina de se deslocar às pressas para o fórum para fazer um protocolo, ou até mesmo que este fosse feito via fax, hoje, a regra é que os processos tramitem de forma eletrônica. Muitas destas evoluções surgiram por conveniência. Outras delas, foram adotadas em razão da necessidade – especialmente, por restrições impostas em um contexto de pandemia de Covid-19 entre 2020 e 2022. Diante daquele cenário, além de medidas transitórias, houve uma aceleração na modernização do modelo de trabalho, com consequências que perduraram além do período de restrições.

Somado ao processo eletrônico, que já era regra, as audiências e os despachos passaram a ser preponderantemente em modelo virtual, e até mesmo a citação e a intimação, atos historicamente considerados solenes, para que sirvam como prova inequívoca do conhecimento sobre o processo ou das decisões, passaram a ser admitidos em meio eletrônico. Todos esses atos foram chancelados pelas cortes superiores e pelo CNJ.

A convenção de haia

Paralelamente a este cenário de evolução, em 2019, o decreto 9.734 promulgou o texto da convenção de haia sobre citação, firmado em 1965. Apesar da data em que finalmente promulgado o texto em território nacional, os esforços para a adesão do Brasil às convenções processuais da HCCH se iniciaram cerca de 20 anos antes. Entre seus propósitos, a convenção sobre citação buscaria simplificar e facilitar o procedimento de citação, intimação e notificação de processos que tramitem no exterior.

Para a homologação de uma sentença estrangeira, o ordenamento jurídico nacional exige, entre outros requisitos, que a decisão tenha sido precedida de citação regular, ainda que verificada a revelia (LINDB, art. 15, ‘b’ e CPC, art. 963, inc. II). Com efeito, em se tratando de réu domiciliado no Brasil, caberá à autoridade brasileira o cumprimento de diligências deprecadas por autoridades estrangeiras (LINDB, art. 12, §2º). Em atenção a essa exigência, antes mesmo que a convenção de haia fosse editada – e, muitas décadas antes de sua adoção formal no Brasil –, sob a égide da CF/46, o STF já entendia que a regularidade da citação de pessoa domiciliada no Brasil em processo estrangeiro dependeria de sua citação ter-se efetivado por carta rogatória, após a concessão do exequatur pelo presidente do STF (STF, SE 1.578/RJ, relator ministro Hahnemann Guimarães, j. 20.10.1958).

Este entendimento continuou sendo aplicado pela nova corte competente, após a emenda constitucional 45/04, que transferiu a competência para decidir tais demandas ao STJ. Na maioria dos acórdãos proferidos sobre o tema, e que adotaram aquela conclusão, a situação fática apresentada é de um pedido de homologação de sentença estrangeira proferida à revelia, em processo estrangeiro que a citação se deu por edital. Mais do que o descumprimento de um preceito de forma, a negativa à homologação de tais decisões se pautava na incerteza se a citação do réu foi eficaz, existindo dúvidas se lhe foi garantido o direito ao contraditório.

Por coincidência ou não, este cenário enfrentou uma mudança mais relevante exatamente em 2019, ano em que promulgada no Brasil a convenção de haia sobre citação. As exceções, inicialmente, se deram no âmbito de processos que tratavam sobre direito de família. Para admiti-las, foi considerado que o requerente provou que teria adotado medidas consideradas satisfatórias para a localização do requerido, e que o paradeiro do requerido seria desconhecido (STJ, SEC 15.985/EX, relator ministro Nancy Andrighi, j. 23.9.2019 e HDE 144/EX, relator ministro OG Fernandes, j. 4.9.2019). Em outros casos, também envolvendo direito de família, entendeu-se que teria sido provado que o requerido teve ciência da demanda, apesar de não ter comparecido para respondê-la (STJ, SEC 5.268/EX, relator ministro Castro Meira. j. 4.9.2019).

Apesar de ser tema comum neste âmbito, nenhum daqueles acórdãos se pautou em alguma particularidade afeita ao direito de família para fundamentar a homologação da decisão estrangeira. Eventual conclusão de que a possibilidade de “flexibilizar” a forma de citação seria restrita a processos dessa natureza não se fundamentaria naquilo que foi expressamente decidido pelo STJ, mas em inferências subjetivas, talvez, influenciadas pela percepção de que a sensibilidade do direito material discutido pudesse interferir no quão disposto o tribunal estaria a flexibilizar a observância de preceitos de forma.

HDE 8.123/EX – A instrumentalidade das formas

Nos autos do HDE 8.123/EX buscava-se a homologação de sentença estadunidense que condenou a requerida ao pagamento de mais de 30 milhões de dólares. O processo estrangeiro correu à sua revelia, após citação realizada por WhatsApp e e-mail. Inicialmente, nos autos da demanda homologatória, foi proferida decisão monocrática que indeferiu o pedido de homologação, pautando-se exatamente na percepção de que, exemplificativamente, “a prescindibilidade de tal ato processual [citação por carta rogatória de pessoa domiciliada no Brasil], [seria admitida] excepcionalmente, em caso de processo de adoção em que há o abandono do pai biológico, e/ou desconhecimento do paradeiro dele, tendo sido empreendidos esforços necessários para sua localização”, ou em “situações específicas de ação de divórcio, com citação por edital no exterior, quando incerta a localização do réu, tendo a autoridade estrangeira adotado as cautelas necessárias para a formação da válida relação processual à luz do direito alienígena, e/ou quando evidenciado que o requerido teve ciência do feito”.

Ao julgar o agravo Interno interposto pela requerente, o STJ tomou decisão inédita. Em acórdão que reformou a decisão monocrática à unanimidade, para homologar a decisão estrangeira, afastou-se a distinção inicialmente feita acerca das relações de direito material, a turma julgadora considerou que a regra de citação por carta rogatória pode ser flexibilizada se a finalidade do ato, que é de assegurar o devido processo legal, for atingida. No entendimento do colegiado, seria o caso dos autos, pois foi provado que a requerida teve ciência da disputa e que o requerente empreendeu esforços para a sua citação, a partir de e-mails, mensagens de WhatsApp e registro de ligações.

Todos esses contatos, apesar de respondidos pela requerida, não levaram à formalização da citação, o que foi atribuído à intenção da requerida em se furtar dos efeitos de eventual resultado desfavorável.

A corte especial do STJ rejeitou a defesa da requerida, cujo único argumento se pautava no aspecto formal da citação. Segundo ela, ao fazer reserva expressa ao art. 10 da convenção de haia – que prevê os meios alternativos, mais céleres, para a citação –, o Brasil teria desautorizado que fosse adotado meio diferente da carta rogatória. Contudo, no entendimento do STJ, a defesa da requerida “contraria a finalidade da norma que exige a citação por rogatória”.

Em paralelo, após agravo Interno interposto pela requerida que buscava a reforma do capítulo referente aos honorários sucumbenciais, que haviam sido fixados de forma equitativa, o STJ reiterou seu entendimento de que, em homologação de sentença estrangeira, aplica-se a regra do §8º do art. 85 do CPC. Conforme jurisprudência da corte, o §2º do art. 85 do CPC aplica-se apenas a ações de conhecimento quando há efetivo julgamento da lide, e não em ações de natureza meramente existencial – como foi denominada pelo STJ a natureza da ação de homologação de sentença estrangeira.

Conclusão

O entendimento sobre a instrumentalidade das formas do STJ, inédito no âmbito de homologação de decisão estrangeira em que são discutidas relações comerciais de repercussão estritamente patrimonial, tende a fragilizar o uso de táticas de guerrilhas no âmbito destes procedimentos, desincentivando que a parte com domicílio no Brasil fuja de responder demandas que lhe sejam movidas no exterior e de que tenha ciência. Da mesma forma, aumenta a credibilidade do sistema jurídico nacional e dos sujeitos com domicílio no Brasil que atuem no exterior, devendo, a longo prazo, diminuir os custos de transação.

Luis Fernando Guerrero
(www.professorguerrero.com.br) Mestre e Doutor em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Sócio de Lobo de Rizzo e Professor Universitário.

Isabela Albini Maté
Advogada - Lobo de Rizzo Pontifícia Universidade Católica do Paraná - Bacharelado em Direito Universität zu Köln - Cologne Academy on International Commercial Arbitration Fundação Getulio Vargas - Pós Graduação em Direito Empresarial GVlaw

Pedro Henrique Porto Magalhães
Advogado - Lobo de Rizzo Faculdades Milton Campos - Bacharelado em Direito Universidade Federal de Minas Gerais - Mestrado Direito Processual

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