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A desobediência de Elon Musk às ordens judiciais e suas consequências

Nossa liberdade de expressão está sujeitas a parâmetros legais, pois não é absoluta. Como estratégia de defesa ele ataca o ministro Alexandre de Moraes, mas o que está em jogo não é a personificação da contenda entre dois homens

5/9/2024

1. Quando uma empresa quer atuar no Brasil precisa fazer o quê?

Para que uma empresa estrangeira possa atuar no Brasil a primeira coisa que precisa fazer é se submeter às normas do Direito Brasileiro, tendo seus atos constitutivos aprovados no Brasil. A previsão não é nova e remonta a 1942, conforme o art. 11 da LINDB - lei de Introdução às normas gerais do Direito Brasileiro (decreto-lei 4.657, de 4/9/42), que segue:

Art. 11 - As organizações destinadas a fins de interesse coletivo, como as sociedades e as fundações, obedecem à lei do Estado em que se constituírem.

§ 1º - Não poderão, entretanto, ter no Brasil filiais, agências ou estabelecimentos antes de serem os atos constitutivos aprovados pelo governo brasileiro, ficando sujeitas à lei brasileira.

A empresa Twitter, agora X após a aquisição por Elon Musk, teve seus atos constitutivos aprovados no Brasil. Assim, precisa que haja um representante legal para assumir seus atos perante o direito brasileiro. A inobservância das normas nacionais pode sim ter por consequência a expulsão da empresa do Brasil ou ainda o dever de adaptar suas atividades às normas brasileiras.

Vou citar um exemplo: a empresa multinacional FEDEX comprou a pernambucana Rapidão Cometa, mas não pode realizar as atividades de entrega de cartas ou o serviço público de correios e telegrafos, só de mercadorias, porque no Bradil o serviço de correspondência é monopólio da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, que é uma empresa pública.

2. Sobre a questão da competência

Outro ponto interessante é sobre a competência do Poder Judiciário brasileiro. Prevê o CPC:

Art. 21. Compete à autoridade judiciária brasileira processar e julgar as ações em que:

  1. o réu, qualquer que seja a sua nacionalidade, estiver domiciliado no Brasil;
  2. no Brasil tiver de ser cumprida a obrigação;
  3. o fundamento seja fato ocorrido ou ato praticado no Brasil.

Parágrafo único. Para o fim do disposto no inciso I, considera-se domiciliada no Brasil a pessoa jurídica estrangeira que nele tiver agência, filial ou sucursal.

A previsão também não é nova e reproduz o CPC/73 no art. 88.

Para efeitos legais, o X tem domicílio legal no país, podendo responder em todas as esferas: da responsabilização civil à penal.

Não há nada de estranho em Moraes exigir que a empresa, que atua no Brasil, tenha designado um representante legal.

No mais, para efeitos legais, considera que a empresa chama a jurisdição nacional inclusive os penais quando os seus atos praticados pelos criminosos  iniciam-se ou terminam no Brasil ou  quando produzem efeitos no território nacional. No caso, pessoa que praticou o crime contra a legislação eleitoral pode ser processado no Brasil conforme o Código de Processo Penal - CPP. Observe:

Art. 70.  A competência será, de regra, determinada pelo lugar em que se consumar a infração, ou, no caso de tentativa, pelo lugar em que for praticado o último ato de execução.

§ 1o  Se, iniciada a execução no território nacional, a infração se consumar fora dele, a competência será determinada pelo lugar em que tiver sido praticado, no Brasil, o último ato de execução.

§ 2o  Quando o último ato de execução for praticado fora do território nacional, será competente o juiz do lugar em que o crime, embora parcialmente, tenha produzido ou devia produzir seu resultado.

§ 3o  Quando incerto o limite territorial entre duas ou mais jurisdições, ou quando incerta a jurisdição por ter sido a infração consumada ou tentada nas divisas de duas ou mais jurisdições, a competência firmar-se-á pela prevenção.

Os criminosos são aqueles que usam as redes sociais do X, porém, a ordem de remoção se dá sobre a empresa que é intermediária da relação e pode ser solidariamente responsável nas esferas administrativas e cíveis.

3. Elon Musk cometeu algum crime?

O empresário não está sendo processado pelas Fake News e o discurso de ódio, mas os criminosos que usaram de suas redes sociais para ser o ilícito praticado. O que Musk fez de ilícito foi desobedecer a ordem judicial de retirada do conteúdo, conforme prevê o Marco Civil da Internet (lei 12.965/14).

Musk não está sendo punido por crimes eleitorais ou outros como discurso de ódio.

Segundo o Marco Civil da Internet, em seu art. 19, os provedores de aplicações na internet só podem ser responsabilizados civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomarem as providências para tornar indisponível o conteúdo que infringe as regras estabelecidas.

Isso significa que, pela regra geral, os provedores de internet não são responsáveis pelo conteúdo gerado pelos usuários. A responsabilidade ocorre apenas quando, notificados pela autoridade competente, negligenciam a remoção de conteúdos ilegais ou ofensivos.

Ou seja, não existe nenhuma atitude de  censura como coloca algumas matérias veiculadas.

4. O crime de Musk agora é de desobediência à ordem judicial

O art. 359 do Código Penal brasileiro (decreto-lei 2.848/40) trata de uma desobediência específica a uma ordem judicial, e está incluído no Capítulo dos "Crimes contra a Administração da Justiça".

A pena para quem exercer uma função, atividade, direito, autoridade ou múnus, de que foi suspenso ou privado por decisão judicial, é de detenção de três meses a dois anos, ou multa. 

 Vale lembrar que o empresário russo Pavel Durov foi preso em Paris recentemente,  dentro de um processo que o acusa de não ter tomado medidas eficazes para evitar a proliferação de práticas criminosas no Telegram, um aplicativo que se apresenta como “território livre”. De acordo com os investigadores, a plataforma hospeda  desde desinformação política e sanitária até serviços de venda de drogas, pornografia infantil, fraude e lavagem de dinheiro.

Então, o Brasil nada fez diretamente de outros países. O bloqueio determinado pelo STF não é estranho às soluções adotadas em outros países.

5. O que é VPN?

Primeiro vou explicar de se trata o termo VPN. VPN é sigla para Virtual Private Network (“conexão de internet privada”, em português). A tecnologia permite acessar a internet com mais segurança e privacidade. Com o recurso, o endereço IP - informação única de cada dispositivo que serve para identificá-lo nas redes de conexão - fica oculto. Com isso, dados sensíveis como a localização em tempo real do usuário ficam protegidas dos provedores de internet e demais possíveis usuários e as mensagens são criptografadas. O que na prática isso quer dizer: lguém poderia cessar o X do Brasil sem que saibamos onde essa pessoa estaria.

Porém, a tecnologia é amplamente utilizada e serve a muitos propósitos. Alexander de Moraes não quer impedir que qualquer pessoa use o VPN, mas que não seja usada para acessar o X. Quando a rede X é acessada por esse recurso dificilmente consegue saber de onde é feita esse acesso. A proibição é muito específica e pode ser traduzida da seguinte forma: a rede social X está suspensa no Brasil Até cumprir as determinações judiciais e se adequar a legislação beasileira, assim ninguém deve burlar essa proibição. Moraes voltou atrás sobre a questão da VPN. 

6. Internet via satélite da Starlink

A Starlink (coligada ao grupo de Elon Musk) é a primeira e a maior constelação de satélites do mundo, usando uma órbita terrestre baixa para fornecer internet banda larga via satélite, capaz de suportar transmissão, jogos on-line, chamadas de vídeo e muito mais.

Aproveitando satélites avançados e o equipamento do usuário, juntamente com nossa profunda experiência em operações de naves espaciais e em órbita, a Starlink oferece internet de alta velocidade e baixa latência para usuários em todo o mundo.

A aquisição da antena da Starlink pode ser de cerca de R$ 2.000, 00, e permite que se acesse a Internet de qualquer lugar.

A princípio, o uso se propõe a conectar pessoas de zonas remotas sem uso de fibra ótica ou antena. Inclusive, vale destacar que a tecnologia é usada no Brasil em áreas sem cobertura dos sistemas tradicionais, como na Amazônia Legal.

Vale lembrar que a Starlink tem dupla atuação no Brasil: como empresa e como holding. Por ser do mesmo grupo  econômico do empresário Elon Musk  foi incluída na decisão.

Acionistas das empresas do bilionário africano já motivaram o interesse de afastá-lo da direção dos negócios diante das atitudes que podem prejudicar os negócios, como declarações de uso de drogas e outras.

Lembrando que em certo momento Steve Jobs foi afastado da Apple e não nada novo essa decisão dos acionistas.

O empresário é sim uma pessoa polêmica e representa um desafio para o mundo por sua conduta agressiva e desdenhosa em relação às regras sociais e jurídicas. Ao contrário de algumas postagens, o empresário enfrenta processos em países como a Inglaterra, Índia, Austrália e outros. A Starlink já respondeu que não cumpriria a decisão judicial. E agora? 

8. Entendendo a decisão

O que Alexandre de Moraes quer dizer com isso: que não se pode usar o VPN nem.a Starlink para se burlar a decisão judicial que proíbe o uso da rede X até que está se adeque a legislação brasileira.

A primeira questão aí é que como coloquei no artigo anterior, a LINDB, no artigo. 11, exige que uma emoresa para atuar no Brasil se adeque à legislação brasileira, no caso especial ao Marco Civil da Internet.

Também, deve a rede social indicar um representante legal no país para que este responda pela emoresa.

Na verdade, o que temos é um grande desafio à soberania estatal. A Internet não tem fronteiras, mas as normas legais têm o espectro territorial de exigibilidade. Desta forma: como controlar a Internet através de um sistema de procedimentos normativos incompatível com sua dinâmica?

Não é um desafio só Brasileiro, mas mundial. Quem se inteira um pouco do debate sabe que a União Europeia também tem seus dilemas com o uso das redes. Países mais radicais como a China chegam a proibir o uso de algumas redes sociais.

Nos Estados Unidos recentemente decidiu a Suprema Corte que as redes não são responsáveis pelo comportamento de seus usuários.

No Brasil, as últimas resoluções do TSE exige que as empresas que operam com impulsionamento de campanhas informe diretamente a Justiça Eleitoral sobre custos e impulsionamento de perfis, bem como a proibição de uso de CNPJs para fins eleitorais, como pode ser observada na recente decisão da Justiça Eleitoral Paulista sobre o caso de Pablo Marçal.

O Youtube não faz propaganda política por considerar os riscos jurídicos.

No caso, Moraes quis buscar meios de garantir a efetividade de sua decisão em proibir o acesso ao X. Porém, resta debater se a opção usada por ele foi razoável e se não prejudica interesses de terceiros que precisam usar das ferramentas e dessa tecnologia.

9. Seria correta, nesse caso, a responsabilidade solidária da Starlink, inclusive com bloqueio de conta para arcar com parte dos 18 milhões de multas já aplicadas pelo Judiciário brasileiro?

A excepcionalidade do caso pareceu justificar a interpretação de que outra empresa do grupo pudesse vir a pagar as multas e ser incluída na demanda.

Em especial, porque o serviço prestado pela Starlink poderia viabilizar o descumprimento da decisão judicial objeto da controvérsia.

Em sentido semelhante, em 2008, a 4ª turma do STJ novamente se manifestou no REsp 1.021.987- RN, cujo relator foi o ministro Fernando Gonçalves.

Decidiu o STJ pela aplicação de penalidade a empresa nacional do mesmo grupo. Assim, entendeu pela manutenção da condenação da sociedade empresária Yahoo! Brasil Internet Ltda, que havia sido condenada em instâncias ordinárias a retirar do ar site com conteúdo difamatório a uma mulher, hospedado por serviço oferecido pela Yahoo! Inc., sociedade empresária norte-americana, componente do mesmo grupo econômico.

Há por nossa parte estranheza já que a pessoal jurídica serve justamente para separar o que é da empresa e o que pertence a pessoa.

No mais, a jurisdição do STJ é pacífica no entendimento de que a busca judicial por patrimônio de empresa que não integrou a ação na fase de conhecimento e não figura na execução, ainda que ela integre o mesmo grupo econômico da sociedade executada, depende da instauração prévia do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, não sendo suficiente o simples redirecionamento do cumprimento de sentença.

Porém, a personalidade jurídica não pode ser manto para a prática de ilícitos, descumprimento de medidas judiciais e impunidade.

Acredito que sua pequena margem de manobra num processo contra uma empresa transnacional seja de garantir a efetividade da jurisdição.

É importante atentar que a solução do ministro Moraes, é muito excepcional e pode ser justificar em casos concretos em que se torne inviável a responsabilidade de um integrante do grupo, bem como a relação intrincada entre uma sociedade e outra, como nas execuções trabalhistas

Atualmente, prevê o CPC:

  ‘Art. 513. O cumprimento da sentença será feito segundo as regras deste Título, observando-se, no que couber e conforme a natureza da obrigação, o disposto no Livro II da Parte Especial deste Código.

    § 5º O cumprimento da sentença não poderá ser promovido em face do fiador, do coobrigado ou do corresponsável que não tiver participado da fase de conhecimento.’ (...)

Porém prevê o CLT que

Art. 494. Caracteriza-se grupo econômico quando 2 ou mais empresas estiverem sob a direção, o controle ou a administração de uma delas, compondo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica.

Cabe ainda destacar que o STF admite que outra empresa possa ser incluída no Polo passivo da execução trabalhista, mesmo quenso tenha participado da fase de conhecimento.

O antigo Twitter tinha sede no Brasil e estava sujeito às leis nacionais. O fato de Musk adquirir a rede social e alterar seu nome de fantasia, não exige novo processo de autorização para suas atividades no Brasil. E a SPACE X detém o X, Starlink e outros. Assim, com a ausência de um responsável legal pelo X, pareceu que a única opção seria impor a decisão ao grupo econômico.

10. Musk versus Moraes

Noutro ponto, Elon Musk sabe que as pessoas precisam usar dos serviços de suas empresas e ameaça encerrar suas atividades no país como meio de retaliar e descumprir as decisões judiciais, fazendo com que os usuários e a opinião pública se ergam contra o "autoritarismo" judicial.

Resta sabe como resolver o problema: de um lado precisamos dos meios técnicos oferecidos pela tecnologia de informação; por outro, precisamos garantir a integridade de nossas instituições e a observância das leis e decisões judiciais.  Essa guerra anunciada por vários autores agora se materializa no embate entre Moraes e Musk.

A decisão de Moraes em sede de liminar foi confirmada pelos demais ministros do STF: qualquer empresa para atuar no Brasil deve se adaptar aos regramentos nacionais, sendo a atitude de Musk, dono do X e da Holding e empresa Starlink,  ilícita. A Internet é terra de ninguém!

Musk costuma cumprir as ordens emanadas em outros países. A comunidade europeia tem normas rígidas sobre o tema.

No mais, os Estados Unidos tem muito mais "elásticas" suas normas de 'liberdade de expressão", mas no Brasil discursos de ódio e atentatórios às instituições são punidas. Nossa liberdade de expressão está sujeitas a parâmetros legais, pois não é absoluta.

Como estratégia de defesa ele ataca o ministro Alexandre de Moraes, mas o que está em jogo não é a personificação da contenda entre dois homens, mas o descumprimento das normas brasileiras de proteção ao processo eleitoral, a  democracia e o respeito às instituições.

Ainda não tenho uma opinião definitiva sobre o caso. Concordo com o bloqueio do X até o cumprimento da decisão judicial. Mas os demais termos talvez seja um precedente ruim e fragiliza mais a noção de empresa da legislação empresarial.

O grande problema não é a decisão do Ministro Alexandre de Moraes, mas o Inquérito 4.781 ou inquérito das Fake News que já tem um longo  tempo de tramitação e foi aberto desde 2029 pelo próprio STF. Essa estrutura de investigação, completamente "anômala", persiste sem aparente término.

Rosa Maria Freitas
Doutora em Direito pelo PPGD/UFPE, professora universitária, Servidora pública, Escritório Rosa Freitas Advocacia em Direito público, palestrante e autora do livro Direito Eleitoral para Vereador.

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