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Inverno do marco legal da IA

O PL 2.338/23 e as inconstitucionalidades da proposta legislativa.

3/9/2024

A regulação da IA pelo Poder Legislativo se encontra no chamado inverno da IA.

Os projetos de lei sobre o tema apresentados no Congresso Nacional tiveram início no ano de 2019. Em fevereiro/20, o presidente do Senado Federal instalou uma Comissão de Juristas para análise das iniciativas regulatórias em tramitação, com o objetivo de elaborar minuta de substitutivo para estabelecer princípios, diretrizes e fundamentos para regular o desenvolvimento e a aplicação da inteligência artificial no Brasil. Os trabalhos foram concluídos em dezembro/22.

O relatório final apresentado pela Comissão subsidiou a proposta legislativa 2.338/23, de autoria do senador Rodrigo Pacheco e seguiu para a Comissão Temporária Interna sobre Inteligência Artificial do Senado Federal, em agosto/23.

Desde então, mais debates, mais audiências públicas, mais quatro pareceres substitutivos do relator, mais requerimentos de alteração do texto e ... menos consenso. A matéria ainda não conseguiu se deslocar da CTIA para ser votada pelo Senado Federal.

E, em ano de eleições, a tramitação do Projeto entrou em recesso parlamentar e, neste momento, aguarda o encerramento do período eleitoral para retomar a normalidade dos trabalhos do Poder Legislativo.

No curto espaço de tempo disponibilizado para encaminhamento de sugestões pela sociedade civil - entre a apresentação de cada novo texto do relator -, o Instituto dos Advogados Brasileiros aprovou parecer elaborado pela Comissão Especial de Inteligência Artificial e Inovação, encaminhando a posição do IAB aos canais competentes do Senado Federal.

Destaco a análise que me coube produzir relativa ao capítulo da supervisão e fiscalização, abordando o Sistema Nacional de Regulação e Governança de IA (SIA), a Autoridade competente, o Conselho Permanente de Cooperação Regulatória de IA, o Comitê de Especialistas e Cientistas de IA, e sugestões de aprimoramento do texto.

A proposta legislativa padece de inconstitucionalidades insuperáveis quanto à designação - pelo Poder Legislativo – para que a Autoridade Nacional de Proteção de Dados exerça o papel de autoridade competente na coordenação do SIA.

A ANPD tem natureza jurídica de autarquia de natureza especial, vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, dotada de autonomia técnica e decisória, sem autonomia financeira.

A Constituição Federal determina que as leis que disponham sobre organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios, são de iniciativa privativa do Presidente da República (art. 61, § 1º, b).

O Substitutivo ainda impõe ao Poder Executivo a obrigação de fornecer os recursos necessários à ANPD para promover sua reestruturação administrativa, no prazo de dois anos. Ocorre que a Emenda Constitucional 128/22 - que acrescentou o parágrafo 7º ao art. 167 da Constituição Federal - proíbe a imposição por lei de encargo financeiro sem previsão de recursos:

“§ 7º: A lei não imporá nem transferirá qualquer encargo financeiro decorrente da prestação de serviço público, inclusive despesas de pessoal e seus encargos, para a União, os Estados, o Distrito Federal ou os Municípios, sem a previsão de fonte orçamentária e financeira necessária à realização da despesa ou sem a previsão da correspondente transferência de recursos financeiros necessários ao seu custeio, ressalvadas as obrigações assumidas espontaneamente pelos entes federados e aquelas decorrentes da fixação do salário-mínimo, na forma do inciso IV do caput do art. 7º desta Constituição."

Diante das apontadas inconstitucionalidades, é imperioso aplicar a previsão originária do PL 2.338 quanto à designação da autoridade competente: “O Poder Executivo designará autoridade competente para zelar pela implementação e fiscalização da presente lei”.

Integram o Sistema Nacional de Regulação e Governança de Inteligência Artificial um Conselho Permanente de Cooperação Regulatória de IA e um Comitê de Especialistas e Cientistas de IA. Essa proposta de estrutura satélite de governança, solta e desconectada, indica competências genéricas que não garantem efetiva participação, integração e cooperação mútua dos trabalhos desenvolvidos por cada qual. É ainda estarrecedor que o modelo tenha excluído a indispensável participação de instituições representativas da sociedade civil.

Foi ainda estabelecido que cabe ao Poder Executivo Federal definir a lista dos órgãos e entidades que deverão integrar o SIA, assim como a composição detalhada do Comitê de Especialistas e Cientistas de IA.

Bem mais eficaz do que essa proposta pulverizada e indeterminável seria a criação do Conselho Nacional de IA, nos moldes estabelecidos na LGPD. Assim, estará garantida a participação plural e organizada de organizações da sociedade civil com atuação comprovada em inteligência artificial, instituições científicas, tecnológicas e de inovação, associações científicas, tecnológicas e de pesquisa, entidades representativas do setor empresarial relacionado à área de IA, outros Poderes, órgãos ou instituições públicas, entidades representativas do setor laboral e entidades representativas do setor empresarial relacionado à área de inteligência artificial.

A representação contemplaria uma lista tríplice de indicados por suas respectivas instituições, designados por ato do presidente da República, cuja participação é considerada prestação de serviço público relevante e não remunerada.

A criação de um marco legal carece de sentido se não contemplar a elaboração de uma Política Nacional de IA. Essa foi a proposta contida no PL 5.691/19 de instituir a Política Nacional de IA, de autoria do senador Styvenson Valentim, proposta retirada pelo relator do substitutivo ao PL 2.338/23.

Como previsto no PL 5.691, a elaboração de diretrizes estratégicas da Política Nacional ficaria sob a custódia do Conselho Nacional de IA, fornecendo subsídios para a atuação da Autoridade Nacional de IA, ficando responsável por elaborar relatórios anuais de avaliação da execução das ações da Política Nacional de Inteligência Artificial; sugerir ações a serem realizadas pela Autoridade competente; elaborar estudos e realizar debates e audiências públicas sobre a inteligência artificial; além de disseminar o conhecimento sobre a inteligência artificial para a população.

Em nosso parecer da Comissão Especial de IA e Inovação do IAB Nacional foi ainda consignado que não foi registrado na proposta o âmbito de aplicação e alcance da futura norma legal. O Regulamento da IA da União Europeia disciplina que a norma se aplica não somente às empresas europeias que desenvolvem e utilizam sistemas de IA em solo europeu, como também a empresas situadas fora do seu território europeu.

Durante esse inverno legislativo, o Poder Executivo Federal lançou o Plano Brasileiro de IA. Com investimentos anunciados na ordem de 23 bilhões, pretende transformar o país em referência mundial em inovação e eficiência no uso da inteligência artificial, especialmente no setor público.

Que venha a próxima estação do marco legal da IA, antes que torne desnecessária.

Ana Amelia Menna Barreto
Advogada, Msc., Professora e Consultora em Direitos Digitais, Negócios e Inovação. CEO Núcleo Digital Consultoria e Capacitação.

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