Migalhas de Peso

O julgamento do STF sobre as testemunhas de Jeová e o enunciado 40 da I Jornada de Direito da Saúde do Conselho da Justiça Federal

O julgamento no STF sobre a recusa de transfusões de sangue por Testemunhas de Jeová destaca a importância do consentimento informado e diretivas antecipadas.

12/9/2024

O Supremo Tribunal Federal, na sessão do dia 08 de agosto deste ano, iniciou o julgamento dos Temas 952 (RE 979.742), de Relatoria do Ministro Presidente Luís Roberto Barroso, e 1.069 (RE 1.212.272), de Relatoria do Ministro Gilmar Mendes. Os temas estão relacionados à autodeterminação confessional das Testemunhas de Jeová em recusar transfusões de sangue e ao custeio do tratamento sem sangue pelo Sistema Público de Saúde. Após a leitura do relatório e a realização das sustentações orais das partes e dos amici curae o julgamento foi suspenso.

O Supremo Tribunal Federal retomará o julgamento dos casos na sessão ordinária do dia 18 de setembro.

Dos argumentos apresentados nas sustentações orais, na sessão ordinária de 08 de agosto, destacam-se dois fatos: (a) o tratamento sem sangue requerido pelos pacientes Testemunhas de Jeová possui a chancela da Organização Mundial de Saúde (OMS), que publicou, em 2021, diretriz Mundial1 para a implementação do programa de gerenciamento do sangue do próprio paciente (PBM – sigla em inglês para Patient Blood Management); e (b) o Sistema Público de Saúde já possui os aparatos, insumos e máquinas necessárias para o atendimento destes pacientes que possuem a recusa terapêutica quanto ao uso de sangue2.

Entretanto, na sessão plenária foi levantado interessante questionamento pelo Ministro Flávio Dino (denotando a percuciência de alguém que, além do notório saber jurídico, também possui valiosa experiência prática, adquirida no exercício de importantes cargos nas esferas legislativa e executiva), quanto à forma como um paciente manifestaria a sua vontade quanto a sua recusa terapêutica, notadamente em uma situação de atendimento médico não eletivo ou até mesmo estando o paciente inconsciente.

Exatamente sobre esta temática, na recente data de 29 de agosto de 2024, o Conselho da Justiça Federal divulgou o caderno dos enunciados aprovados na I Jornada de Direito da Saúde3. E, o Enunciado 40 da I Jornada de Direito da Saúde destaca a necessidade do consentimento livre, consciente e informado para intervenções médicas em pacientes adultos e capazes, bem como a validade e eficácia jurídicas de documento contendo diretivas antecipadas, caso o paciente não possa expressar sua escolha terapêutica (como no caso de estar inconsciente):

Enunciado 40: A intervenção médica ou cirúrgica em paciente adulto e capaz exige o seu prévio e expresso consentimento livre, consciente e informado, que inclui o direito de recusa, salvo a hipótese de emergência médica em que o paciente não possa externar a sua autodeterminação e não tenha deixado diretivas antecipadas de vontade que permitam ao médico conhecer as escolhas do paciente.

A fundamentação legal que justifica o enunciado é o consentimento informado, que está previsto no artigo 15 do Código Civil e é reforçado pela jurisprudência dos Tribunais Superiores, como nas decisões do STF (ADPF 54 e ADIs 6586 e 6587) e do STJ (REsp 1.540.580/DF e REsp 1.848.862/RN) e está em sintonia com o “Pacto Nacional do Judiciário pelos Direitos Humanos”e também com o slogan escolhido pela OMS para o Dia Mundial da Segurança do Paciente de 2023 “Eleve a voz dos pacientes!”5.

Ademais, este novo Enunciado 40 da I Jornada de Direito da Saúde do Conselho da Justiça Federal complementa e se harmoniza com os conceitos jurídicos que informam outros dois importantes Enunciados quanto ao consentimento informado e o uso de documento contendo diretivas antecipadas sobre questões de saúde:

Conselho Nacional de Justiça - FONAJUS

“Enunciado n.º 37: As diretivas ou declarações antecipadas de vontade, que especificam os tratamentos médicos que o declarante deseja ou não se submeter quando incapacitado de expressar-se autonomamente, devem ser feitas preferencialmente por escrito, por instrumento particular, com duas testemunhas, ou público, sem prejuízo de outras formas inequívocas de manifestação admitidas em direito.”

Conselho da Justiça Federal - V Jornada de Direito Civil

“Enunciado 528: É válida a declaração de vontade expressa em documento autêntico, também chamado "testamento vital", em que a pessoa estabelece disposições sobre o tipo de tratamento de saúde, ou não tratamento, que deseja no caso de se encontrar sem condições de manifestar a sua vontade.”

Ademais, o próprio Conselho Federal de Medicina já possui Resolução sobre o tema (Resolução 1995/2012) que dispõe sobre o uso de Diretivas Antecipadas de Vontade do Paciente e a forma como o profissional médico deve se portar diante de tal documento.

Por esta razão, as Testemunhas de Jeová costumam fazer uso de documento contendo diretivas antecipadas acerca de tratamento médico, que expressa claramente a sua recusa a transfusões de sangue em caso de incapacidade, em conformidade com o artigo 104 do Código Civil, e nomeia procuradores para representação nessa situação, conforme artigo 653 do Código Civil.

Para os que militam nas áreas jurídica e médica, é crucial entender a aplicação do consentimento informado e das diretivas antecipadas de vontade. Os Recursos Extraordinários em julgamento no STF reforçam a importância da autodeterminação e do respeito às crenças individuais, alinhando-se com o recentemente divulgado Enunciado 40 (da I Jornada de Direito da Saúde do Conselho da Justiça Federal) e a proteção dos direitos dos pacientes.

O referido Enunciado 40 e os julgamentos em curso no STF sublinham a importância do consentimento informado e da autodeterminação, fundamentais para a prática médica e a segurança jurídica. Os profissionais do Direito aguardam com atenção o desfecho do julgamento dos Temas 952 (RE 979.742) e 1.069 (RE 1.212.272), pautado para o dia 18 deste mês, para garantir a proteção dos direitos dos pacientes.

______

1 Vide, por favor, a referida diretriz publicada no site da OMS, com o título “The urgent need to implement patient blood management: policy brief”:  https://www.who.int/publications/i/item/9789240035744

2 Conforme normativas RENAME (https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/sectics/rename) e RENEM (https://portalfns.saude.gov.br/renem/) do Ministério da Saúde

3 Vide, por favor, na página oficial do Conselho da Justiça Federal, o caderno de enunciados aprovados: https://www.cjf.jus.br/cjf/noticias/2024/agosto/divulgada-a-lista-dos-47-enunciados-aprovados-na-i-jornada-de-direito-da-saude/view

4 Vide, por favor, página do site do CNJ com mais detalhes sobre o referido Pacto Nacional do Judiciário Pelos Direitos Humanos: https://www.cnj.jus.br/poder-judiciario/relacoes-internacionais/monitoramento-e-fiscalizacao-das-decisoes-da-corte-idh/pacto-nacional-do-judiciario-pelos-direitos-humanos/

5 O Dia Mundial da Segurança do Paciente de 2023 foi dedicado ao tema “Envolvendo pacientes para a segurança do paciente” e ao referido slogan “Eleve a voz dos pacientes!” – vide site oficial da OMS: https://www.who.int/campaigns/world-patient-safety-day/2023

Ricardo Brito Costa
Sócio da área de Contencioso Cível do Arystóbulo Freitas Advogados.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

A insegurança jurídica provocada pelo julgamento do Tema 1.079 - STJ

22/11/2024

Penhora de valores: O que está em jogo no julgamento do STJ sobre o Tema 1.285?

22/11/2024

ITBI - Divórcio - Não incidência em partilha não onerosa - TJ/SP e PLP 06/23

22/11/2024

Reflexões sobre a teoria da perda de uma chance

22/11/2024

STJ decide pela cobertura de bombas de insulina por planos de saúde

22/11/2024