Introdução
A recuperação judicial e a busca e apreensão são temas de grande relevância no cenário jurídico brasileiro, especialmente devido aos seus impactos práticos para credores, devedores, investidores e terceiros de boa fé. A correta interpretação das leis que regem esses institutos é essencial para garantir a segurança jurídica e a estabilidade do mercado.
Efeito ex nunc nos processos de insolvência
Conforme dispõe o art. 52, inciso III, da lei 11.101/05: “Estando em termos a documentação exigida no art. 51, o juiz deferirá o processamento da recuperação judicial e, no mesmo ato, ordenará a suspensão de todas as ações ou execuções contra o devedor na forma do art. 6º da mesma lei, permanecendo os respectivos autos no juízo onde se processam, ressalvadas as ações previstas nos §§1º, 2º e 7º do art. 6º e as relativas a créditos excetuados na forma dos §§ 3º e 4º do art. 49º”.
Este dispositivo no mundo jurídico possui efeito “ex nunc”, o que significa que a decisão que defere o processamento da recuperação judicial não tem efeito retroativo, valendo a partir do momento em que foi proferida.
Atualmente, de forma absolutamente surpreendente, é comum encontrar decisões de diversos Tribunais determinando a restituição de veículos apreendidos em ações de Busca e Apreensão, lastreadas no decreto-lei 911/69, ou seja, veículos gravados com alienação fiduciária em garantia, fundamentadas em contratos e créditos extraconcursais. A apreensão e citação do devedor muitas vezes ocorrem antes do deferimento do processamento da ação de recuperação judicial e, em alguns casos, até mesmo antes do próprio ajuizamento da ação de recuperação.
Isso, sem sombra de dúvidas, além de causar efeitos catastróficos para o credor e também para terceiros de boa fé, constitui-se em verdadeira afronta aos princípios basilares do Direito, notadamente o Direito Adquirido, o Ato Jurídico Perfeito e a Coisa Julgada, conforme os termos do art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal e do art. 6º da LINDB.
Consolidação da posse e propriedade nos processos de busca e apreensão
Depreende-se do decreto-lei 911/69, mais precisamente do art. 3º, §1º, que os bens apreendidos terão a sua posse e propriedade consolidadas em favor do credor no prazo de cinco dias corridos, contados da data de execução da liminar.
Isso significa que, no processo de Busca e Apreensão, efetivada a liminar com a apreensão do bem e tendo o devedor deixado de exercer seu direito de purgação da mora no quinquídio posterior (§2º do artigo 3º do decreto-lei 911/69), de forma automática constitui-se de pleno direito a propriedade em favor do credor fiduciário. Vejamos o que dispõem os mencionados dispositivos:
§1º Cinco dias após executada a liminar mencionada no caput, consolidar-se-ão a propriedade e a posse plena e exclusiva do bem no patrimônio do credor fiduciário, cabendo às repartições competentes, quando for o caso, expedir novo certificado de registro de propriedade em nome do credor ou de terceiro por ele indicado, livre do ônus da propriedade fiduciária. (Redação dada pela lei 10.931/04)
§2º No prazo do §1º, o devedor fiduciante poderá pagar a integralidade da dívida pendente, segundo os valores apresentados pelo credor fiduciário na inicial, hipótese na qual o bem lhe será restituído livre do ônus. (Redação dada pela lei 10.931/04)
Conflito legislativo e temporal
Diante disso, tem-se a seguinte conjunção legislativa e temporal tangenciando a celeuma entre o decreto-lei 911/69 e a lei 11.101/05, além dos princípios constitucionais mencionados.
Primeiramente, o decreto-lei é expresso ao conferir ao credor fiduciário a consolidação da posse e propriedade do bem, após o decurso do prazo de cinco dias a contar da execução da liminar, sem que o devedor fiduciante tenha realizado a purgação da mora. Por outro lado, a decisão que defere o processamento da recuperação judicial, conforme o art. 52, inciso III, da lei 11.101/05, tem efeitos ex nunc.
Por ilação lógica, uma decisão que defere o processamento da recuperação judicial não pode retroagir a ato jurídico perfeito já concretizado nos autos de ação de busca e apreensão. Seus efeitos alcançam apenas atos posteriores à decisão que defere o feito recuperacional. Nesse sentido, é a posição do C. STJ:
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO REGIMENTAL NO CONFLITO DE COMPETÊNCIA. OBSCURIDADE. INTELIGÊNCIA DO ART. 49 DA LFR (LEI 11.101/05). SUSPENSÃO DAS AÇÕES E EXECUÇÕES CONTRA O DEVEDOR. TERMO INICIAL. DEFERIMENTO DO PROCESSAMENTO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL. DECISÃO COM EFEITOS "EX NUNC". EMBARGOS DE DECLARAÇÃO ACOLHIDOS. > 1. A regra do art. 49 da lei 11.101/05 merece interpretação sistemática. Nos termos do art. 6º, caput, da lei de falências e recuperações judiciais, é a partir do deferimento do processamento da recuperação judicial que todas as ações e execuções em curso contra o devedor se suspendem. Na mesma esteira, diz o art. 52, inciso III, do referido diploma legal, que estando a documentação em termos, o juiz deferirá o processamento da recuperação judicial e, no mesmo ato, ordenará a suspensão de todas as ações e execuções contra o devedor. Assim, os atos praticados nas execuções em trâmite contra o devedor entre a data de protocolização do pedido de recuperação e o deferimento de seu processamento são, em princípio, válidos e eficazes, pois os processos estão em seu trâmite regular. > 2. A decisão que defere o processamento da recuperação judicial possui efeitos "ex nunc", não retroagindo para atingir os atos que a antecederam. > 3. O art. 49 da lei 11.101/05 delimita o universo de credores atingidos pela recuperação judicial, instituto que possui abrangência bem maior que a antiga concordata, a qual obrigava somente os credores quirografários (DL 7.661/45, art. 147). A recuperação judicial atinge "todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos", ou seja, grosso modo, além dos quirografários, os credores trabalhistas, acidentários, com direitos reais de garantia, com privilégio especial, com privilégio geral, por multas contratuais e os dos sócios ou acionistas.
Princípio da irretroatividade
Esta é a regra adotada pelo ordenamento jurídico pátrio, onde a norma não poderá retroagir (princípio da irretroatividade). Este princípio objetiva prestigiar a segurança jurídica, a certeza e a estabilidade do ordenamento jurídico.
Aqui, nem há espaço para discussões sobre a essencialidade dos bens apreendidos ou se os créditos são concursais ou extraconcursais, à medida que os efeitos gerados na decisão que deferiu o processamento da recuperação judicial terão eficácia e efeitos apenas após a respectiva decisão, não cabendo qualquer outra discussão sobre processos ou bens já atingidos pelos efeitos do ato jurídico perfeito e coisa julgada.
Reflexos e impactos das decisões no mercado
O Direito moderno, os legisladores, julgadores e Tribunais devem levar em conta, além das questões endoprocessuais e legislação aplicável, os reflexos e impactos das decisões no mercado.
O credor fiduciário, muitas vezes baseado no preceito do decreto-lei 911/69 (art. 3º, §1º, e penalidade do §6º), buscando inclusive proteger os interesses do devedor fiduciário, à medida que a espera de uma sentença na ação de busca e apreensão poderá demorar muito, e o bem poderá deteriorar e perder valor, faz a alienação do veículo apreendido a terceiros.
Ora, se posteriormente o credor é atingido por uma decisão equivocada e que afronta os princípios basilares de direito e causa insegurança jurídica, há o risco de prejudicar terceiros que eventualmente tenham adquirido os bens legalmente vendidos após a retomada pelo respectivo credor, além do risco de aumento de crédito dada a volatilidade do mercado financeiro.
Conclusão
A conjugação legislativa entre o decreto-lei 911/69 e a lei 11.101/05, somada aos princípios constitucionais, demonstra a importância da segurança jurídica e da irretroatividade das normas. Decisões que desconsideram esses fundamentos não apenas afrontam princípios basilares do direito, mas também causam instabilidade no mercado, prejudicando credores, devedores e terceiros de boa fé.
Para garantir uma aplicação justa e equitativa das leis, é essencial que as decisões judiciais respeitem os atos jurídicos perfeitos e a coisa julgada, evitando retroatividade indevida. Recomenda-se que juízes, advogados e legisladores considerem os impactos