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Regulação dos cigarros eletrônicos no Brasil: déjà vu na interação entre Congresso, Anvisa e STF?

A tentativa do Congresso Nacional de regular, por meio de lei, questões relacionadas ao direito à saúde, que demandam a realização de análises científicas de risco, não é novidade no país.

13/9/2024

Tramita no Senado Federal o PL 5.008/23, de autoria da senadora Soraya Thronicke, que regula os cigarros eletrônicos no Brasil. Ao longo de 37 artigos, o PL 5.008/23 fornece uma disciplina bastante detalhada sobre o tema, abordando questões como o conceito de cigarro eletrônico, a forma como certos órgãos federais – Anvisa, Inmetro, Receita Federal e Anatel – exercerão suas respectivas competências, o volume máximo do líquido contendo nicotina e respectiva concentração, as especificações dos cigarros eletrônicos, as informações que devem constar no folheto interno e na embalagem do produto, as providências de gerenciamento de risco que devem ser observadas pelas empresas fabricantes ou importadoras, a publicidade e a comercialização dos cigarros eletrônicos, dentre outras.

A tentativa do Congresso Nacional de regular diretamente, por meio de lei, questões relacionadas ao direito à saúde, que demandam a realização de análises científicas de risco, não é novidade no país. Dois casos recentes são emblemáticos.

No caso da denominada “pílula do câncer”, o Congresso Nacional aprovou o PL 4.639/2016 para criar um regime de exceção e, com isso, permitir que pacientes com neoplasia maligna tivessem acesso à fosfoetanolamina sintética. Sancionada pela presidente Dilma Rousseff, a lei 13.269/16 autorizou a produção da substância independentemente de registro sanitário, bem como o seu uso por pacientes diagnosticados com neoplasia maligna, desde que houvesse laudo médico comprovando o diagnóstico e o paciente ou seu responsável assinasse um termo de consentimento e responsabilidade. O caso foi parar no Supremo Tribunal Federal (ADIn 5.501), que imediatamente concedeu uma liminar para suspender a eficácia da lei e, depois, em 2020, proclamou a sua inconstitucionalidade por violar o princípio da separação de poderes e o direito fundamental à saúde.

O outro caso emblemático envolveu as chamadas “substâncias para combater a obesidade”. Em 2011, a Anvisa resolveu proibir o uso de anfepramona, femproporex e mazindol e limitar o uso da sibutramina até determinada dose diária. Em um primeiro momento, o Congresso Nacional aprovou o decreto legislativo 273/14, sustando o ato normativo da Anvisa. Três anos depois, o Congresso Nacional aprovou a lei 13.454/17, autorizando a produção, a comercialização e o consumo dos anorexígenos. Também aqui o STF declarou, no ano de em 2021, a inconstitucionalidade da lei (ADIn 5.779) sob o fundamento de proteção insuficiente do direito à saúde.

Quais perspectivas esse contexto histórico pode oferecer para a realização de análises úteis envolvendo o caso da regulação dos cigarros eletrônicos no Brasil?

Uma primeira perspectiva, talvez mais evidente, é que o Congresso Nacional não se furta a adentrar o espaço de atuação da Anvisa para regular diretamente, por meio de lei, questões relacionadas ao direito à saúde, mesmo que tais questões exijam a realização de análises científicas de risco – algo que caberia à Anvisa, e não ao Congresso Nacional.

Dito de outro modo, muito embora tenha criado a Anvisa com o status de agência reguladora independente e proporcionado as condições para que ela desenvolvesse uma significativa expertise no campo da vigilância sanitária, o Congresso Nacional, diante de questões que despertam significativa controvérsia na sociedade, assume para si a tarefa de regular tais questões, não se constituindo como um óbice à atividade legiferante o fato de que tal regulação precisa empreender análises científicas de risco.1

Uma segunda perspectiva, sobre a qual concentro a minha análise, diz respeito à evolução das estratégias adotadas pelo Congresso Nacional para regular questões relacionadas ao direito à saúde que dependem do emprego do conhecimento científico. Nesse contexto, identifico a existência de um processo de aprendizagem institucional por parte do Congresso Nacional.

No caso da pílula do câncer, quando o tema começou a ser debatido no Congresso Nacional, inexistiam estudos científicos comprovando a segurança e eficácia da fosfoetanolamina sintética. Tampouco havia qualquer pedido de registro da substância junto à Anvisa. Analisando o processo legislativo e a justificativa do PL nº 4.639/2016, é possível inferir que os congressistas, como forma de superar esse déficit científico, confiaram na expertise dos pesquisadores do Instituto de Química de São Carlos (IQSC) da Universidade de São Paulo (USP), responsáveis pelo desenvolvimento da fosfoetanolamina sintética, estabelecendo uma espécie de presunção de segurança e eficácia em prol da substância com base no trabalho que esses pesquisadores haviam desenvolvido até aquele momento.2

O Supremo Tribunal Federal parece ter reputado essa justificativa bastante precária, a ponto de ter concedido medida liminar e, no mérito, considerado que houve violação ao princípio da separação de poderes: a Anvisa habita o território da ciência, ao passo que o Congresso Nacional habita o território da política; ultrapassar a cerca que divide esses territórios configuraria uma invasão de um poder sobre o outro, algo vedado pela Constituição Federal.

Já no caso das substâncias para combater a obesidade, até 2011 as referidas substâncias eram permitidas pela Anvisa. Com a publicação da RDC 52/11, a Anvisa passou a proibir o uso de anfepramona, femproporex e mazindol e a limitar o uso da sibutramina até determinada dose diária (quinze miligramas por dia). Analisando os processos legislativos e as justificativas tanto do Decreto Legislativo 273/14 quanto da lei 13.454/17, é possível observar que os congressistas utilizaram a mesma estratégia argumentativa: de um lado, atacaram a credibilidade dos estudos desenvolvidos pela Anvisa; de outro, invocaram a expertise e credibilidade de diversas entidades médicas – incluindo o Conselho Federal de Medicina –, que se posicionaram contrariamente ao veto da Anvisa.3

Neste caso, o Supremo Tribunal Federal não parece ter considerado o embasamento científico da lei tão precário quanto no caso da pílula do câncer – o posicionamento, em uníssono, de várias entidades médicas parece ter mitigado o receio dos ministros de verem políticos legislando sobre questões que demandavam a realização de análises científicas de risco. Aqui não houve concessão de medida liminar e o fundamento da inconstitucionalidade não foi a violação ao princípio da separação de poderes, mas sim a proteção insuficiente do direito à saúde.

Estes casos ajudam a compreender a forma como o Congresso Nacional procura regular, por meio de lei, os cigarros eletrônicos no Brasil. O caso da pílula do câncer demonstra aos parlamentares que, se disciplinarem o uso de produto ou substância com base em uma análise científica de risco deficiente, o Supremo Tribunal Federal, no caso de ajuizamento de uma ADI, poderá intervir de forma mais incisiva, a ponto de conceder medida liminar para suspender a eficácia da lei e, no mérito, considerá-la inconstitucional por violação ao princípio da separação de poderes.

O caso das substâncias para combater a obesidade acrescenta novas perspectivas de análise. Aqui a questão científica era mais controvertida, o que parece ter permitido uma maior influência da política sobre o tema. Ao longo de muitos anos, a Anvisa vinha permitindo o uso dos anorexígenos, e quando decidiu proibir e impor limites sobre o uso de tais substâncias, diversas entidades médicas se posicionaram contrariamente ao novo regime regulatório. Outro aspecto que evidencia essa controvérsia científica é que não havia um consenso científico entre os mais variados países sobre as referidas substâncias.4

Esse último aspecto – ausência de consenso científico nos mais variados países – poderia militar a favor do ímpeto do Congresso Nacional em regular os cigarros eletrônicos no Brasil. Como consta na justificativa do PL 5008/2023, “mais de 80 países, como Reino Unido e os 27 países da União Europeia optaram por regular os cigarros eletrônicos.”5 No entanto, ao contrário do que se observou no caso das substâncias para combater a obesidade, a Anvisa não vinha permitindo os cigarros eletrônicos no Brasil. Além disso, os congressistas não contam com o apoio de entidades médicas para justificar a liberação desses produtos no país. Tais questões podem restringir, de maneira significativa, a margem de discricionariedade legislativa dos parlamentares, que fica, assim, sujeita a um maior controle judicial.

Diante desse cenário, a solução adotada pelos congressistas para regularem, por meio de lei, os cigarros eletrônicos parece se basear em um aspecto específico do voto proferido pelo ministro Edson Fachin no julgamento da ADIn 5.779. Segundo o ministro Fachin, responsável por redigir o acórdão, o Congresso Nacional até poderia autorizar o uso, a produção e a comercialização de medicamentos, desde que proporcionasse as mesmas garantias de segurança que a Anvisa oferece para a população. Nas palavras do ministro Fachin, o Congresso Nacional precisaria emitir “minudente regulamentação”, o que incluiria a indicação de “formas de apresentação do produto, disposições relativas à sua validade e condições de armazenamento, dosagem máxima a ser administrada”.6

Analisando o PL 5.008/23, verifica-se que o Congresso Nacional está discutindo a regulação do cigarro eletrônico no Brasil mediante norma que disciplina, de maneira extensa e detalhada, a produção, importação, exportação, comercialização, controle, fiscalização e propaganda dos cigarros eletrônicos. É nesse contexto que identifico um processo de aprendizagem institucional: o Congresso Nacional, para evitar a interferência do Poder Judiciário sobre a sua atividade legiferante, elabora um projeto de lei cuja estrutura jurídica se amolda a um recente e importante precedente do Supremo Tribunal Federal sobre matéria correlata.

Essa nova estratégia do Congresso Nacional enseja uma reflexão crítica sobre a forma como o Supremo Tribunal Federal realiza o controle de constitucionalidade de leis que disciplinam questões relacionadas ao direito à saúde, inclusive efetuando análises de risco – algo que, repita-se, na visão de muitos, caberia exclusivamente à Anvisa, e não ao Congresso Nacional.

No acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal na ADI nº 5.779, consta que o Congresso Nacional, para legislar sobre questões que envolvem o direito à saúde, deve oferecer “minudente regulamentação”. Pois é justamente isso que o Congresso Nacional está fazendo no PL 5008/2023, oferecendo, ao longo de 37 artigos, uma disciplina extensa e detalhada sobre os cigarros eletrônicos.

Se o PL 5008/2023 virar lei, e a constitucionalidade dessa lei vier a ser questionada, o que fará o Supremo Tribunal Federal? Irá, por exemplo, debruçar a sua análise sobre os arts. 11, 12 e 13, que discriminam as especificações dos cigarros eletrônicos? Decidirá o STF que o rol é taxativo? Ou é exemplificativo, preservando algum espaço para a atuação da Anvisa? De modo mais amplo, o STF assumirá para si a responsabilidade de afirmar que os 37 artigos do PL 5008/2023 oferecem – ou não oferecem – proteção suficiente do direito à saúde?

O campo da regulação de riscos no Brasil proporciona ricas perspectivas de análise das complexas interações entre Estado, ciência e sociedade. A regulação dos cigarros eletrônicos acrescenta novas dinâmicas de interação e aponta para um horizonte cheio de desafios, que inclui a possibilidade de ressignificação do papel do Congresso Nacional, da Anvisa e do Supremo Tribunal Federal na regulação de riscos no Brasil.

________

1 Nesse contexto, muitos doutrinadores têm argumentado a favor da existência de uma “reserva de regulação”. MOREIRA, Egon Bockmann. Regulação sucessiva: quem tem a última palavra? Caso pílula do câncer: ADI nº 5.501, STF. In: MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; MOREIRA, Egon Bockmann; GUERRA, Sérgio (org.). Dinâmica da regulação. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2021; NASCIMENTO, Roberta Simões. A legislação baseada em evidências empíricas e o controle judicial dos fatos determinantes da decisão legislativa. Revista Eletrônica da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro – PGE-RJ, Rio de Janeiro, v. 4 n. 3, set./dez. 2021; NASCIMENTO, Roberta Simões. Qual peso devem ter as evidências científicas para tomar uma decisão legislativa? Jota, [S. l.], 27 out. 2021. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/inibidores-de-apetite-27102021. Acesso em: 17 nov. 2022; PINHO, Clóvis Alberto Bertolini de. Reserva de administração (ou regulação) e leis de iniciativa parlamentar em matéria de regulação: uma análise da posição do Supremo Tribunal Federal. Revista de Direito Público da Economia, Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 23-43, 2022.

2 Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=3738814&ts=1630411242453&disposition=inline&_gl=1*i79fuc*_ga*MjEwNzQ2ODE3My4xNjgwMTAwNTAz*_ga_CW3ZH25XMK*MTY5Mjg5ODMzMC44LjAuMTY5Mjg5ODMzMC4wLjAuMA; https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1440430&filename=PL%204639/2016. Acesso em: 10 set. 2024.

3 Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=586952; https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=3521413&ts=1635452483213&disposition=inline. Acesso em: 10 set. 2024.

4 No julgamento da ADI nº 5.779, o voto do ministro Nunes Marques ofereceu detalhes sobre as diferenças que caracterizavam o comportamento de outros países com relação às substâncias para combater a obesidade: “Basta ver que a sibutramina, a qual não foi banida no Brasil, é rejeitada tanto pelo FDA (Estados Unidos) como pela EMA (Europa). Já a anfepramona (dietilpropiona), droga mais antiga e barata que a sibutramina, embora aceita pelo FDA, foi vedada pela agência brasileira. Ou seja, não há consenso técnico absoluto no tema, no plano internacional, que permita qualificar a decisão do Congresso Nacional como anticientífica, consoante quer fazer crer a autora da ação.” Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5263364. Acesso em: 10 set. 2024.

5 Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9481955&ts=1724171506407&disposition=inline. Acesso em: 10 set. 2024.

6 Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5263364. Acesso em: 10 set. 2024.

Péricles Gonçalves
Professor da FGV Direito Rio. Doutor e mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio. Research Fellow na Harvard Kennedy School.

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