A regra expressamente prevista pelo art. 64 da lei 11.101/05 é que o devedor em recuperação judicial conserva seus administradores na condução da atividade empresarial, sob a fiscalização do administrador judicial, por meio da apresentação de documentação mensal e outras ferramentas que o administrador judicial entender pertinentes à efetividade de tal fiscalização.
No entanto, tal permanência do administrador na empresa, encontra as seguintes exceções: (i) condenação do administrador por crime cometido em recuperação judicial ou falência anteriores ou por crime contra o patrimônio, a economia popular ou a ordem econômica; (ii) indícios veementes de crimes falimentares; (iii) houver agido com dolo, simulação ou fraude contra os interesses de seus credores; (iv) condutas que revelem o esvaziamento patrimonial; (v) negar-se a prestar informações solicitadas pelo administrador judicial ou (vi) tiver seu afastamento previsto no plano de recuperação judicial.
Significa dizer que ao judiciário caberá o afastamento do administrador da empresa que praticar os atos acima elencados. O legislador, com tal previsão, buscou prestigiar a boa-fé do devedor que pede socorro ao judiciário por meio da recuperação judicial, não podendo utilizá-la de ferramenta ao escape de suas obrigações, esvaziamento ou confusão patrimonial, ou até mesmo a despeito da situação de crise, ostentar condição veementemente distinta que o gestor de uma empresa nestas condições teria.
Para tais casos, o art. 65 da lei 11.101/05 prevê que o administrador do devedor poderá ser afastado, nomeando-se, por meio de assembleia geral de credores, um gestor judicial responsável por gerir a empresa.
Ainda, o parágrafo primeiro do aludido artigo prevê que até deliberação pelos credores a respeito da escolha pelo gestor judicial, o administrador judicial exercerá a função de gestor judicial. No entanto, na prática, o que se verifica é que os juízos que determinam o afastamento do administrador da recuperanda, na mesma decisão, nomeiam provisoriamente um gestor judicial, até que se delibere efetivamente por meio da Assembleia Geral de Credores sobre sua permanência ou nomeação de outro profissional para exercício de tal função.
Tal aplicação prática se mostra de fácil compreensão, tendo em vista que ao gestor judicial cabe função de extrema importância, ainda mais em uma empresa em crise, mostrando-se, no mínimo questionável, a escolha do legislador em cumular tal função à do administrador judicial, que possui suas próprias (e muitas) atribuições.
Sendo assim, desde a nomeação do gestor judicial, o que se tem é o afastamento do administrador da empresa, o qual pode ser total ou parcial, cabendo ao Juízo Universal adotar a proporção do afastamento que melhor convenha às particularidades do caso. Por exemplo, é possível que o Juízo Universal estabeleça o afastamento do administrador somente das atividades de gestão financeira da empresa, mantendo-o como responsável pelo comercial, caso sua atuação seja umbilical e pessoalmente vinculada ao sucesso das vendas, em razão da relação possivelmente havida com seus clientes ou fornecedores.
Com o afastamento total do administrador, por outro lado, o gestor judicial é inserido em um ambiente que lhe proporciona maior autonomia para administrar a empresa e aplicar as mudanças que entender pertinente, mediante sua experiência e observação, o que pode se mostrar ao mesmo tempo desafiador e decisivo ao soerguimento da empresa em crise.
A este respeito, diante da ausência de previsão expressa pela lei 11.101/05 sobre a qualificação de tal profissional, aplica-se por analogia o artigo 21 do referido dispositivo, devendo o gestor judicial ser preferencialmente, profissional advogado, economista, administrador de empresas, contador ou pessoa jurídica especializada.
Tais pontos positivos levam o Juízo a optar pelo afastamento do administrador em casos com fortes indícios ou até mesmo comprovação de que a conduta adotada pelo administrador vai contra os interesses da empresa, que não deve sofrer pela tomada de decisão do administrador que em verdade não age ao encontro de seu soerguimento.
No entanto, um dos pontos que chama a atenção em torno desta questão é o fato de que a recuperação judicial é procedimento finito, ainda mais com a alteração da Lei 11.101/05 pela lei 14.112/20, que prevê no artigo 61 que após concessão da recuperação judicial, o juiz poderá determinar a manutenção do devedor em recuperação judicial até que sejam cumpridas todas as obrigações previstas no plano que vencerem até, no máximo, 2 (dois) anos depois de tal concessão, independentemente das carências para início de pagamento previstas no Plano.
Significa dizer que após homologação do Plano de Recuperação Judicial e concessão da recuperação, o processo poderá ser encerrado, e consequentemente a fiscalização exercida pelo administrador judicial, antes mesmo do prazo conhecido como “biênio de fiscalização”, devendo a recuperanda continuar cumprindo com suas obrigações previstas no Plano de Recuperação Judicial, sob pena de que os credores a executem independentemente de haver recuperação judicial em trâmite, mas sim por vias autônomas, ou então, requerer a falência da empresa, nos termos do art. 62 da lei 11.101/05.
A este respeito, o STJ possui entendimento consolidado:
“HABILITAÇÃO RETARDATÁRIA DE CRÉDITO TRABALHISTA. TERMO FINAL DE APRESENTAÇÃO. SENTENÇA DE ENCERRAMENTO DO PROCESSO DE SOERGUIMENTO. 1. Ação ajuizada em 31/8/2016. Recurso especial interposto em 26/2/2019. Autos conclusos à Relatora em 25/9/2019. 2. O propósito recursal é estabelecer o prazo final para habilitação retardatária de crédito na recuperação judicial. 3. Uma vez homologado o quadro-geral de credores (como ocorrido no particular), a única via para o credor pleitear a habilitação de seu crédito é a judicial, mediante a propositura de ação autônoma que tramitará pelo rito ordinário e que deve ser ajuizada até a prolação da decisão de encerramento do processo recuperacional. 4. Na espécie, o acórdão recorrido foi expresso ao reconhecer que o pedido de habilitação foi formulado quando a recuperação judicial já havia se findado, de modo que não há razão apta a ensejar o acolhimento da pretensão do recorrente, que deve se utilizar das vias executivas ordinárias para buscar a satisfação de seu crédito.” RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO. (REsp 1840166/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 10/12/2019, DJe 13/12/2019).
Ou seja, o encerramento da recuperação judicial, ainda que anterior ao prazo de dois anos de sua concessão, não implica na ausência de consequências à recuperanda pelo inadimplemento do Plano de Recuperação Judicial, que poderá ser exigido por ação autônoma.
Cumpre salientar, no entanto, que o fato de que a recuperação judicial tem previsão de fim, inclusive recentemente encurtado pela lei 14.112/20, implica na deliberação pelo Juízo Universal, a respeito da devolução, ou não, da empresa para seu administrador original.
Isto porque, concluído o procedimento da recuperação judicial, não parece haver sentido a manutenção do gestor judicial nomeado nos autos deste procedimento. Tal questão nos leva a seguinte problemática: ao que parece, o judiciário tem optado por nomear um gestor judicial justamente nas hipóteses do artigo 64, incisos I e IV, que dizem respeito a prática de crimes falimentares e esvaziamento ou confusão patrimonial.
Ora, o fato de que a empresa ultrapassou seu período em recuperação judicial, e em tese, se encontra econômica e financeiramente mais equilibrada, não tem o condão de inibir o administrador anteriormente afastado de praticar as mesmas condutas que o levaram ao afastamento, ainda mais porque, encerrada a recuperação judicial, encerrase também a fiscalização do administrador judicial.
Verifica-se, assim, que a lei 11.101/05 parece ter atribuído maior importância à manutenção da empresa durante sua recuperação judicial, sem considerar, contudo, o que ocorreria depois, com o retorno do administrador à sua posição original. Tal situação se agrava ainda mais se considerarmos que há grande parcela de administradores de empresas que em verdade são seus sócios majoritários ou fundadores; e que naturalmente, não deixarão de ocupar seu lugar na gestão de forma voluntária.
No mais, outro ponto de reflexão é a possibilidade de manutenção do afastamento do gestor mesmo após encerramento da recuperação judicial, o que não parece razoável, tendo em vista que não se pode negar que o gestor judicial nomeado exerce função de fidúcia com patrimônio de terceiro, que a ele deve ser retornado.
Outra hipótese que se pode imaginar é que durante o exercício da gestão pelo gestor judicial, os crimes falimentares ocorridos sejam apurados, haja uma condenação ao administrador e ele jamais retorne à empresa; o que na prática, entretanto, parece não se encaixar dentro deste tempo em que a recuperação judicial tramita e o gestor judicial exerce sua função, tendo em vista que este tipo de ação costuma se alongar no tempo até deliberação final com julgamento dos recursos cabíveis.
Uma terceira hipótese é a apuração dos atos imputados ao administrador afastado e eventual reconhecimento de que são improcedentes; caso em que não há dúvidas de que seu retorno a empresa deverá ser implementado. Portanto, o que se tem em verdade é uma ferramenta atribuída pela legislação falimentar que na melhor das intenções previu que o administrador que pratica atos que não homenageiam o soerguimento da empresa seja afastado, e em seu lugar, a gestão seja exercida por profissional com expertise no tema.
No entanto, a lei parece não ter previsto o que ocorre com o término da recuperação judicial com relação ao assunto; deixando a cargo do judiciário entender qual caminho a empresa deve tomar com relação ao retorno de seu administrador.