A Comissão de Juristas, responsável pela revisão e atualização do Código Civil Brasileiro, instaurada perante o Senado Federal em agosto/23, marcou um importante momento na história do direito civil brasileiro. Integrada por renomados juristas de todo o país, a Comissão conduziu seus trabalhos com grandes debates e reflexões, realizando reuniões com autoridades especializadas e promovendo audiências públicas que ouviram as demandas da sociedade civil em relação aos pontos que precisam ser aprimorados no direito civil atual.
Com o ministro do STJ, Luís Felipe Salomão, à frente dos trabalhos, a Comissão desenvolveu, em um período de sete meses, um anteprojeto de lei meticuloso, garantindo que o texto fosse entregue com minúcia e harmonia, abrangendo todas as contribuições apresentadas de maneira racional e coesa. Em 17/4/24, o anteprojeto de lei de revisão e reforma do Código Civil foi formalmente entregue ao presidente do Senado Federal, senador Rodrigo Pacheco – PSD/MG, para a análise do Congresso Nacional.
Entre as principais inovações propostas no anteprojeto, destaca-se a introdução de um livro inédito, intitulado 'Do Direito Civil Digital'. A inserção da esfera digital em nosso Código Civil coloca o Brasil na vanguarda da matéria, apresentando uma inovação regulatória considerável diante das transformações e avanços da era digital e algorítmica, o que evidencia a necessidade de adaptação do direito, especialmente do direito privado, às novas realidades e tecnologias do século XXI.
O anteprojeto traz consigo uma estrutura que compatibiliza tecnologia, inovação e direitos fundamentais. Nas justificativas fornecidas pela Comissão de Juristas, observa-se a abordagem feita em relação ao avanço tecnológico e o quanto a realidade tecnológica da sociedade moderna demanda uma abordagem jurídica robusta, abrangente e ajustada aos desafios e mudanças impostos pelo ambiente digital. Essa análise deve considerar não apenas a salvaguarda dos direitos individuais e a regulamentação apropriada dos novos modelos de interação digital, mas também uma análise fundamentada sobre os efeitos dessas tecnologias na autonomia e na tomada de decisões de cada indivíduo.
A Comissão de Juristas estabeleceu quatro capítulos que tratam sobre as inovações tecnológicas, sendo eles: VII – Inteligência Artificial; VIII – Celebração de Contratos por Meios Digitais; IX – Assinaturas Eletrônicas; e X – Atos Notariais Eletrônicos (e-Notariado). O sétimo capítulo, tema a ser abordado no presente trabalho, define as diretrizes para a implementação e funcionamento de sistemas de Inteligência Artificial transparentes, seguros e confiáveis. Sob esse prisma, discutiremos a proteção atribuída aos direitos fundamentais e aos direitos de personalidade na criação de imagens de pessoas vivas ou falecidas, conforme disposto no capítulo VII.
Antes de tudo, é necessário ressaltarmos que os direitos fundamentais constituem o núcleo de proteção da dignidade da pessoa humana em seu sentido amplo, resultado de uma maturação histórica e constitucional, ampliando-se no decorrer das décadas cujas significações dependem de fatores extrajurídicos, peculiaridades sociais, históricas e culturais de cada país.1 A respeito da dignidade da pessoa humana, temos que este é “um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida”2. Todos são titulares de direitos fundamentais, visto se tratar de uma qualidade inerente ao ser humano.
Entre os diversos direitos inalienáveis conferidas à pessoa, enumerados na CF/88, encontram-se os direitos de personalidade, também tratados no CC/02, em seus artigos 11 a 21.3 Os direitos de personalidade são expressões da cláusula geral de tutela da pessoa humana, contida no art. 1°, III da Constituição.4 Tais direitos são subjetivos, permitindo à pessoa defender o que lhe é próprio, ou seja, sua integridade física e intelectual. Flávio Tartuce nos explica que “o que se busca proteger com tais direitos são os atributos específicos da personalidade, sendo esta a qualidade do ente considerado pessoa. Em síntese, pode-se afirmar que os direitos da personalidade são aqueles inerentes à pessoa e à sua dignidade (art. 1º, III, da CF/88).”.5
O avanço tecnológico e digital fez com que os direitos de personalidade tivessem que ganhar maior atenção para sua proteção, porque a evolução rápida da tecnologia, especialmente das Inteligências Artificiais - IA, que permitem compreender, gerar textos naturalmente coesos e analisar e produzir conteúdo (vídeos e imagens), aumenta a preocupação em torno da manipulação dessas ferramentas envolvendo pessoas físicas e jurídicas para fins ilícitos. Temos como exemplo, o PL 5.695/23, que tipifica penalmente a alteração de fotos, vídeos e som com o uso de sistema de IA para praticar violência contra a mulher.6
A pessoa é um centro de imputação jurídica, porque o Direito existe em função dela e para proporcionar seu desenvolvimento. Encontramos tal respaldo na seguinte proposição normativa do Livro VI do ‘Direito Civil Digital’ do anteprojeto: “A tutela dos direitos de personalidade, como salvaguarda da dignidade humana, alcança outros direitos e deveres que surjam do progresso tecnológico, impondo aos intérpretes dos fatos que ocorram no ambiente digital atenção constante para as novas dimensões jurídicas deste avanço.”
Entre as inovações trazidas pelo anteprojeto de lei, que compatibiliza as normas constitucionais e civilistas de proteção da personalidade, destaca-se a proposta de regulamentação da criação de imagens de pessoas por meio de IA (Capítulo VII – Inteligência Artificial). O texto dispõe sobre a permissão para a criação de imagens de indivíduos — estejam eles vivos ou já falecidos — utilizando-se mecanismos de IA, desde que com finalidade lícita. O texto também ressalta a necessidade de obtenção prévia e expressa de consentimento da pessoa, de seus herdeiros legais ou dos representantes do falecido para a utilização da imagem, sempre respeitando a dignidade e o legado da pessoa natural e evitando o uso para fins que possam desrespeitar seu modo de ser, conforme externado em vida por meio de suas manifestações, sejam elas de natureza cultural, religiosa ou política.
O texto prossegue tratando da permissão para a comercialização do uso da imagem gerada por IA de pessoa falecida, desde que haja autorização expressa do cônjuge, de seus herdeiros ou representantes, ou ainda, por disposição testamentária. Vale ressaltar que o testamento é um ato de última vontade, sendo o meio apropriado para outras expressões da liberdade pessoal. O testador faz disposições de natureza patrimonial ou extrapatrimonial, para serem cumpridas após sua morte. Segundo o Direito Romano, o testamento é a justa expressão de nossa vontade a respeito daquilo que cada qual quer que se faça depois de sua morte (Testamentum est voluntatis nostrae iusta sententia de eo, quod quis post mortem suam fieri velit). Um caso recente que ilustra bem o tema tratado é o da cantora norte-americana Madonna. Mundialmente conhecida, a artista ficou entre a vida e a morte após contrair uma infecção bacteriana. Diante do risco enfrentado, Madonna atualizou seu testamento e, de forma expressa, proibiu a criação de sua imagem por Inteligência Artificial e a criação de hologramas após sua morte7.
Embora o anteprojeto de reforma do Código Civil traga que deva haver a autorização prévia e expressa da pessoa para a utilização da imagem gerada por IA, ele é omisso ao indicar como essa permissão deve ser obtida. Essa autorização pode variar conforme a situação fática do caso concreto. Para tanto, encontramos hoje, junto ao extrajudicial brasileiro, instrumentos capazes de assegurar a proteção da imagem da pessoa em vida. Um grande exemplo, que ganhou repercussão e crescimento exponencial8 nos últimos tempos, são as DAV - Diretivas Antecipadas de Vontade. A DAV é definida como “um conjunto de instruções e vontades a respeito do corpo, da personalidade e da administração familiar e patrimonial que a pessoa quer deixar registrado para a eventualidade que a impeçam de expressar sua vontade”9. O cidadão tem à sua disposição o instrumento extrajudicial de proteção do que será feito com sua imagem nos casos em que se encontre impossibilitado de exprimir seus interesses.
Essa obrigatoriedade de autorização expressa tem como objetivo prevenir o uso difamatório ou desrespeitoso da imagem, uma vez que a proteção legal das criações de inteligência artificial deve considerar questões de consentimento, direito de imagem e propriedade intelectual, especialmente em contextos familiares e sociais sensíveis. É importante ressaltar que essas disposições também se aplicam aos avatares e outras representações digitais de pessoas jurídicas.
Como se pode verificar, há uma crescente preocupação com o avanço tecnológico, suas implicações e a proteção aos direitos da personalidade. Nesse cenário, o extrajudicial assume certo protagonismo, especialmente no primado da segurança jurídica10, uma vez que os titulares do direito, seus herdeiros, cônjuges ou representantes podem manifestar sua vontade — consentimento explícito e prévio — expressa em vida, para o uso de imagens geradas por IA utilizando de ferramentas já conhecidas no mundo jurídico, revestidas de fé pública, atribuídas aos delegatários das atividades notariais e de registros públicos, e validade jurídica.
O anteprojeto do Código Civil é um passo significativo para a regulação da inteligência artificial, buscando criar um ambiente que permita o avanço tecnológico ao mesmo tempo em que protege os direitos fundamentais, de personalidade e imagem. A eficácia dessa regulamentação dependerá de sua implementação prática e da criação de mecanismos claros que atestem e documentem o consentimento externado em vida, possibilitando alterações ou complementações ao anteprojeto, protegendo o primado da segurança jurídica, esmiuçando a contribuição do extrajudicial neste resguarde.
Agora, o anteprojeto ainda aguarda o protocolo pelo presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD/MG), para iniciar sua tramitação no Congresso Nacional. Durante esse processo, os parlamentares poderão fazer alterações significativas no texto atual, conforme o rito do processo legislativo ordinário, fazendo-se imperioso o acompanhamento da tramitação legislativa, de modo a identificar e analisar as mudanças propostas, avaliando os reais impactos dessas alterações.
1 MENDES, Gilmar. BRANCO, Paulo Gonet. Curso de Direito Constitucional, 18. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2023, 3116 p. E-book (213-225 p.)
2 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 35. ed. rev. e atual. (até a Emenda Constitucional n. 68, de 21.12.2011). São Paulo: Malheiros, 2012, p. 100.
3 TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: Volume Único. 12. ed. rev. atual. e aum. Rio de Janeiro: Forense, 2022. 3922 p. E-book (237 p.).
4 Enunciado n. 274 do CJF/STJ
5 Ibidem, 239-241
6 Disponível em: https://ibdfam.org.br/noticias/11535/Projeto+de+Lei+tipifica+crime+de+manipula%C3%A7%C3%A3o+de+fotos+e+v%C3%ADdeos+com+intelig%C3%AAncia+artificial+contra+a+mulher
7 Disponível em: https://exame.com/pop/hologramas-direitos-autorais-e-heranca-o-que-a-madonna-exige-apos-sua-morte/
8 Disponível em: https://ibdfam.org.br/noticias/8170/Registros+de+Diretivas+Antecipadas+de+Vontade+cresceram+nos+%C3%BAltimos+anos%3B+pandemia+deu+nova+import%C3%A2ncia+%C3%A0+discuss%C3%A3o
9 Disponível em: https://www.ggsadv.com/o-que-e-diretiva-antecipada-de-vontade/
10 É a posição de Luiz Guilherme Loureiro: “(...) podemos definir o direito notarial como o conjunto de normas e princípios que regulam a função do notário, a organização do notariado e os documentos ou instrumentos redigidos por este profissional do direito que, a título privado, exerce uma função pública por delegação do Estado.
O conceito do direito registral é similar: trata-se do conjunto de normas e princípios que regulam a atividade do registrador, o órgão do Registro, os procedimentos registrais e os efeitos da publicidade registrai, bem como o estatuto jurídico aplicável a este profissional do direito.
Mas a única similitude entre um e outro direito é a finalidade precípua de ambos os microssistemas, que é a segurança jurídica preventiva, e o estatuto legal aplicável aos respectivos agentes e profissionais do direito, ou seja, os modos de acesso às atividades próprias, os direitos, os deveres, os impedimentos e as responsabilidades.” in LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos – Teoria e Prática. 8. ed. Bahia: Juspodivm, 2021, p. 53-54.